Paisagens do Rio dos Sinos e do Rio Caí no século XIX pelas aquarelas de Herrmann Wendroth. Artigo de Caio Flores-Coelho

Herrmann Wendroth. Perda do cavalo e da bagagem na travessia do Rio Caí, ao vau, c. 1852. Aquarela (ALVES; TORRES, 2020, p. 24).

07 Junho 2024

É difícil encontrar fotografias da região dos vales do Sinos e Caí em meados do séc. XIX, mesmo tendo a fotografia sido difundida no Brasil a partir de 1840. Também é difícil encontrar ilustrações ou outros tipos de imagens dos vales do Caí e dos Sinos no período anterior à década de 1860. No entanto, duas aquarelas aparecem como um dos primeiros registros visuais deles. Neste artigo, Caio Flores-Coelho aborda a forma como podemos ver, pelas aquarelas de Wendroth, a forma de pensar a natureza do século XIX, especialmente no Rio Grande do Sul.

O artigo é de Caio F. Flores-Coelho, professor do Curso de Licenciatura em História e do Eixo de Humanidades da Unisinos, doutor em História pela PUCRS com pesquisa sobre o passado do antropoceno no rio Caí e a longa duração do convívio entre a população que colonizou a região de São Sebastião do Caí e sua percepção desta paisagem. É mestre em Antropologia Social pela UFRGS e licenciado em História pela Unisinos. É membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

Wendroth foi contratado pelo governo imperial brasileiro para lutar na Guerra contra Rosas (1851-1852). Ele chegou ao Brasil no primeiro ano da guerra e passou um período em terras gaúchas. Pouco se sabe sobre sua vida, mas os registros imagéticos que ele produziu apontam para uma estada prolongada no Rio Grande do Sul em várias localidades. O presente artigo aborda duas imagens realizadas pelo mercenário alemão e artista amador Herrmann Rudolph Wendroth. Desses locais por onde passou, dois registros importantes foram deixados por ele sobre a paisagem do Rio Caí e do Rio dos Sinos.

Uma delas é Perda do cavalo e da bagagem na travessia do rio Caí, ao vau, uma aquarela feita em 1852.

Herrmann Wendroth. Perda do cavalo e da bagagem na travessia do Rio Caí, ao vau, c. 1852. Aquarela (ALVES; TORRES, 2020, p. 24).

A imagem ajuda a visualizar a região do baixo vale do rio Caí e pode ajudar a entender um pouco o território antes da formação das cidades da região. Para melhor analisar a aquarela, realizaremos um estudo iconográfico a partir da metodologia proposta por Panofsky (1982). Aplicando essa metodologia à pintura, vemos que seu conteúdo primário mostra ao chão um homem sentado com as mãos ao rosto. Com uma série de objetos aos seus pés, ele é observado por um cachorro. Ainda neste primeiro plano, mas mais à esquerda, encontra-se um cavalo à beira da morte. Apesar de não claros, os traços apontam para uma região alagadiça, espécie de pântano, onde o corpo do cavalo ficou preso.

A linguagem corporal do homem à frente reflete a sensação a partir dos acontecimentos que discorrem em primeiro plano: não há formas de salvar o cavalo. A imagem revela que ele perdeu seu meio de transporte, acarretando perda financeira pela morte do animal e pela bagagem atrelada a ele. Em segundo plano, outro homem monta um cavalo e atravessa a região alagadiça. No entanto, aparentemente, ele está avançando até a margem com sucesso. Ainda no terceiro plano da imagem, encontramos a elevação do terreno, característica do limite sul da Serra Geral, e a presença de vegetação aos pés dessa formação. Essa representação de paisagem é um tema recorrente nas imagens de Wendroth, assim como de outros viajantes oitocentistas.

Outro tema repetido nas pinturas dos artistas-viajantes do século XIX foram as montanhas e recortes do relevo, que constituíram uma visão topográfica da paisagem. Nas aquarelas de paisagens naturais de Wendroth, a topografia da região é marcada pelas colinas e pelos chamados cerritos comuns no interior do Rio Grande do Sul (ZUBARAN, 2002-2003).

O significado intrínseco ou iconológico da imagem (PANOFSKY, 1982) que pode ser atestado é que se trata de uma passagem autobiográfica (ZUBARAN, 2002-2003, p. 51) de Herrmann Wendroth, que perde seu cavalo e sua bagagem ao atravessar um baixio do rio Caí. Essas travessias de vadeio mostram a precariedade da infraestrutura de transportes da época. Parcamente habitada, a região do Vale do Caí ainda não possuía zonas de trânsito bem estabelecidas.

Caso houvesse uma maior presença humana na metade do séc. XIX nessa região, haveria barcas, balsas e, possivelmente, pontes que, mesmo precárias, facilitariam o transporte ou a transposição das pessoas no terreno. Esse fato nos remete novamente ao Mapa 03, de 1778, que aponta a existência de uma estrada que ia até a margem oriental do rio Caí, porém não detalha a região e não aponta onde havia transposições via passos que poderiam ser usados para atravessar o curso d'água. Além disso, é possível notar que Wendroth está vestido com roupas de campo, com direito a esporas e punhal, tendo ainda ao seu pé, e jogados ao chão, seu cachimbo (ou revólver?!), caderno de desenhos e chapéu.

Possivelmente, a imagem mostra que esses objetos foram jogados à sua frente como uma forma de expressar a frustração em que se encontrava ao perder o cavalo. E, como o título da aquarela aponta que a ilustração se passa no vale do Caí, percebe-se que havia regiões alagadiças nesse vale e que isso constituía um problema para o trânsito de pessoas pela região.

Além disso, em terceiro plano, são vistos alguns montes do início da Serra Geral. Junto ao fundo, com sua elevação do terreno, há a composição de vegetação típica da mata atlântica, representada de forma bastante fechada, a tal ponto que, na visualização do autor, essa mata passa a ser apenas um borrão indiferente, o que nos leva a pensar que era impenetrável para Wendroth. A percepção do artista também reverbera na pesquisa de Bublitz (2008), em sua investigação sobre a percepção da “selva” pelos colonos alemães do estado. Segundo ela:

Além dessas árvores de maior porte, cujos troncos exibiam um emaranhado de cipós e trepadeiras, difundia-se uma densa vegetação rasteira e arbustiva, composta de milhares de espécies, quase impenetrável e às vezes repleta de espinhos. Para completar, tamanha biodiversidade se difundia ao longo de grandes vales, morros e escarpas rochosas – marcas, enfim, de um relevo na sua maior parte acidentado. Tratava-se, em geral, de uma área de difícil acesso para os colonos. Era uma região, além de tudo, entrecortada por rios caudalosos e encachoeirados em sua maior parte (BUBLITZ, 2008, p. 209).

Ainda em destaque no canto direito da ilustração, vemos duas mudas de jerivá (Syagrus romanzoffiana), mais comumente chamada de “coqueiro”, muito comum na região até hoje. Além disso, notamos a presença de arbustos característicos da região, especialmente se levarmos em conta que a Mata Atlântica do vale do Caí contém maricás (Mimosa bimucronata) e outros tipos de plantas de baixa e média estatura que tendem a se emaranhar, dificultando que pessoas adentrem espaços de mata fechada com facilidade. Além disso, é interessante salientar que o maricá, uma árvore espinhosa, se desenvolve principalmente em regiões alagadiças, solos úmidos ou brejosos. Wendroth captura, de certa forma com precisão, a natureza que se encontra na região. E, na metade do séc. XIX, essa área contava com pouca infraestrutura humana, dada a sua baixa ocupação e o pouco interesse em sua colonização. Ainda, Wendroth captura esses aspectos, reforçando-os como causadores de sua perda. Opõe-se, assim, as facilidades da “vida civilizada” ao ambiente natural. Este ambiente precisa ser domesticado para que se consiga explorar todo o seu potencial.

Existiu, ao longo do séc. XIX, a noção de que se deveria tornar o ambiente produtivo. Essa foi a base do empreendimento colonizador: tornar as grandes extensões de terra do Brasil meridional frutíferas. Há, portanto, uma relação entre economia e meio ambiente já desde a concepção da ocupação colonizadora.

A ilustração de Wendroth serve para reforçar a ideia de que o ambiente, tal qual ocorria no Rio Grande do Sul antes e durante o séc. XIX, não tinha em sua configuração original o que era necessário para o desenvolvimento econômico do Império. Portanto, o esforço de ocupação territorial se dedica a modificar a paisagem e o ambiente de forma a torná-lo mais produtivo. Essa ordenação do ambiente configura um processo de domesticação do espaço, no qual certos tipos de plantas e animais precisam ser inseridos e outros, retirados. Essa percepção não foi uma novidade, como vemos neste exemplo da Inglaterra do séc. XVII:

Por certo, todos concordavam que eram necessárias reservas de madeira, e que os bosques eram úteis para combustível e outros propósitos. Mas as árvores deviam ser cultivadas em terra inferior, em matas plantadas para corte ou para extração de madeiras nobres, regularmente cortadas e limpas. Para matas de qualquer outro gênero não havia lugar. Na década de 1680, John Houghton escreveu um ensaio para provar como seria bom que não houvesse nenhuma árvore num raio de 32 quilômetros de qualquer rio navegável. Em 1712, John Morton observava, com prazer, que havia muito poucas matas em Northamptonshire: “Num lugar habitado por gente civilizada”, as árvores não “podiam crescer. Deviam dar lugar a campos e pastagens, de uso e de interesse mais imediatos para a vida” (THOMAS, 2010, p. 278-279).

Portanto, derrubar as árvores era um exercício civilizacional. E para uma terra ser civilizada, ela precisaria ser “limpa” das árvores selvagens que não eram frutíferas e úteis. Elas deveriam ser substituídas por campos ou por árvores plantadas de forma “organizada”, em um ambiente bastante controlado. Chega-se mesmo ao ponto de considerar, conforme os escritos de Bublitz (2008), que caso esse trabalho não fosse realizado, os colonos se tornariam (sic) “escravos da terra”. Ou seja, eles precisavam garantir a propriedade da terra a partir de seu desmatamento, uma vez que “os colonos que dentro do prazo de dois anos não tiverem cultivado ao menos a oitava parte das terras concedidas, não residirem nelas e não edificarem, perderão o direito às mesmas” (Pedro Kleugden apud op. cit., p. 212).

Outra imagem de Wendroth que alude a essa visão da natureza “selvagem” a fim de ser subjugada é “Rio dos Sinos com aves aquáticas e flamingos”.

Herrmann Wendroth. Rio dos Sinos com aves aquáticas e flamingos, c. 1852. Aquarela (ALVES; TORRES, 2020, p. 268)

Segundo Ingold (2000), agir sobre o ambiente também é uma forma de percebê-lo. Sendo a paisagem um conjunto de características relacionadas em mutação constante, o taskscape é um conjunto de atividades relacionadas. Ou seja, estamos falando de um território que se transforma no tempo a partir de um conjunto de atividades relacionadas construídas socialmente sobre um conjunto de características relacionadas ao ambiente. Portanto, a paisagem vai ser percebida pelo engajamento dos sujeitos nas alterações necessárias a serem realizadas sobre esse ambiente.

Note-se nessa segunda imagem que além da presença da paisagem “natural”, composta de fauna e flora, temos também um barco onde repousa um remo e um homem de chapéu com seu braço erguido, apontando uma espingarda para as aves. Essa imagem que, como aponta a legenda, retrata o rio dos Sinos, mostra como a “selva” era vista como luxuriante, abafada e cheia de vida que precisava ser dominada pelo uso humano. As aves em seu habitat natural servem ao ser humano enquanto alvo para seu tiro.

Bublitz (2008, p. 209) menciona que, ao mesmo tempo que a “natureza” da floresta é descrita com adjetivos bestiais, é importante notar que, na visão europeizante, todos os elementos que compunham a mata do Rio Grande do Sul eram vistos como inimigo. Essa forma de se referir à natureza é, na verdade, apenas uma corroboração da mentalidade da época, reforçando novamente essa questão de sua domesticação.

Algo notável nos relatos reunidos pela autora menciona que a mata era fechada, com árvores gigantescas, cipós e arbustos baixos e espinhosos, que tinham uma tendência a emaranhar-se nas pessoas que tentavam cruzá-la. Ainda, segundo relato de Bublitz, os próprios indígenas detinham nomeações e adjetivações características da “selvageria”, da “selva”. O texto dela deixa perceber que existe uma equiparidade entre os animais e os povos indígenas para os colonos. Todos eram a alteridade a ser aniquilada.

O desmatamento, nesse sentido, vai ser uma ferramenta para a dominação do ambiente e para a transformação dessa paisagem. Isso porque esse desmatamento vai ser utilizado para tornar esses campos agricultáveis, tal qual os campos europeus antropizados desde, ao menos, a Idade Média. E isso nos serve para ver como víamos no século XIX a natureza e como, de certa forma, nossa visão geral da natureza continua sendo vista sob uma perspectiva utilitária.

Referências

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