15 Mai 2024
"Os cristãos solteiros aprendem que existe um projeto, um sonho de Deus para a sua vida; mas não podem se resignar com o fato desse sonho ser reduzido a um 'não ser': não casados, não consagrados, não pais", escreve Chiara Bertoglio, em artigo publicado por Avvenire, 12-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Chiara Bertoglio é concertista de piano, musicóloga, escritora e teóloga italiana. É mestra em Teologia Sistemática pela Universidade de Nottingham e doutora em musicologia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra.
Eis o artigo.
"Não casados, não consagrados, não pais". Mas as pessoas crentes solteiras estão cansadas de serem identificadas pela Igreja apenas com um “não”. Muitas vezes há um sofrimento profundo, o sentimento de ser marginalizados nas comunidades.
Vários anos atrás, uma amiga que administrava um portal de informação em inglês e de inspiração cristã me convidou para escrever algo sobre os solteiros cristãos e, mais ou menos no mesmo período, também do Avvenire, me foi feito um pedido semelhante. Assim começou a exploração de um tema que diz respeito a muitas pessoas, mas que até agora talvez não tenha sido tratado adequadamente: a condição das pessoas não casadas e sem relações afetivas estáveis no mundo atual, com uma atenção especial aos crentes cristãos. Estes, de fato, encontram-se numa situação particularmente delicada: normalmente, graças à sua formação humana e religiosa, acreditam no amor, sonham uma família sólida e fecunda, desejam responder à vocação para a geração que é inerente ao amor cristão... mas encontram-se sozinhos, muitas vezes sem saber o porquê, e vivenciando uma condição de profundo sofrimento. Às vezes se sentem errados, “não amáveis”; às vezes se percebem como não realizados, não resolvidos, também devido a uma orientação vocacional que reduz de forma muito simplista as experiências de vida cristã a um aut/aut [ou uma coisa ou outra] entre vocação conjugal e vida consagrada.
Os cristãos solteiros aprendem que existe um projeto, um sonho de Deus para a sua vida; mas não podem se resignar com o fato desse sonho ser reduzido a um “não ser”: não casados, não consagrados, não pais. E, na verdade, não pode ser assim: mesmo que a vida matrimonial não seja para todos o caminho para realizar a própria vocação à santidade e, aliás, nem mesmo a consagração religiosa é aconselhável a todos, é profundamente errado pensar que o sonho de Deus para muitas pessoas, cada vez mais numerosas, seja um sonho "negativo". É uma ideia realmente prejudicial, que pode minar a autoestima das pessoas e a sua confiança em Deus.
Por isso, é urgente encontrar o tempo para escutar as pessoas solteiras, para compreendê-las em profundidade; e articular, com elas e para elas, uma linguagem que permita compreender que “vocação” não é apenas casamento ou vida consagrada, mas é antes de tudo, na raiz, a vocação à filiação em relação ao Pai e à nupcialidade. Uma dimensão que cada crente deve ser educado para viver, porque está em uma relação íntima e exclusiva, embora profundamente eclesial, com Aquele que “está à porta e bate”, que se realiza na fecundidade primária de cada ser humano. Ninguém é chamado à esterilidade, ninguém é chamado a uma solidão “vazia”. Para todos, ao contrário, há o chamado à relação, à fecundidade, à generatividade.
Estas, porém, podem permanecer apenas belas palavras, palavras teologicamente estruturadas, mas que não conseguem tocar a vivência de pessoas muitas vezes feridas, muitas vezes profundamente sozinhas: é fundamental que a Igreja, nas suas instituições, nas suas hierarquias, mas também e sobretudo na sua vida vivida, litúrgica, sacramental e pastoral, saiba identificar as maneiras para fazer com que todos percebam, inclusive os solteiros, que cada um tem um lugar bem específico, único e insubstituível no tecido eclesial e aos olhos de Deus, e que esse lugar é e deve ser sempre fecundo, nupcial e generativo. Não por acaso, acredito, muitas das realidades cuja história contamos têm nomes que evocam uma plenitude, uma superabundância, àquele cumprimento de alegria e de graça que só Deus pode doar à vida de cada homem e cada mulher, em qualquer situação de vida em que se encontrem. Existem os "doze cestos" que, no Evangelho, recolhem a enormidade de pão que sobrou do generoso e transbordante milagre Jesus (12 ceste); há os encontros “no poço” (Incontro al pozzo), que aludem à água viva que Jesus doa à mulher samaritana, a quem ele próprio acabara de pedir água, fazendo dela depois, por sua vez, fonte que jorra para a vida eterna; existe o "sal" (Gruppo Sale) que realça o sabor do vida e torna saborosas as próprias pessoas para que se tornem “fontes de sabor” para a vida dos outros; existe Betânia (Gruppo Betania), ícone de relações tão plenas e fecundas que abrem a amizade para um profundo enriquecimento mútuo, comunhão intensa, alegria verdadeira.
Nesse livro conheceremos diferentes realidades, espalhadas pela Itália, Europa e América, bem como na internet, e que tentam dirigir-se, de forma diferente e complementar, à realidade dos solteiros cristãos.
Existem caminhos de acompanhamento de grupos de solteiros, iniciados por sacerdotes diocesanos e consagrados de diversas ordens religiosas (franciscanos, salesianos, carmelitas...), alguns com um viés mais espiritual, outros mais sócio/psicológicos; alguns que exigem empenhos de assiduidade, outros que são pensador mais como uma porta aberta para entrar e para sair.
Realidades que favorecem o encontro entre as pessoas e o crescimento humano e espiritual através de uma formação também cultural, além de permitir o estabelecimento de amizades significativas que, em alguns casos, também podem levar a relações de casal voltadas para o casamento. Em geral, muitas dessas realidades também visam ajudar pessoas solteiras a curar aquelas feridas do passado que muitas delas carregam consigo: noivados que terminaram ou nunca começaram, em alguns casos até casamentos que desmoronaram sob o peso da vida cotidiana ou de desgastes de vários tipos. Vários dos iniciadores desses caminhos também realizaram uma profunda reflexão sobre a temáticas dos solteiros, tanto do ponto de vista antropológico (como no caso de Dom Roberto Carelli) como teológico (como Dom Renzo Bonetti): naturalmente, os dois níveis se entrelaçam continuamente.
Além disso, há realidades que tentam coordenar outras realidades e propõem vias de acesso a percursos que muitas vezes são difíceis de encontrar ou descobrir, mas despertam o interesse quando são conhecidos: um exemplo disso é o portal Single Cattolici Italia que procura dar voz as tantas propostas que são realizadas em diferentes contextos.
Na segunda parte do livro exploramos outras realidades digitais, que podem ser superficialmente definidas como “sites de encontros católicos”, mas que na realidade são sempre muito mais. Em primeiro lugar, têm uma clara perspectiva de casamento, embora também se orgulhem das simples amizades que conseguem favorecer; em segundo lugar, promovem, por sua vez, a formação cultural e religiosa dos membros, e possibilitam oportunidades de encontros presenciais, com passeios, eventos, iniciativas de oração, peregrinações. Obviamente, pode haver perplexidades sobre o uso da internet para encontrar a alma gêmea, sobretudo se o ponto de vista a partir do qual se avaliam essas realidades for o da fé e da vocação: pode parecer quase um exagero recorrer a buscas na internet para encontrar a pessoa que Deus pensou como companheiro ou companheira de vida! No entanto, sabemos que a a rede digital é um meio, e como tal pode ser bem ou mal utilizado, de forma santa ou desviante. É uma oportunidade, que, utilizada de forma saudável e equilibrada, pode ajudar concretamente muitas pessoas a sair da solidão.
Contudo, trata-se de realidades que devem ser avaliadas com discernimento. Por isso, cada uma das histórias que contamos é acompanhada de pontos para reflexão e trabalho, que podem ser utilizados (até mesmo seletivamente) pelo indivíduo para uma revisão de vida ou pelo grupo para uma discussão e um diálogo.
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Para nós, solteiros, qual é o sonho de Deus? Artigo de Chiara Bertoglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU