05 Outubro 2023
"A história ensina que se pode chegar morto à morte. E isso acontece porque se vive de uma forma disforme em relação à nossa natureza".
O comentário é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 28-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Certamente todo mundo chega à morte, mas pode-se chegar vivo ou já morto. Alguns podem estar vivos, mas na realidade já estão mortos. Vivem, mas não plenamente, vivem pela metade, às vezes até menos da metade, em relação a suas potencialidades vitais e, portanto, em boa parte já estão mortos. É o que ensina a história de abertura do best-seller Guia para as águias que acreditam ser frangos, do jesuíta e psicoterapeuta indiano Anthony de Mello, publicado nos EUA em 1990 com o título Awereness e em 1995 na Itália. O grande sucesso do livro preocupou o Vaticano, que em 24-06-1998, com uma nota da Congregação para a Doutrina da Fé assinada por Joseph Ratzinger, declarou as ideias de Mello “incompatíveis com a fé católica” e que “poderiam causar graves danos”. Em minha opinião, trata-se de um juízo fundamentado no primeiro caso, mas falso no segundo, porque o livro não causa danos, mas pelo contrário cura feridas; e creio que pode fazê-lo precisamente porque é incompatível com algumas afirmações (errôneas) da dogmática católica.
A história conta o caso de um homem que encontrou um ovo de águia e o colocou no ninho de uma galinha. O ovo eclodiu com os outros e a aguiazinha cresceu com os pintos, passando a vida inteira como frango pensando ser um deles. Um dia a velha águia viu planando majestosamente no céu um esplêndido pássaro e perguntou espantada: “Quem é aquele?” “É a águia, a rainha dos pássaros”, respondeu o vizinho. “Pertence ao céu, mas nós pertencemos à terra porque somos frangos”. E assim a águia viveu e morreu como um frango, porque pensava ser um deles.
A história ensina que se pode chegar morto à morte. E isso acontece porque se vive de uma forma disforme em relação à nossa natureza. De consequência ensina que se chega vivos à morte quando se vive de acordo com a própria natureza. Qual é a natureza específica dos seres humanos? É aquela de não ter uma natureza específica. Pode-se, portanto, concluir que a especificidade, segundo a qual vivemos de modo conforme com a nossa natureza e chegamos vivos à morte, é a liberdade.
A liberdade é composta por três qualidades: consciência, criatividade, responsabilidade. Ora, dado o tema de que estamos tratando, vou me debruçar em particular sobre a consciência como chave indispensável para chegar vivos à morte. Praticar a consciência significa trabalhar sobre a própria interioridade realizando o cultivo de si, concentração, atenção, vigilância, recolhimento, silêncio, reflexão, meditação: um conjunto de práticas que podem ser chamadas de “exercícios espirituais” ou também “práticas de conscientização”.
O trabalho que visa a conscientização constitui a verdadeira cultura e o verdadeiro culto. A raiz das palavras cultura e culto é a mesma, é o verbo latino colo, colere, “cultivar, cuidar”: tanto no sentido de um trabalho exterior expresso pelo substantivo “agricultura” quanto no sentido de um trabalho interior expresso pelo substantivo “culto”. Gramsci tinha uma ideia semelhante de cultura: “Cultura é organização, disciplina do próprio eu interior; é tomar posse da própria personalidade, é conquista de consciência superior”. A expressão “disciplina do próprio eu interior” faz compreender que existe uma dupla dimensão do eu: exterior e interior. Chega-se vivo à morte se forem cultivadas ambas as dimensões da nossa personalidade. Que, no entanto, têm uma grande diferença entre si: o eu exterior, na verdade, desvanece gradualmente, enquanto o eu interior pode florescer até o último dia. Isso é o que Gramsci denominava de consciência superior”.
Poder-se-ia objetar que com a consciência pode-se compreender que cada momento é um passo em direção ao fim e que, portanto, seria melhor não a exercer. Isso é o que a maioria das pessoas faz, preferindo não pensar e anestesiar a mente. Montaigne escreveu: “O remédio da pessoa comum consiste em não pensar na morte”. Deixam de lado a angústia e vivem; talvez como uma galinha, mas vivem. Será possível, em vez disso, ter consciência do fim e ao mesmo tempo viver de forma feliz e até nobre como uma águia?
Respondo com segurança que sim, tendo observado que justamente aqueles que cultivam a consciência por meio do trabalho espiritual abandonam todo medo da morte e vivem com serenidade. Entendem a verdadeira natureza da vida e vivem cada minuto com mais autenticidade, conscientes da preciosidade do tempo que não voltará mais e dedicando-se a atividades que proporcionam a verdadeira alegria profunda, e não a felicidade efêmera do momento. Cultivam a consciência da morte não como medo ou mesmo ódio pela vida, mas como amor verdadeiro pela vida (não de seu ego, mas da vida).
No passado pairava um pensamento obsessivo de morte usado para gerar medo de Deus e dos castigos do inferno e assim controlar as consciências. Repetia-se: “Lembre-se de que vai morrer”, como uma aterrorizante litania fúnebre. Os sinais de luto, além disso, estavam por toda parte como uma advertência contínua.
Hoje estamos na presença do excesso oposto: a vida passa em nome do divertimento, a morte só é vista nos filmes e se anda pelas nossas cidades sem ver nenhum sinal de luto. No entanto, as pessoas mesmo assim continuam a morrer, e a angústia, longe de ter desaparecido, talvez seja ainda maior do que no passado, quando podia ser manifestada publicamente. O que fazer? A única forma de chegar vivos à morte é, como disse, a prática da conscientização, do trabalho interior como cultura e como culto. Poderia citar ensinamentos de grandes pensadores e mestres espirituais, mas comecei com de Mello e concluo com este seu conselho: “A maneira para viver realmente é morrer. O passaporte para a vida é imaginar-se no túmulo. Imaginem-se deitados no caixão. Agora, olhem para os seus problemas daquele ponto de vista. Muda tudo, não é verdade? Que bela meditação. Façam isso todos os dias, vocês se tornarão mais vivos".
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Vocês não foram feitos para viver como mortos. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU