21 Março 2024
"PLC dos Apps legaliza a informalidade digital e transfere os riscos aos trabalhadores. Em síntese, direitos são negados em nome da modernização das relações laborais e de uma ambição neoliberal: eliminar o tempo de trabalho não produtivo", escreve Matheus Silveira de Souza, Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogado. Professor universitário.
Se a configuração atual do mundo do trabalho não foi constituída a partir de grandes rupturas, mas é fruto de mudanças moleculares, que foram ocupando progressivamente os poros do universo laboral, alguns mestres do pensamento social brasileiro identificaram certas tendências quando elas ainda eram embrionárias e pouco perceptíveis, como é o caso de Francisco de Oliveira.
No clássico texto O Ornitorrinco, Chico de Oliveira identifica uma tendência progressiva de desaparecimento da jornada de trabalho, pois essa seria um obstáculo para o aumento da produtividade do capital. Segundo Chico, o aumento da produtividade depende da diminuição entre o tempo de trabalho total e o tempo de trabalho de produção. Isso porque, o capital tem uma luta constante para tentar diminuir a distância entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho. Em termos didáticos, imaginem um trabalhador de escritório, assalariado, que dispõe de uma jornada diária de 8 horas. É óbvio que o indivíduo não produzirá durante as suas 8 horas de trabalho, pois será remunerado em momentos de não trabalho durante a jornada (idas ao banheiro, uso do celular, períodos ociosos e sem demanda, etc).
Entretanto, algumas atividades, como o comércio informal de ambulantes, excluem o tempo de trabalho não produtivo, fazendo com que o rendimento do trabalhador dependa “do resultado da venda dos produtos-mercadorias”[1], pois o indivíduo só receberá o pagamento quando ocorrer a realização do valor da mercadoria. Exemplificando a questão, o ambulante só recebe algum valor na medida em que vende um refrigerante e, ao mesmo tempo, seu rendimento ocorrerá na proporção de refrigerantes vendidos. O trabalho informal representa um salto em direção à produtividade, pois “o capital usa o trabalhador somente quando necessita dele”[2], na exata medida da demanda do capitalista.
A existência de uma jornada de trabalho é um obstáculo para que o capital possa diminuir a distância entre tempo de trabalho total e tempo de trabalho de produção. Chico de Oliveira está anunciando que a jornada de trabalho e os direitos inerentes a ela, por serem um obstáculo para o aumento da produtividade, serão cada vez mais eliminados dos postos de emprego. Nas palavras do sociólogo pernambucano: “o setor informal apenas anuncia o futuro do setor formal”[3].
É curioso observarmos que Chico escreve O Ornitorrinco em 2003 e, neste momento, anuncia a aposta de que o trabalhador sob demanda, típico do emprego informal, irá se espalhar no universo laboral, com a progressiva exclusão da jornada de trabalho. A empresa Uber, que dá nome ao fenômeno da uberização, foi criada em 2009 e começa a operar no Brasil apenas em 2015.
Uma característica central da uberização é a transformação de trabalhadores em trabalhadores just in time, ou seja, a imposição de uma disponibilidade permanente ao trabalho por parte dos indivíduos, consolidando um trabalho sob demanda. Assim, embora o indivíduo esteja permanentemente disponível para o trabalho, receberá tão somente pelas demandas pontuais que realizar. De acordo com Ludmila Abílio, “trata-se da redução do trabalhador a um fator de produção que deve ser utilizado na exata medida das demandas do capital”[4].
A consolidação do trabalhador just in time aparece como uma forma moderna de informalidade, pois o motorista da Uber ou o entregador do iFood são remunerados na exata medida das demandas da empresa-plataforma. Essa informalidade digital significa que “para esses trabalhadores, permanecer na rua, disponível para a empresa, durante 18 horas por dia não significa ser remunerado por 18 horas de trabalho. A condição do trabalhador just in time é estar disponível para ser imediatamente utilizado, mas ser remunerado unicamente pelo que produz”. Assim como o ambulante receberá de acordo com o número de produtos que vender, o entregador terá seus rendimentos na proporção dos pedidos que realizar.
Não é por acaso que no GT criado para regulamentar o trabalho por aplicativo, uma das maiores reivindicações dos entregadores é o pagamento da hora logada. De acordo com Leonardo, uma das lideranças que participa do GT: “É preciso acabar com o tempo grátis que o trabalhador fica à disposição da plataforma: tempo logado é tempo de trabalho e precisa ser pago”[5]. Se o capital possui uma luta constante para diminuir a distância entre tempo de trabalho e de não trabalho, a consolidação do empregado just in time resolve essa disputa em favor das empresas aplicativos.
Para Marx, o salário constituía um capital variável, representando um adiantamento do capitalista ao trabalhador, antes da realização do valor das mercadorias[6]. Um assalariado que produzia sapatos não dependia da venda dos sapatos para receber um pagamento. Na informalidade dos ambulantes, bem como na dos motoristas e entregadores de aplicativo, os rendimentos dependem da realização do valor das mercadorias (sejam elas um bem material, imaterial ou um serviço).
O salário aparece como adiantamento do valor ao trabalhador pelo fato de que o capitalista está comprando a força de trabalho e os meios de produção para, futuramente, os indivíduos produzirem um valor que será realizado com a venda das mercadorias. Na representação descrita por Marx no livro 2 de O capital: D-M (T e Mp) …. Produção …..M’-D’7. Assim, o capitalista paga o salário ao trabalhador, adiantando um valor que ele ainda não produziu. Na informalidade digital não há esse adiantamento, pois o indivíduo só receberá quando realizar a venda das mercadorias, de tal modo que a extração da mais valia ocorre sem que o valor seja adiantado ao trabalhador. Embora o trabalho por peça esteja previsto no artigo 78 da CLT desde a década de 40, a expansão dessa modalidade tem se espraiado mais intensamente nos últimos dez anos.
É comum observarmos, em alguns estudos sobre uberização, o uso da categoria salário por peça – abordada por Marx no livro 1 de O capital – para explicar o pagamento recebido pelos entregadores ou motoristas de aplicativo[8]. Embora essa categoria seja útil para compreendermos o trabalho por plataformas, há uma diferença fundamental que é esquecida nessa explicação. No salário por peça, o trabalhador não recebe apenas quando há a realização do valor da mercadoria produzida. Em termos didáticos, o marceneiro não precisa que a cadeira que produziu seja vendida para que ele receba o pagamento. No caso dos vendedores ambulantes, e guardadas as diferenças, no caso dos entregadores plataformizados, o pagamento depende da realização do valor da mercadoria.
A jornada de trabalho – e os direitos inerentes a ela – tornou-se um obstáculo para a acumulação do capital, de modo que tende a ser paulatinamente desconstruída. Essa desconstrução de direitos historicamente conquistados ganha a aparência, todavia, de uma modernização das relações laborais. Quem quiser embarcar na locomotiva da modernidade que se acostume a jogar fora seus direitos. Como disse Gilmar Mendes em decisão do STF sobre o tema, as decisões da Justiça do Trabalho que buscam garantir determinados direitos aos trabalhadores uberizados são “uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção, os quais têm sido acompanhados por evoluções legislativas nessa matéria”[9]. A evolução, nesse caso, seria retornar às condições de trabalho do século XIX[10].
O Projeto de Lei apresentado pelo governo federal no dia 4 de março[11], ao criar a figura do trabalhador autônomo por plataformas está, em verdade, legalizando a informalidade digital e legitimando que os riscos da atividade sejam suportados pelo empregado, mesmo que parte dos seus ganhos sejam extraídos pelas empresas aplicativos. Na disputa entre capital e trabalho, mais uma vez a solução é construída em benefício dos 0,1% da população. O trágico da situação é lembrarmos que os interesses beneficiados pelo projeto de lei são daquelas mesmas frações de classe que apoiaram o golpe parlamentar em 2016 e a eleição da extrema direita nas últimas duas eleições.
[1] OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 136
[2] OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013.
[3] OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 136.
[4] ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Revista Estudos Avançados – IEA – USP, v.34, n. 98, p.111-126, 2020.
[5] BRASIL DE FATO. Representantes dos trabalhadores por aplicativo rejeitam proposta das empresas e indicam greve, 2023.
[6] OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 137.
[7] D = Dinheiro; M = Mercadoria. T e Mp significam, respectivamente, trabalho e meios de produção. Assim, o capitalista utiliza o dinheiro para comprar duas mercadorias, quais sejam, força de trabalho e meios de produção. M’ = Mercadoria e mais valor e D’ = dinheiro e mais valor.
[8] Em síntese, se no salário por peça o marceneiro recebe de acordo com o número de cadeiras que produz, e não de acordo com a jornada de trabalho, os entregadores do Ifood, de forma similiar, recebem na proporção das encomendas que realizam.
[9] UOL. STF aceitou 63% dos pedidos para anular vínculo de emprego.
[10] KREIN, José Dari; DUTRA, Renata. Trabalho: o novo seria voltar ao século XIX? Publicado aqui.
[11] BBC. Motoristas de app: O que pode mudar com projeto de lei que regulamenta trabalho por aplicativo. Disponível aqui.
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Uberização e a insistente ideia de “autonomia”. Artigo de Matheus Silveira de Souza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU