06 Julho 2024
"Considero esta minha reflexão e análise como um ponto de entrada numa complexa, mas fundamental questão que temos que enfrentar: a construção de uma contra hegemonia. Trata-se de uma provocação e de um chamado para que não desprezemos tarefa tão fundamental. Na verdade, não tenho respostas ao desafio. Penso, porém, que devemos encará-lo com a devida determinação e audácia", escreve Cândido Grzybowski, doutor em Sociologia pela Sorbonne e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase, em artigo publicado por seu blog Sentidos e Rumos, 04-07-2024.
A disputa de hegemonia, como condição de direção política e conquista de poder, é central, como, já há quase um século atrás, Antonio Gramsci demonstrou brilhantemente nos seus Cadernos do Cárcere. Trata-se de uma tarefa coletiva persistente e consistente, com olhar muito perspicaz e pesquisa sobre as inter-relações entre dinâmica econômica, social e política e suas relações com a base natural do viver, assim como as conjunturas que elas criam. Mas não só, pois hegemonia supõem difusão de princípios e valores, ideias e análises consistentes, criando uma cultura viva, de referência, que impregna imaginários e alimenta a ação política. A pesquisa e a análise são sempre necessárias, porém insuficientes, pois hegemonia é uma questão de imaginários em disputa política.
A perspectiva transformadora para garantir direitos iguais na diversidade, como uma filosofia ativa baseada em princípios e valores éticos de viver em coletividade, precisa definir o que e como mudar a situação presente, que caminho construir, que forças se opõem e como enfrentá-las. Tais tarefas exigem saber construir um discurso coerente de princípios e valores, imaginários e propostas, e ter determinação na disputa do dia a dia, como base para criar o cimento agregador do bloco de forças da mudança, com capacidade política de apontar caminhos e processos a desencadear, impactando o debate público e, ao mesmo tempo, enfrentando e desconstruindo outras versões e propostas. Disputar de hegemonia é um fazer político complexo e contínuo, onde se combinam análise de realidade vivida, educação, cultura, debate, organização e ação contínua, em confronto com outras propostas opostas ou divergentes. Devida a natureza da disputa de hegemonia, é um fazer permanente, condicionado pelas conjunturas políticas e pelo que se passa no mosaico de especificidade territoriais e condições de viver.
Na atualidade brasileira, regional e mundial, um fato fundamental, que não pode ser ignorado, é o crescimento de uma renovada direita autoritária, com capacidade de disputar hegemonia com suas ideias, valores e propostas destrutivas e excludentes, em nome de “Deus, Pátria e Família”. Esta direita vem demonstrando capacidade na difusão de notícias falsas e versões deturpadas de ideias, propostas e debates, com viés que combina individualismo extremado, com violência armada, machismo, discriminação de todo tipo, exclusões dos considerados “incompetentes” e “descartáveis”, contando com uma ampla adesão em setores das classes médias e até populares. Tem como suporte a cumplicidade de polícias militares e setores das Forças Armadas, e até difusa adesão dos grandes meios de comunicação. Faz vista grossa ao enorme crime organizado por milicianos, traficantes, garimpeiros, grileiros e desmatadores. Segmentos importantes das classes proprietárias dominantes aderem e apoiam financeiramente a ação da direita autoritária, desde que ela defenda seus privilégios de propriedade, isenções fiscais e total “liberdade de mercado” em busca de acumulação, submetendo o Estado a seu serviço, impedindo as propostas de transformação ou imposição de limites democráticos para seus negócios e alianças globais. Esta direita autoritária quer ser vista e empoderada politicamente como a expressão mais eficaz na defesa da globalização capitalista, financeirizada, excludente e destrutiva em termos ecossociais.
