A fome como arma de extermínio e direito à memória. Destaques da Semana no IHU

Confira os destaques de 16 a 22 de março

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: João Vitor Santos e Cristina Guerini | 25 Março 2024

O tema central deste informe é a fome. Não a falta de comida, mas a impossibilidade de acessar o alimento. É assim que muitos em Gaza sofrem a guerra, pois, como no passado, a carestia nutricional tem sido usada como forma de extermínio de povos. Lembrar do passado de fome e também da repressão em suas diversas formas é ter presente que este quadro não pode se repetir no futuro. Neste resgate, refletimos sobre como as dores do mundo ecoam em tempos de Quaresma e, de olho na conjuntura nacional, problematizamos a proposta de Lei dos Aplicativos.

Fome como estratégia

A situação de Gaza é cada vez mais dramática. A guerra em si destrói vidas e territórios, mas uma das faces mais perversas dos ataques de Israel tem se revelado no uso de uma arma: a fome. Em uma entrevista que publicamos esta semana, Bruno Huberman destaca, diante de uma realidade em que 13 mil crianças foram mortas: “as imagens que temos visto e os relatos que temos visto e ouvido sobre a situação atual em Gaza nos remetem, cada vez mais, ao Gueto de Varsóvia, aos campos de concentração, que são espaços nos quais os judeus foram confinados para morrer, assim como os palestinos estão confinados para morrer, seja pelas bombas caindo do céu, seja pela fome ou por tiros”.

Crime de guerra

E não são somente os analistas que apontam que a fome tem sido usada como arma de guerra. A ONU também foi enfática ao denunciar que pelo menos 210.000 pessoas estão sofrendo de fome no norte de Gaza e pede o imediato cessar-fogo.

Os Estados Unidos tem ficado em rota de colisão com o governo de Israel pelas suas ações de envio de alimento ao povo de Gaza ou pelo pedido de cessar-fogo na ONU. O que não exime Biden, presidente de um dos países mais belicosos do mundo, de ganhar um belo puxão de orelhas.

Live para discutir Gaza

A questão de Gaza é complexa e muitos alegam que para além das diferença com a Palestina foi o Hamas quem incendiou o conflito com Israel, o que é verdade. Mas o que choca é a desproporção na reação. O povo palestino, há anos purgado e espremido no Oriente Médio, é sempre o lado mais fraco.

É neles que a dor da fome e da guerra calam mais alto. Tensionado a refletir ainda mais sobre este cenário, o IHU promoverá uma videoconferência em 9 de abril, às 10h. Participam o jornalista Luiz Cláudio Cunha, autor de Varsóvia e Gaza: dois guetos e o mesmo nazismo, ensaio publicado no Cadernos IHU ideias; o professor e ex-reitor da Universidade de Brasília – UnB, José Geraldo de Sousa Júnior – UnB; e o historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Michel Gherman.

 

Não é primeira vez

O uso da fome como uma estratégia de guerra, como a que ocorre em Gaza, não é novidade. Outros tristes capítulos da história revelam que impedir o acesso à comida tem sido uma das práticas de extermínio mais recorrentes e perversas. Entre estes capítulos está Holodomor, ou A Grande Fome. Holodomor foi um período de fome na Ucrânia, ainda sob a jurisdição Soviética, entre 1932 e 1933, que causou a morte de milhões de ucranianos. Embora controverso, a historiografia tem reconhecido que estas pessoas morreram a partir de uma estratégia do governo de Stalin.

O filme de Agnieszka Holland, A Sombra de Stalin (2019), faz memória a este fato do passado. Mais do que para os ucranianos, ainda em guerra, mas para a humanidade, lembrar deste genocídio deve ser uma forma de lutar para que a fome não volte a ser usada como uma das mais perversas armas de guerra.

Insistência insana

O mais impressionante é que a guerra na Ucrânia de 2024 também tem na fome uma sombra muito presente de Holodomor. E a mesma Europa que gestou e viveu duas grandes guerras, e depois muita crise e fome, parece ignorar as chagas do passado. Vide a França com a insistência de colocar tropas ocidentais na Ucrânia, e a Alemanha, que quer chegar ao pódio nesta corrida de morte, enquanto Putin, empoderado com a eleição, volta a bradar suas ameaças ao mundo.

13 anos de uma guerra esquecida

Lá se vão 13 anos desde o começo da Guerra na Síria, que levou a um êxodo de mais de 13 milhões de pessoas. Apagada pela história das guerras recentes, a população passa por uma onda de violência interminável e 7,5 milhões de crianças dependem de ajuda humanitária - urgente - para sobreviver

As vítimas na cruz do Cristo

Nestes tempos tão sombrios de fome e guerra, é na cruz de Jesus Cristo que, especialmente àquelas e àqueles que seguem a tradição cristã, rememoram-se o Filho de Deus e sua entrega em sacrifício. Estamos na Quaresma, que tem entre um dos seus princípios refletir como a dor de Cristo exprime as dores do mundo. Então, se Ele já se entregou, por que tanto sofrimento ainda é gerado? Com esta provocação o IHU promoveu uma conferência com o professor Antônio Ronaldo Vieira Nogueira, da Faculdade Católica de Fortaleza – FCF, em que refletiu como a cruz de Jesus deve ser também compreendida como uma extrema compaixão para com as vítimas destes tempos.

E, nesta mesma linha, tensionando para uma Teologia que saia de si e olhe com os olhos do mundo, o IHU realiza mais uma videoconferência, desta vez com Leonardo Boff. O encontro, intitulado O mal no mundo e o silêncio de Deus. Crux theologorum, será na próxima terça, 26-03-2024, às 10h.

Não nos esqueçamos...

... que enquanto os cristãos no Ocidente vivem a Quaresma, em Gaza os palestinos nem sequer conseguem superar a fome para viver seu Ramadã.

Brasil da fome

Por aqui, no Brasil a fome também é uma realidade no campo, na cidade e até na floresta. Tanto é que ela volta a ser tema central na Encontro Nacional da 6ª Semana Social Brasileira. E, revela-se em nosso país de muitas formas. Por isso, a erradicação da fome requer compromisso de todos. São necessárias ações concretas e não que somente gerem manchetes. O caso Yanomami é emblemático, pois um ano depois da comoção nacional, este povo ainda convive com a fome.

Fazer memória para construir um futuro

Fazer memória de capítulos tão tristes da história são fundamentais, pois é no presente que ressignificamos nosso passado para construir outro futuro. E é na memória dor das vítimas que as mantemos vivas. O problema é quando escamoteamos o direito à memória, como fez o governo do Brasil neste 2024, em que se lembra os 60 anos do golpe civil-militar. Afinal, foi de um destes escamoteamentos que emergiu o 8 de janeiro. Como pontua Gabriel Vilardi, “ter permitido que os crimes da ditadura permanecessem no passado e assumir uma postura prospectiva não foi suficiente para evitar a bem concreta e bastante perigosa tentativa de golpe no ano passado. A cada semana o país assiste estarrecido a novas revelações da trama golpista, com o envolvimento de militares de alta patente, empresários, políticos e líderes religiosos fundamentalistas”.

Em tempo: o IHU está realizando uma série de conferências, fazendo memória destes 60 anos de golpe.

 

No começo de abril, teremos um novo encontro para discutir o tema.

Lei dos aplicativos

Destacamos ainda a falácia do projeto de lei do governo que visa regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativos. Como adverte Ricardo Antunes, urge repudiar esse PL, que aprovado, pode se tornar uma derrota cabal para todos os trabalhadores. E mais: em live desta semana, ficou claro que a regulamentação pode abrir brechas para desvertebrar a própria CLT, transformando o mundo do trabalho não só em mais tecnológico, mas, também, com trabalhadores cada vez mais fragilizados.

Brasil, a patrola do atraso!

Enquanto 2024 bate todos os recordes do aquecimento antrópico e o planeta clama por uma saída frente ao colapso climático, o arcaico Congresso Nacional corre para o fim da fila, deixando livre a patrola do agronegócio.

A "Câmara dos Deputados aprovou, o PL 364/19, que elimina a proteção ambiental da vegetação nativa nas chamadas 'áreas não florestais' em todo o país. O projeto – de autoria do ruralista Alceu Moreira (MDB-RS) e relatado pelo também ruralista Lucas Redecker (PSDB-RS) – expõe campos nativos em todos os biomas brasileiros à conversão para expansão agrícola. Cerca de 48 milhões de hectares dessas áreas em todo o país – uma extensão maior que o Paraguai – ficarão sujeitos ao trator”, explicou o Observatório do Clima.

São José, o “macho beta”

Essa semana fizemos memória a São José, lembrando que ele é um belo exemplo para condenar o patriarcado e o machismo do nosso tempo, com o artigo de Michela Murgia: “A masculinidade do presente e do futuro poderia encontrar uma ampla inspiração em uma figura [São José] tão difícil de enquadrar nas categorias da dominação e da posse, alguém que, dentro da lógica de bando estruturada pelo patriarcado, seria rejeitado por ser e permanecer um 'macho beta’”.

Sempre atentos a um passado, ressignificado no presente, e com o esforço de construir um futuro melhor, desejamos uma ótima semana a todas e todos!