18 Mai 2024
"Para os discípulos e as discípulas de Jesus, Páscoa é abandono, silêncio e tristeza", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
Segundo ele, "Pentecostes é a irrupção avassaladora do ‘Sopro do Senhor’ na sociedade judaica. (...) O que sabemos é que, na festa tradicional de Pentecostes, Pedro tem a coragem de abrir a porta do cenáculo, em Jerusalém, onde está refugiado com companheiros e companheiras, e de falar abertamente. É a vitória sobre o medo, o nascimento do cristianismo".
O artigo foi publicado originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 30-03-2024.
Diante dos progressos da ciência exegética, estamos hoje diante do desafio de recolocar narrativas esparsas, que nos vieram de uma longa tradição, como se fossem peças do um quebra-cabeça, numa nova narrativa de recuperação do movimento de Jesus após o trauma da crucifixão. É uma tarefa que desponta no horizonte, diante da incongruência de muitas narrativas que nos vêm do passado. Afinal, a tradição de Jesus já tem mais de dois mil anos e necessita de uma narrativa mais congruente com os progressos da ciência histórica.
Marcos evangelista conta que, três dias após a terrível morte de Jesus, na tradicional semana da Páscoa, não se encontra nenhum discípulo, nenhuma discípula dele, em Jerusalém: Quando os emissários do Grande Sacerdote puseram as mãos sobre Jesus e o prenderam, todos os seus discípulos o abandonaram e fugiram (Mc 14, 46-50).
Todos abandonam Jesus naquela fatídica semana que antecede a tradicional Festa da Páscoa, e que culmina com sua morte. Jesus morre só. Como um criminoso, executado segundo as leis estabelecidas. O Evangelho de João conta que o próprio Jesus previu esse desenlace: Vocês se dispersarão, cada um de seu lado, e me deixarão só (Jo 16, 32). Para os discípulos e as discípulas de Jesus, Páscoa é abandono, silêncio e tristeza.
Simão Pedro que, na hora da prisão de Jesus, ainda teima em acompanhar de longe o drama, não aguenta nem umas palavras de suspeita por parte de uma servente do Grande Sacerdote: Não o conheço, não sei de que você está falando (Mc 14, 68). E acaba fugindo também. Decide retornar à região do Mar de Genesaré, talvez na companhia de alguns companheiros pescadores, igualmente ex-discípulos de Jesus. Uma viagem de uns cinco dias. Ali resolve voltar à pescaria: ‘eu vou pescar’. ‘Vamos como você’ dizem os outros (Jo 21, 3).
Mas nenhum deles consegue esquecer Jesus. Nem Simão, nem seu irmão André, nem Tiago e João, os filhos de Zebedeu. Eles sabem: isso acabou. Foi bonito, mas acabou. O que eles, pescadores iletrados, vão argumentar diante das mais altas autoridades, que declararam que Jesus é um criminoso?
Mas a memória persiste. A figura de Jesus não deixa os apóstolos em paz e, quando vão à sinagoga nos sábados, escutam leituras de Isaías, dos Salmos, dos Profetas, que falam em Servo sofredor, Servo de Ihwh, Ungido pelo Sopro do Senhor. Em sua mente, tudo isso evoca Jesus. Ele é o Ungido de Deus enviado ao mundo, o Enviado do Pai. Martela a cabeça de Simão a palavra de Jesus, três vezes repetida: Simão, filho de João, se me amas, apascenta minhas ovelhas (Jo 21, 15-17). A situação angustiante dura meses, talvez mais de um ano. Voltar a Jerusalém? Enfrentar uma população que gritou Acabe com ele, crucifique! Nem pensar.
O segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos, redigido por volta de 120 dC, relata um fato sensacional, acontecido em Jerusalém, poucos meses (ou anos, não se sabe bem) após a morte de Jesus.
Como de costume, um grande número de judeus se reúne na Cidade Santa, por ocasião da tradicional festa judaica de Pentecostes. São judeus que vêm pagar o tradicional tributo ao Templo e comemorar um grande feito acontecido mais de mil anos atrás: Ihwh, do alto da montanha do Sinai, garante seu apoio aos hebreus fugitivos do cativeiro no Egito, que atravessando o deserto, conseguem chegar ao monte Sinai em apenas cinquenta dias.
Aludindo a esse feito histórico, a anual Festa comemorativa chama-se, em grego, Pentecostes (‘cinquenta dias’) e, em aramaico, Sukkôt (‘Festa das tendas’), um termo alusivo ao fato que os hebreus saídos do Egito viviam em ‘tendas’. Celebrada em outubro, a ‘Sukkôt’ é uma festa mais popular que Páscoa, festejada na primavera, pois nela se misturam variadas memórias: a colheita dos frutos do campo, a vida em tendas dos hebreus fugitivos do Egito, a chegada ao Monte Sinai após ‘cinquenta dias’ de caminhada após a escapada, ocasião em que Moisés recebe a Torá (Ex 15, 1).
Na ‘Sukkôt’, Jerusalém vive cheia de peregrinos, muitos vindos de longe, da diáspora. Lucas faz questão de mencionar que há gente de praticamente todas as regiões da parte oriental do Império Romano a participar daquela Festa (At 2, vv. 8-12).
Sabendo disso, alguns do grupo de apóstolos, na Galileia, ponderam: ‘Podemos nos aventurar e subir a Jerusalém para a festa. Ficaremos despercebidos no meio de tanta gente. Aí poderemos visitar os irmãos e as irmãs de Jerusalém’. Eles viajam e são bem acolhidos pelos/as companheiros/as no esconderijo do ‘cenáculo’. Muita gente, vinda de fora, chega a saber que existe, na cidade, um agrupamento de judeus seguidores de um Jesus de Nazaré, que venderam seus bens, distribuíram os benefícios dessas vendas em função das necessidades de cada um e, doravante, vivem numa comunhão de bens (At 2, vv. 44-45). Concentrados numa mesma casa, os discípulos acuados vivem de portas fechadas, sabendo que a oficialidade judaica está decidida a extirpar seu movimento.
De repente um estrondo. Lucas conta o ocorrido: Estavam todos reunidos no mesmo lugar, quando, de repente, um estrondo. Parecia a passagem de um vento violento a invadir a casa onde se encontravam. Eles viram línguas de fogo se repartir e se pousar sobre cada um. Nesse momento, todos, cheios do Sopro Santo, falavam o que o Sopro lhes dava a dizer, em línguas diversas (Atos 2, 1-4).
Muita gente corre ao local. Concentra-se uma multidão à frente da casa. Simão Pedro, um dos reclusos, abre a porta e sai em direção da conglomeração. Lucas conta, no versículo 14 do capítulo 2 dos Atos, que Pedro se levanta com os onze e, com voz firme, se dirige à multidão presente. Uma fala contundente, acusadora mesmo: Esse mesmo Jesus, que vocês crucificaram, Deus, Ele mesmo, o fez Senhor e Cristo (‘Ungido’) (v. 36).
Pedro tem a coragem de acusar os simpatizantes dos assassinos do líder galileu, ao mesmo tempo em que apela vigorosamente para que eles mudem de postura (‘metanoia’, em grego) e aceitem a verdade dos fatos: Jesus de Nazaré não é um malfeitor. Ele é o Escolhido de Deus, o Ungido do Senhor. O maior entre os filhos de Abraão.
Eis a vitória da coragem sobre o medo, o momento do nascimento do cristianismo: Nós somos o Novo Israel! (Atos 2, 14-36).
Há um detalhe importante: vindos dos mais diversos recantos do Império Romano oriental, as pessoas compreendem perfeitamente o que Pedro diz em aramaico, sua língua materna: ‘Como é que cada um de nós entende essas palavras em sua língua materna, partas, medas, elamitas, gente da Mesopotâmia, da Judeia, da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e da Líbia, romanos de passagem, judeus, prosélitos, cretenses e árabes ?’ (At. 2, vv. 8-11).
Sucesso excepcional: dos 120 aderentes ao novo movimento, assinalados em Atos 1, 15, se pula de vez para 3 mil após o discurso de Pedro (2, 41), e para 5 mil, logo depois (4, 4). Aderiram, no Senhor, multidões de homens e mulheres (5, 14); A multidão dos crentes era um só coração e uma só alma (4, 32); O número dos discípulos multiplicava-se enormemente em Jerusalém (6, 7).
No dia de Pentecostes, um Sopro Santo desce em línguas de fogo, confere força aos apóstolos no sentido de afirmar em praça pública a novidade de Jesus, um novo jeito de viver, fraternidade, acolhimento, atenção aos pequenos e rejeitados deste mundo. Isso cria entusiasmo entre as camadas mais pobres, nas cidades e nos campos por onde o movimento se espalha. Pentecostes é a irrupção avassaladora do ‘Sopro do Senhor’ na sociedade judaica.
Sabemos que Lucas gosta de exagerar, mas, mesmo assim, deve ter havido uma considerável multidão (11, 24) a optar por participar do movimento de Jesus. Essa multidão passa a ser chamada igreja, uma palavra grega equivalente a ‘sinagoga’ ou ‘assembleia’: As igrejas cresciam em número, de dia em dia (16, 5).