Não cabe aqui relembrar a importância da conquista democrática em face da ditadura, nos anos 80 do século passado, consubstanciada na Constituição de 1988. Foi um rechaço claro ao regime autoritário, com um importante protagonismo de cidadanias ativas naquele então. Porém, o que parecia ser um virtuoso começo, foi o máximo possível naquela conjuntura. O câncer da conciliação para a governabilidade democrática, incluído na Constituição, minou a possibilidade de grandes avanços e transformações, apesar de termos conquistas reais a celebrar, aqui e acolá. Não conseguimos avançar na construção de uma democracia participativa forte, além das eleições periódicas e de eleger governantes e parlamentares mais democráticos. Temos uma democracia que renasceu encurralada, como defino.
O processo de encurralamento democrático nos levou a uma perda de capacidade de transformar demandas de mais e mais democracia em políticas de mudança. Menos de trinta anos depois, foi arquitetado o golpe parlamentar de 2016, que propiciou as condições políticas para um retrocesso programado de mais mercado e menos democracia. No seu desdobramento surgiu o governo de vocação autoritária, destrutiva e excludente, eleito em 2018, para o período de 2019-2022. Felizmente, uma ampla e heterogênea aliança elegeu mais uma vez o Lula, em 2022, para o período de 2023-26. Mas Lula III não tem maioria no Congresso e a conciliação extrapolou os limites, como o desmonte de conquistas constitucionais, canalização de recursos públicos para seus redutos eleitorais e submissão do governo ao “mercado”, além de ataque aberto à políticas ecossociais.
Continuamos ameaçados pela direita autoritária, com suas propostas no Congresso e, sobretudo, com a capacidade de disputar hegemonia de imaginários e valores na sociedade civil, visando ampliar o seu poder no controle político desde a base – eleições municipais em outubro próximo – e consolidar o seu domínio nos Estados e no Governo Federal na eleição de 2026.
Ganhar eleições é sempre importante, mas não necessariamente expressa hegemonia, situação que vivemos atualmente, com o encurralamento político da própria democracia brasileira no governo Lula III. Temos, sim, uma crise larval implantada no Estado, entre governo e parlamento, com sobressaltos e pequenos avanços aqui e acolá. Sem solução à vista, pois de onde não pode vir algo transformador com potência, na atual situação, não virá mesmo. Diante do desafio que representa construir uma contra hegemonia democrática transformadora, pensando no amanhã, a tarefa é urgente, onde “esperar não é saber”. A política econômica brasileira, mesmo no Governo Lula, continua priorizando uma agenda de ajuste fiscal e teto de gastos para atender ao “mercado” e o seu financismo. Além disto, com o Congresso comandado pelo “Centrão”, fica claro que o Governo está sem capacidade de avançar nas mudanças prometidas em construir “outro Brasil”, voltado ao cuidado de gente e da natureza, refirmado por Lula em sua posse, em janeiro de 2023.
A comunicação ampla é uma estratégia fundamental na disputa de hegemonia. A direita mais radicalizada produz e difunde fakenews de forma sistemática pelas redes sociais. E os grandes meios de comunicação de massa se pautam antes de tudo pelo financiamento que recebem, pois são negócios capitalistas privados, zelando por seu interesse de acumulação e não o bem público democrático. São os vozeiros das virtudes do empreendedorismo e, de modo geral, do tal sujeito político “mercado”, com seu alinhamento aos interesses das classes dominantes, defendendo especialmente o neoliberalismo globalizado e a centralidade do financismo como regra da boa política governamental.
Entre as e os, que nos pautamos em princípios e valores éticos de direitos ecossociais iguais na diversidade e uma perspectiva democrática transformadora para o conjunto da sociedade brasileira, temos muitas iniciativas virtuosas de comunicação e fundamentais para participantes dos movimentos sociais mais organizados, partidos, grupos intelectuais e ativistas da esquerda. Mas, em geral, são iniciativas pequenas, mal financiadas, não chegando ao grande público.
