19 Março 2024
"Há, em algum lugar de nossa interioridade, um ponto qualquer que é como a folha que é levada pelo vento. Esse ponto não pede pouso, não pede conclusões, não pede certeza alguma, pede apenas para nos entregarmos ao Ser livre que nos guia", escreve Marília Murta de Almeida, professora e pesquisadora do Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
O teólogo Karl-Josef Kuschel, em seu livro Os escritores e as escrituras, ao propor a teopoética como uma via para se falar de Deus na contemporaneidade, sugere, a partir de uma citação do poeta e teólogo Kurt Marti, que talvez Deus mesmo tenha deixado poetas à sua disposição porque seriam aptos a falar d’Ele sem reduzi-Lo a qualquer tipo de definição. Ou seja, o modo poético de falar seria aquele que se resguarda da pretensão de abarcar o que escapa sempre.
Entretanto, como o desejo humano de dominar o que quer compreender não tem fim, há sempre o risco de definir e abarcar a própria poesia, contrariando o alerta do poeta brincante Mário Quintana, em seu Caderno H: “A poesia não se entrega a quem a define”.
A poesia, como Deus, é livre e só se entrega ao poeta que não a aprisiona. Deus, como a poesia, é livre e nos chama à entrega.
Deus é livre e é a Sua liberdade que pode nos guiar.
O que pode significar para nós, seres humanos sempre sedentos de orientação e certeza, a ideia de sermos guiados por um Ser livre? Certamente algum nível de instabilidade e a consequente angústia. O Ser que é livre tem o poder de nos surpreender sempre. O Deus livre nos quer também livres e por isso nos liberta. O Deus livre é libertador porque a Vida que Ele sonhou para nós – a Vida em abundância! – é a Vida na liberdade, como a d’Ele.
Mas a vida na liberdade requer de nós suportar um bocado de incerteza. É preciso que aceitemos não saber e não conhecer com exatidão o mundo que nos cerca, o Deus que nos guia e mesmo a nós mesmos – nós, que nascemos com um aparato cerebral pronto para conhecer! E aqui vale a pena lembrar uma famosa passagem de Clarice Lispector: “Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras”.
Só nos entregando ao não entendimento temos a chance de penetrar no espaço do que não tem fronteiras. Só não sabendo posso plenamente descansar e me deixar guiar por Aquele que me guiará por onde a Sua vontade escolher passar. E na incerteza não conseguimos entender plenamente a força do Deus criador que fez nascer o mundo porque esse foi o seu desejo. E seguimos nos surpreendendo com as ações de Jesus que tantas vezes parecem revirar ao avesso aquilo que seria esperado pela consciência de sua época, mas também da nossa época. E menos ainda podemos alcançar o movimento do Espírito que sopra onde quer.
No Livro do Eclesiastes, o autor bíblico nos faz ouvir que buscamos saber e conhecer e que isso é “perseguir vento” (Ecl 1,16-17). É correr atrás do vento e tentar prendê-lo, mas “o vento vai para o sul e vai para o norte, / gira, gira e vai embora, / sempre retoma o seu curso, o vento” (Ecl 1,6).
O sopro livre do vento que levanta consigo folhas, flores e o que mais puder nos remete imaginariamente ao fluxo da liberdade. Mas imaginarmo-nos como a folha que é levada pelo vento pode gerar intensa angústia. Sem pretender desconsiderar a importância do chão firme para que sejamos capazes de atravessar a vida com o mínimo de estabilidade necessária a nosso corpo e nossa alma, proponho que nos deixemos levar pela imagem da folha ao vento.
Há, em algum lugar de nossa interioridade, um ponto qualquer que é como a folha que é levada pelo vento. Esse ponto não pede pouso, não pede conclusões, não pede certeza alguma, pede apenas para nos entregarmos ao Ser livre que nos guia.
Talvez nosso ponto-folha esteja tão escondido que não consigamos percebê-lo. Mas ele há de existir em cada um de nós. Ele é o ponto capaz de se entregar e que nos convoca para a entrega. O ponto capaz de Deus, para usar uma expressão cara à teologia.
Ele é o ponto em nós que diz sim e se deixa guiar, como a mulher que aceitou gerar o Deus-Menino e enveredou por um caminho desconhecido, entregue à Palavra que a chamou. E assim o sentido mesmo da palavra liberdade se deixa levar pelo movimento da folha entregue ao vento. Se liberdade soa às vezes como poder de escolha e decisão, potência humana de autodeterminação, a liberdade que nos oferece o Deus livre é de outro tipo. É a liberdade de nos deixarmos guiar pela Sua liberdade. Não porque cremos que Ele sabe o que faz. Mas porque amamos a Sua liberdade.
Nessa entrega, a relação que podemos ter com Deus apresenta sua outra face. A face desta relação que normalmente conhecemos é aquela que nos diz da companhia do Deus que está conosco onde estivermos. A outra, quase oculta, nos chama a estar com Ele, ao modo d’Ele, como a folha carregada pelo vento.