O momento provoca inquietação no seio do judaísmo ortodoxo de Jerusalém. Aparece algo diferente da religião dos burocratas do Templo, dos fariseus e saduceus, dos letrados e dos sacerdotes. Passa por camponeses, pescadores e publicanos, mulheres e crianças, ignorantes e pecadores. E isso inquieta os judeus bem pensantes.
Depois de Pentecostes, o movimento de Jesus se espalha rapidamente pelo mundo. A perda do Templo e da Cidade Santa, por sucessivos golpes políticos, entre 70 dC e 135 dC, é um desastre para os judeus ortodoxos, não para o jovem movimento. Com a eliminação de Jerusalém enquanto centro religioso, as famílias sacerdotais hereditárias e a alta classe judaica se arruínam definitivamente.
Surge, entre 70 e 200 dC, um judaísmo rabínico, que existe até hoje. Ele oferece um modelo organizatório ao jovem movimento de Jesus. O rabino toma o lugar do sacerdote judeu. Em vez de ser ‘homem do templo’, ele se torna ‘homem do livro’, o ‘mestre’ (rav) conhecedor das letras da Torá e mais tarde do Talmud, o ‘sábio’ (chacham) da comunidade. Não é ‘líder’, nem detém poder além do poder da palavra que interpreta. Pois, na sinagoga, a Palavra de Deus reina soberana. O rabino não recebe pagamento por seu ensinamento, pois a palavra de Deus é gratuita. Ele tem de arranjar uma profissão para se sustentar. Enfim, o rabino é o homem da palavra e da reflexão, não do rito. Não se compara com o clérigo no cristianismo posterior. É um leigo, sem maiores poderes que os demais participantes da sinagoga.
Eis o modelo do cristianismo no século II, como verificamos em figuras como Hermas, Marcião, Valentino e Justino. Um cristianismo de mestres e discípulos, não de sacerdotes e fieis.
Com a destruição de Jerusalém como centro religioso por dois sucessivos golpes, o movimento de Jesus mergulha, por assim dizer, no anonimato. Doravante aparecem textos menores, provenientes do mundo anônimo das comunidades como cartas, evangelhos apócrifos, atos dos apóstolos (igualmente apócrifos), apocalipses, visões, enfim, uma vasta literatura, até hoje insuficientemente conhecida.
Essa literatura revela um movimento ligado à vida nas famílias, onde se aprende a amar, falar menos e escutar mais, lutar para ganhar o pão de cada dia, preparar os alimentos, suportar o eventual incômodo da convivência entre familiares, respeitar a liberdade do outro (da outra), educar os filhos, socorrer o irmão necessitado. O movimento fica mais pragmático e procura harmonizar as exigências radicais de Jesus com a cotidianidade da vida. Repetitivos e lentos, os textos que nos chegam desse período não contêm grandes novidades, mas traduzem a seu modo a novidade cristã.
O judaísmo oficial não consegue compreender o momento. Isso leva a um infeliz confronto entre as comunidades de seguidores de Jesus e o judaísmo oficial: as primeiras não se sentem mais ao abrigo nas instituições do rabinismo judaico tradicional e criam um novo rabinismo, expondo-se à eventualidade de uma intervenção por parte de lideranças organizadas dispostas a ‘pôr ordem na casa’.
Afinal, Pentecostes é uma experiência de vida nova. A admiração que sentem os que se deixam atrair pelo movimento não se deve atribuir unicamente a pretensos fenômenos extraordinários (com os relatados no capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos), mas também ao fato que as pessoas percebem, nos seguidores de Jesus, um novo jeito de se viver, um clima de fraternidade e acolhimento, uma atenção aos pequenos e rejeitados deste mundo. Lucas focaliza isso em diversos momentos. Isso deixa profunda impressão.
Elenco aqui, de passagem, alguns sinais novos que aparecem com o movimento de Jesus, que recolho em textos do Novo Testamento e da Tradição do segundo século:
Afinal, o discurso de Pedro, no dia de Pentecostes, aconteceu no mesmo ano da morte de Jesus ou num ano posterior? Não sabemos. O que sabemos é que, na festa tradicional de Pentecostes, Pedro tem a coragem de abrir a porta do cenáculo, em Jerusalém, onde está refugiado com companheiros e companheiras, e de falar abertamente. É a vitória sobre o medo, o nascimento do cristianismo.
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Páscoa ou Pentecostes? O nascimento do cristianismo. Artigo de Eduardo Hoornaert - Instituto Humanitas Unisinos - IHU