"Jesus mostra que sua encarnação não foi só para assumir a natureza humana, mas para assumi-la do lado das pessoas trabalhadoras, simples, humildes, mesmo que estas mesmas tenham dificuldade em ver, em alguém igual a elas, a revelação de Deus".
Primeira Leitura: Ez 2,2-5
Salmo: 122, 1-2a.2bcd.3-4
Segunda Leitura: 2 Cor 12, 7-10
Evangelho: Mc 6, 1-6
O Evangelho segundo a comunidade de Marcos nos apresenta Jesus voltando para sua terra natal. Este Evangelho, o primeiro a ser escrito e o mais sucinto, não contém nenhuma narrativa sobre o nascimento de Jesus e sua vida antes do que chamamos de “ministério público”, portanto, no contexto de Marcos, é uma visão importante, mesmo que breve, de como era a vida cotidiana de Jesus em Nazaré. Temos outra versão do mesmo episódio na narrativa de Mateus (13,54-58) e Lucas, diferentemente, aproveita a ida à sinagoga para apresentar um conflito com as lideranças religiosas de Nazaré (4,14-30). O que caracteriza esta versão marcana? Qual sua importância na apresentação da “persona” de Jesus Cristo para este Evangelho?
O texto em si
v. 1 – “Foi para sua ‘pátria” – Jesus tem Nazaré como lugar referencial dele, isto é, sua pátria. Nazaré era, por sua vez, parte da Galileia, de onde eram quase a totalidade dos primeiros discípulos e discípulas. A Galileia também era conhecida como berço de revoltas contra o poder político de Roma e seus aliados de Jerusalém. Segundo mostra a arqueologia, a Nazaré do primeiro século era uma pequena vila de agricultores, com tamanho de um pouco mais de dois quarteirões de uma cidade moderna. Não havia gente rica ali, apenas pessoas humildes que viviam do seu trabalho no campo e da fabricação de utensílios e ferramentas.
v. 2 – “Chegando o Sábado começou a ensinar na Sinagoga” – Jesus surpreende por apresentar “sabedoria” (sofia) e “milagres” – que aqui não são denominados como semeion ou sinais, mas como poder (dünámeis), através de suas mãos.
v. 3 – “Não é este o carpinteiro, filho de Maria e irmão de…?” – A razão da surpresa – e do descrédito – é que Jesus era conhecido como um simples “carpinteiro” (na versão de Mateus vai dizer que Jesus era “filho do carpinteiro”, Mt 13,55). Há irmãs e irmãos mencionados. No entanto, as palavras gregas adelfoi (irmãos) e adelfai (irmãs) podem ser usadas para primos e primas. A redação partriarcal faz com que as irmãs permaneçam anônimas, mas dois dos irmãos terão cartas publicadas no Novo Testamento (Tiago e Judas, cf. Jd 1,1 e Gl 1,19). O fato é que Maria vivia com uma família mais ampla, que não era apenas José e Jesus. Jesus teria, por sua vez, exercido por um tempo a profissão do seu pai, assumindo seu lugar de trabalhador entre seu povo.
v. 4 – “Não há profeta sem honra, a não ser entre sua parentela e sua casa” – A expressão “parentela” (sungeneusin – congênitos) é omitida na versão de Mateus, que repete “na sua pátria” (Mt 13,57). Mas, de fato os irmãos e irmãs de Jesus, incluindo Maria, não entenderam a tarefa profética de Jesus em um primeiro momento (Mc 10,31). A referência a sua “casa” (oikia), indica que era muito grande a proximidade entre as pessoas que habitavam o pequeno vilarejo de Nazaré, quase como se fossem uma só casa.
v. 5 – “Não pode fazer ali nenhum milagre. Curou uns poucos doentes impondo-lhes as mãos” – Não pode exercer o “poder” de cura plenamente, porque a maior parte das pessoas ainda o via como um simples trabalhador, membro de uma família comum do vilarejo, o que, na mentalidade religiosa elitista não seria compatível com um “profeta” ou “mestre”.
v. 6a – “Ficou espantado com a falta de fé deles” – A palavra grega etaúmazen geralmente é traduzida como “admirado” ou “maravilhado”, mas essas acepções lhe dão um caráter positivo, então, aqui preferimos colocar “espantado”, dando mais o sentido de “decepcionado”.
v. 6b – “percorrendo as aldeias seguiu ensinando” – Na versão da Bíblia Sagrada da Vozes esta parte do versículo 6 é colocada fora da perícope, como introdução da próxima, mas, se consideramos como parte dela, podemos interpretar que apesar disso não deixou seguir enfrente com sua missão de ensinar.
Esta perícope apresenta a “persona” de Jesus, assim como Maria, José, seus irmãos e suas irmãs (ou primos e primas), como uma família comum do povo. A visão religiosa elitizada foi a que impediu Jesus ser profeta entre seus familiares e em sua casa. Jesus mostra que sua encarnação não foi só para assumir a natureza humana, mas para assumi-la do lado das pessoas trabalhadoras, simples, humildes, mesmo que estas mesmas tenham dificuldade em ver, em alguém igual a elas, a revelação de Deus.
O profeta Ezequiel estava longe da sua casa, exilado na Babilônia, mas no meio de um povo aprisionado e sem esperança que se recusava a acreditar na possibilidade de vencer o mal que tinha provocado a destruição do Templo e da cidade de Jerusalém. No entanto, mesmo que não entendam é bom que ouçam, para que um dia lembrem, e então aprendam (cf. Ez 2,5). Na Segunda Carta aos Coríntios se narra a luta do apóstolo Paulo com uma doença incurável. Como é possível que alguém que vive uma fé em Cristo capaz de curar outras pessoas, e até ressuscitar uma (cf. At 20,9-12), não consegue se livrar da própria doença? (2 Cor 12,7-8). Justamente, diz Paulo, para lembrar que se manifesta no que na sociedade de poder é visto como mais fraco, menor, menos importante.