19 Fevereiro 2024
“Sabemos que o crescimento da extrema direita é um fenômeno mundial, não é nem de longe uma particularidade da Alemanha e, inclusive, temos nossa própria experiência brasileira para contar. Aqui, no entanto, adquire um caráter singularmente dramático devido ao passado nazista não muito distante em termos históricos”, escreve Didice Godinho Delgado, assistente social com Mestrado em Serviço Social, que mora em Berlim desde 2014 e integra a organização Fórum Latino-Americano de Berlim (LAF), em artigo publicado pelo blog da Revista Espaço Acadêmico, 15-02-2024.
Na Alemanha, a extrema direita cresceu nos últimos anos e ganhou representação no parlamento nacional (Bundestag) e em todos os estaduais através do partido AfD (Aliança para a Alemanha). O AfD foi criado em 2013 tendo como pauta principal a agenda econômica neoliberal e antieuro. Candidatou-se no mesmo ano às eleições parlamentares nacionais, mas não alcançou a porcentagem mínima de 5% de votos exigida para entrar no parlamento. Pouco a pouco a extrema direita foi ganhando predominância no interior do partido e escanteando as lideranças originais. Nas eleições parlamentares de 2017, o AfD teve 12,6% dos votos e entrou no Bundestag. Em 2021, baixou a 10,3% dos votos, mas garantiu sua permanência na atual legislatura.
O AfD está em franca ascensão. Nas pesquisas eleitorais, é o segundo partido na preferência do eleitorado, atrás somente do CDU/CSU (Democracia Cristã). Em pesquisa de 12 de janeiro deste ano, 22% das pessoas consultadas responderam que votariam no AfD se as eleições parlamentares nacionais fossem no domingo seguinte, 31% votariam no CDU/CSU, 14% no partido dos Verdes, 13% no SPD (Social-Democracia), 4% no Die Linke (A Esquerda) e 4% no BSW (Aliança Sahra Wagenknecht).[1]
Os partidos da coalizão governamental (SPD, Verdes e FDP) estão em queda progressiva. A Democracia Cristã (CDU/CSU) lidera a preferência do eleitorado e na oposição ao governo, porém, quem mais cresce é o AfD. Ele é mais forte nos estados da ex-Alemanha Oriental, mas tem expandido seu apoio também naqueles da ex-Alemanha Ocidental. O exemplo mais recente disso vem do importante estado de Hessen, no centro do país: nas eleições parlamentares estaduais de outubro de 2023, o AfD teve 18,4% dos votos, 5,3% a mais do que nas eleições anteriores de cinco anos antes (na Alemanha, o calendário das eleições estaduais não é unificado como no Brasil, cada estado tem eleição em uma data diferente e nenhuma coincide com as eleições parlamentares nacionais). No segundo semestre de 2024 há eleições em três estados da ex-Alemanha Oriental e o AfD lidera as intenções de voto em todos eles: na Turíngia, com 33,3% das intenções de voto (pesquisa eleitoral de 17/01/2024) [2], na Saxônia, com 34% (pesquisa de 25/01/2024) e em Brandemburgo, com 29,9% (pesquisa de 17/01/2024).[3]
O crescimento da extrema direita teve um ponto de inflexão meses depois da entrada de cerca de um milhão de refugiados no país, em 2015/2016, sob o governo de Angela Merkel (CDU) em coalizão com o SPD. Segundo o órgão do governo responsável por migração e refugiados, em 2015, cerca de 890.000 pessoas deram entrada no pedido de asilo na Alemanha. Majoritariamente da Síria e do Afeganistão, os refugiados foram recebidos com muita solidariedade tanto da sociedade como do governo. Ficou famosa a fala de Merkel ante o desafio de abrigá-los: “Wir schaffen das”, que pode ser traduzida livremente como “nós damos conta”. Milhares de pessoas em todo o país trabalharam voluntariamente no apoio aos refugiados.
No entanto, gradualmente foram surgindo e se multiplicando, entre a população, as dúvidas e os medos quanto à capacidade da sociedade absorver e integrar este número de pessoas, começaram as críticas à chanceler dentro de seu próprio partido, as ideias xenófobas, nacionalistas e racistas foram ocupando lugar nesse terreno que se tornou arenoso e receptivo. Acontecimentos envolvendo refugiados, como o assédio sexual em massa no réveillon de 2015/2016, em Colônia, contribuíram para aumentar a relutância da população e a repercussão do discurso anti-imigração na sociedade. Simultaneamente, a maioria dos países europeus foi restringindo cada vez mais a entrada de refugiados, o que fez crescer a pressão dentro da Alemanha para endurecer sua política, tanto no âmbito do debate político como da retórica xenófoba difundida por setores de extrema direita.
Durante a pandemia houve uma manifestação significativa do discurso negacionista repercutido por artistas, influencers, etc. Definitivamente não foi a posição do governo nem da grande maioria da população. No entanto, ainda que a tendência não tenha predominado, influiu no contexto cultural e social e refletiu também a abertura de parcelas da sociedade ao conspiracionismo. As fronteiras entre o negacionismo da ciência, as teorias conspiratórias e o pensamento político de extrema direita são muito fluidas.
O AfD foi contra as medidas de isolamento e o uso de máscara e boa parte de seus parlamentares negou a vacina. Em uma pesquisa de opinião realizada pela Fundação Friedrich Ebert (FES), em 2019 e 2022, 54% das pessoas consultadas estiveram de acordo com pelo menos uma das cinco afirmações afins às teorias conspiratórias propostas pela pesquisa e mais de um terço concordou com pelo menos duas; entre elas notadamente muitas pessoas votantes do AfD. [4]
Mais recentemente, o crescimento do AfD está recebendo um empurrão devido ao enorme descontentamento da população com o governo nacional. A coalizão formada pelo SPD, os Verdes e o FDP teve a má sorte de, poucos meses após assumir, ter que se confrontar com a invasão da Rússia à Ucrânia e uma guerra que já dura dois anos. Além dos desafios políticos gerais criados pelo contexto de guerra, concretamente a Alemanha se viu frente a um problema de fornecimento de energia, já que dependia do gás da Rússia. Ademais, a entrada de um milhão de ucranianos no país reacendeu a discussão e as controvérsias sobre o financiamento da atenção aos refugiados e a oferta de serviços à população (sobretudo educação e moradia, dois temas onde há graves déficits), gerando um forte atrito entre o governo federal, os estaduais e os municípios.
O medo da população frente a um imaginado e temido inverno sem aquecimento, o crescimento econômico negativo do país, o aumento de preços derivado da crise energética e uma inflação que é mínima para nós, no Brasil, mas alta para os parâmetros alemães (a taxa de inflação anual em 2023 foi de 5,9%), os equívocos da política governamental para gerir esse novo contexto, as profundas e aparentemente insolúveis divergências internas à coalizão: tudo isso compõe um ambiente muito propício para o descontentamento popular e também para a oposição.
De um lado, o CDU/CSU, atualmente líder nas pesquisas de intenção de voto para o parlamento nacional e sua segunda maior bancada; de outro lado, o AfD, com sua retórica extremista, que acapara parte da insatisfação atual, mas também se beneficia muito da sensação de frustração e ressentimento de grande parte da população dos estados da ex-Alemanha Oriental frente aos desdobramentos da reunificação do país, ocorrida em 03/10/1990.
Segundo seu relatório de 2022, o Órgão Federal de Proteção Constitucional (Bundesamt für Verfassungsschutz) tem cerca de 10.000 filiados do AfD classificados como extremistas, o que corresponde a mais de um terço dos filiados. Em decisão de 06 de fevereiro de 2024, o tribunal de Colônia negou recurso do AfD e confirmou que o citado órgão pode manter a classificação atribuída por ele à organização jovem do partido – Alternativa Jovem –, segundo a qual esta tem “asseguradamente aspirações de extrema direita”. Trata-se de uma figura jurídica que autoriza legalmente a observação e o seguimento de atividades e posicionamentos que eventualmente firam a Constituição e o estado de direito.
Nos estados da Turíngia, Saxônia e Saxônia-Anhalt, os órgãos estaduais correspondentes atribuíram igual classificação ao partido no estado, e na Saxônia, em dezembro de 2023, ele foi classificado como de extrema direita. Tal classificação para o partido em nível nacional está em processo e em disputa no órgão federal (a autonomia entre as decisões estaduais e nacionais decorre da estrutura federativa do Estado alemão).
Sabemos que o crescimento da extrema direita é um fenômeno mundial, não é nem de longe uma particularidade da Alemanha e, inclusive, temos nossa própria experiência brasileira para contar. Aqui, no entanto, adquire um caráter singularmente dramático devido ao passado nazista não muito distante em termos históricos. E é justamente a conexão entre o presente e o passado que parece ter despertado a sociedade civil alemã para o perigo representado pelo AfD, que vem escondido/escamoteado sob a legalidade partidária.
Na metade de janeiro deste ano, a agência de jornalismo investigativo Correctiv revelou a realização de um encontro de extremistas de direita em 25 de novembro de 2023, em um casarão em Potsdam (capital do estado de Brandemburgo), onde foi discutido um plano de deportação de residentes na Alemanha com raízes migrantes, inclusive tendo cidadania alemã. Entre as pessoas presentes, estiveram membros do AfD, alguns filiados do CDU e integrantes da associação muito conservadora chamada WerteUnion, que se reivindica defensora dos valores originais do CDU/CSU, sem ser, no entanto, parte da estrutura partidária. Foi um choque. Na memória coletiva ressurgiu a referência à conferência dos nazistas em 1942, também em um casarão em Potsdam, onde foi definido o extermínio dos judeus.
A partir da revelação da plataforma Correctiv, pipocaram no país inteiro manifestações de rua em defesa da democracia, contra a extrema direita em geral e o AfD em particular. Em cidades grandes e pequenas, em todos os estados, reunindo todas as gerações, a população tem ido massivamente às ruas há várias semanas, convocada por uma ampla aliança de organizações sociais, levando cartazes com palavras de ordem como “nunca mais é agora”, “fascismo não é alternativa”, “por diversidade e democracia”, “direitos humanos em vez de humanos de direita”, “estamos em 2024 e não em 1933”, “proteger a democracia”, “AfD? Não, obrigado”, entre várias outras.
Além do impacto positivo das manifestações sobre a psique nacional, em termos de reforçar a credibilidade na sociedade democrática e a intolerância quanto à extrema direita, há um efeito concreto, ainda que não se possa avaliar se decorre diretamente da reação da sociedade nem tampouco se persistirá como tendência. Na primeira pesquisa de intenção de voto para o parlamento nacional após o início das manifestações, o AfD caiu três pontos, descendo a 19%.[5]
A luta continua, o futuro próximo e distante está em aberto.
[1] https://www.zdf.de/politik/politbarometer
[2] https://dawum.de/Thueringen/
[3] https://dawum.de/Brandenburg/
[4] https://library.fes.de/pdf-files/pbud/20287-20230505.pdf
[5] https://www.zdf.de/politik/politbarometer
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Alemanha. Como explicar o crescimento do AfD? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU