16 Agosto 2024
"Só o trabalho coletivo nos permitirá progredir, o que exige a criação de uma verdadeira federação democrática de esquerda, capaz de organizar a deliberação e resolver as divergências", escreve Thomas Piketty, diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca), em artigo reproduzido por A Terra é Redonda, 07-08-2024, com tradução de Fernando Lima das Neves. O artigo foi originalmente publicado por Le Monde.
É tempo da esquerda voltar a descrever o sistema econômico alternativo a que aspira.
Apesar da maioria relativa obtida pela Nova Frente Popular – NFP, o panorama político francês continua marcado por divisões e incertezas. Sejamos claros: os ganhos obtidos pela esquerda em votos e assentos são, na realidade, muito limitados e refletem um trabalho insuficiente tanto em relação ao programa como às estruturas. Só enfrentando resolutamente estas insuficiências que os partidos de esquerda poderão ultrapassar o período de turbulência e de governos minoritários que se anuncia e obter um dia a maioria absoluta que lhes permitirá governar o país no longo prazo.
O programa adotado pela NFP alguns dias após a dissolução do antigo governo teve certamente o imenso mérito, em comparação com os outros, de indicar onde encontrar os recursos para investir no futuro: saúde, educação, pesquisa, infraestrutura de transportes e de energia, etc. Estes investimentos essenciais aumentarão fortemente e só há duas formas de financiá-los.
Ou aceitamos o início de um novo ciclo de socialização crescente da riqueza, impulsionado pelo aumento dos impostos sobre os mais ricos, como propõe a NFP, ou rejeitamos por ideologia qualquer alta fiscal, colocando-nos nas mãos do financiamento privado, sinônimo de desigualdade de acesso e de eficácia coletiva mais que duvidosa. Impelidas por custos privados gigantescos, as despesas de saúde aproximam-se de 20% do PIB nos Estados Unidos, com indicadores desastrosos.
Entretanto, os montantes mencionados pela NFP podem ter assustado: cerca de 100 bilhões de euros em encargos e novas despesas daqui a três anos, ou seja, 4% do PIB. No longo prazo, estes montantes não têm nada de excessivo: as receitas fiscais na Europa Ocidental e Nórdica passaram de menos de 10% da renda nacional antes de 1914 para 40-50% depois dos anos 1980-1990, e foi este aumento do poder do Estado de bem-estar social (educação, saúde, serviços públicos, proteção social, etc.) que permitiu um crescimento sem precedentes da produtividade e do nível de vida, independentemente do que os conservadores de qualquer época possam ter dito.
O fato é que há incertezas consideráveis quanto ao calendário e à ordem de prioridades de um governo de esquerda que chega ao poder. Mesmo sendo forte a demanda por justiça social no país, a mobilização de novos recursos continua sendo um processo frágil, do qual os cidadãos podem retirar seu apoio a qualquer momento. Concretamente, enquanto não for demonstrado de forma incontestável que os milionários e as multinacionais estão realmente sendo obrigados a contribuir, é impensável pedir a qualquer outra pessoa que faça um esforço suplementar. Ora, o programa da NFP continua muito vago sobre este ponto crucial.
É ainda mais problemático que os governos de esquerda das últimas décadas, na ausência de um programa suficientemente preciso e de uma apropriação coletiva suficientemente forte, estejam sempre cedendo aos lobbies assim que chegam ao poder, por exemplo, isentando do ISF [imposto de solidariedade sobre a fortuna] os chamados ativos profissionais e a quase totalidade das grandes fortunas, o que faz com que as receitas sejam ridiculamente baixas em relação ao que poderiam e deveriam ser.
Para não repetir estes erros, será necessário envolver a sociedade civil e os sindicatos na defesa destas receitas e dos investimentos sociais a elas associados. Nestas questões, como em outras, os slogans não podem substituir o trabalho de fundo e a mobilização coletiva.
Há problemas semelhantes com as aposentadorias. Não faz muito sentido adotar o slogan da aposentadoria para todos aos 62 anos, ou mesmo aos 60 anos, quando todos bem sabem que existe também uma condição de tempo de contribuição para obter uma aposentadoria completa no sistema francês. Uma palavra de ordem do tipo “quarenta e dois anos de contribuição para todos” seria mais bem compreendido pelo país, e deixaria claro que as pessoas com formação superior não se aposentarão antes dos 65 ou 67 anos, insistindo, ao mesmo tempo, na injustiça inaceitável dos 64 anos da reforma de Emmanuel Macron, que obriga, por exemplo, quem começou a trabalhar aos 20 anos a contribuir durante quarenta e quatro anos.
Os exemplos poderiam ser multiplicados. É bom que se anuncie a supressão da plataforma Parcoursup, mas teria sido ainda melhor descrever precisamente o sistema alternativo, mais justo e mais transparente, que o substituirá. É bom que se denuncie o grupo de mídia Bolloré, mas seria melhor comprometer-se com uma lei ambiciosa para democratizar os meios de comunicação e desafiar os acionistas todo-poderosos.
Lembremos também da proposta que visa atribuir um terço dos assentos nos conselhos de administração das empresas aos representantes dos trabalhadores. Esta é a reforma mais profunda e autenticamente social-democrata do programa da Nova Frente Popular, mas seria melhor que fosse colocada num quadro mais amplo. Para permitir a redistribuição do poder econômico, seria necessário aumentar o número de assentos nas grandes empresas para 50%, limitando simultaneamente os direitos de voto dos maiores acionistas e comprometendo-se com uma verdadeira redistribuição do patrimônio.
Em vez de condescender com uma radicalidade retórica de fachada, é tempo da esquerda voltar a descrever o sistema econômico alternativo a que aspira, reconhecendo ao mesmo tempo que as coisas ocorrerão por fases.
Em todas estas questões, só o trabalho coletivo nos permitirá progredir, o que exige a criação de uma verdadeira federação democrática de esquerda, capaz de organizar a deliberação e resolver as divergências. Estamos muito longe disso: nestes últimos anos, a França Insubmissa não parou de tentar impor sua hegemonia autoritária à esquerda, à maneira do Partido Socialista de outrora, só que pior, dada a recusa de qualquer processo de votação por parte dos dirigentes “insubmissos”.
Mas o eleitorado de esquerda não se deixa enganar: sabe muito bem que o exercício do poder exige, acima de tudo, humildade, deliberação e trabalho coletivo. Já é tempo de responder a esta aspiração.
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Humildade, deliberação e trabalho coletivo. Artigo de Thomas Piketty - Instituto Humanitas Unisinos - IHU