A comunicação talvez seja o maior desafio democrático coletivo, na atual conjuntura brasileira para nos empoderar como cidadanias ativas, nossas organizações, redes e fóruns, para ganhar potência e impacto na disputa de hegemonia em termos de imaginários, valores e propostas no seio da sociedade, ganhando eleições e criando formas de democracia viva pela ativa participação no Estado e nas suas políticas, visando desencadear iniciativas de transformações nas estruturas, nas relações e nos processos sociais, culturais e econômicos. A comunicação democrática ampla é uma estratégica pista para construir contra hegemonia, pois ela mesma alimenta a disputa, potencializa a difusão de análises de qualidade e propostas articuladas, reafirmando valores e alimentando imaginários virtuosos e transformadores, animando debates e gerando confiança, adesão e cumplicidade. Porém, estamos dando a devida atenção a tal questão fundamental?
Temos muitas dificuldades para sair da nossa bolha e de nos comunicar claramente com setores mais amplos da sociedade. A comunicação ampla como campo de disputa deve vir articulada a um processo de fazer política nas ruas e praças, com formas novas e impactantes de ações coletivas, com pautas aglutinadoras e mobilizadoras. Basta ver a o impacto da extraordinária mobilização das mulheres em curto espaço de tempo para denunciar e se opor à “lei do estupro” das bancadas autoritárias no Congresso, recentemente. Acabou pautando um debate na sociedade e como mensagem teve impacto político no Congresso e no Governo. Este tipo de ação, com muitas iniciativas e pautas, buscando ao mesmo tempo articulações e coalizões, pode e deve nos inspirar sobre o que e como fazer disputa de hegemonia. O resultado em termos de ganhos na política no imediato pode ser pequeno, mas para as cidadanias ativas e a agenda política transformadora é o caminho virtuoso e promissor por ser capaz de desencadear um processo na sociedade e nas estruturas de poder, como já aconteceu no passado e acontece no presente, em muitos países.
Outra pista fecunda e de grande potencial é olhar ao que é emergente nas vivências e resistências que acontecem nos territórios de vida, avaliar os possíveis sinais e embriões do novo, construir visões, imaginários, valores e propostas que agregam de forma mais ampla, formem coalizões poderosas, criando expressões de força instituinte e constituinte das cidadanias em sua diversidade, inspirando políticas novas, apontando uma direção contra hegemônica do que temos hoje. Já temos conquistas políticas democráticas que não podemos abrir mão, como o SUS – Sistema Único de Saúde, um bem comum em escala nacional. Mas foi sufocado financeira e administrativamente pela direita no período de 2016 a 2022. A educação é outra área comum a todas e todos que precisa ser recuperada como uma pauta democrática fundamental, emancipadora. Não podemos aceitar a “colonização” pela direita autoritária algo tão essencial para o futuro da democracia. Tanto a educação como o SUS foram atacados e ainda o são pela agressividade da direita autoritária, além de serem alvos prioritários da política de ajuste fiscal nas contas públicas, retirando recursos e valorizando as iniciativas privatistas e “empresarias”. A educação também foi atacada em sua concepção e sentido democrático com uma visão de militarização das escolas. Mas temos um acumulado em práticas transformadoras e includentes, de grande impacto, que precisamos resgatar como um pensamento e patrimônio cultural e político com capacidade de promover emancipação, condição fundamental para uma democracia viva.
Considero esta minha reflexão e análise como um ponto de entrada numa complexa, mas fundamental questão que temos que enfrentar: a construção de uma contra hegemonia. Trata-se de uma provocação e de um chamado para que não desprezemos tarefa tão fundamental. Na verdade, não tenho respostas ao desafio. Penso, porém, que devemos encará-lo com a devida determinação e audácia. Aqui aponto apenas a sua necessidade, mas voltarei a ele ainda em novas postagens, de tempos em tempos.
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Pistas para avançar na construção da contra hegemonia – I. Artigo de Cândido Grzybowski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU