"A renovação do Vaticano II e a nova abordagem da teologia mariana promovida por Paulo VI com o documento Marialis cultus de 1974 aparam as arestas e sobre Nossa Senhora não existem mais as controvérsias do passado", escreve Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do L'Osservatore Romano, em artigo publicado por Giornale, 13-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ferragosto, ponto culminante das férias de verão e feriado por excelência, é um feriado italiano, contado nas últimas décadas pelos escritores e pelo cinema quase como um Natal de verão. Mas suas origens têm raízes na antiga religião romana.
Séculos depois, a comemoração é feita para coincidir e coexistir com uma celebração cristã importante: no oriente recorda a "dormição" da Mãe de Deus e no ocidente torna-se a solenidade da "assunção" de Maria ao céu "em corpo e alma", tema do último dogma proclamada por um papa, em 1950.
A fasta originária marcava o período após o fim das colheitas agrícolas e era comemorada no início do mês sextilis, ou seja, o sexto a partir de março, quando o ano começava de acordo com o calendário romano tradicional.
Com uma lei de 8 a.C., mas talvez de alguns anos antes, o nome do mês foi mudado em honra do imperador Augusto, e os dias da suspensão dos trabalhos nos campos tornaram-se assim as feriae Augusti, das quais deriva a denominação de Ferragosto.
Com o primeiro dia do mês, portanto, começava um tempo de descanso, que entre 13 e 21 cruzava com antiquíssimas festas em honra das divindades protetoras das colheitas e dos cultivos, como Conso e Diana. Com o passar dos séculos difundiu-se o costume dos proprietários de terras de oferecer em meados de agosto um almoço para os camponeses, nas várias regiões se enraizaram usos gastronômicos ainda hoje mantidos.
Mais tarde foi o fascismo que facilitou, entre os dias 13 e 15, passeios de um ou três dias graças a bilhetes ferroviários com grandes descontos, modernizando e estendendo a grandes camadas da sociedade, que ignoravam as férias, as antigas "ferias de Augusto". Remonta a outro imperador, o bizantino Maurício, no final do século VI a fixação na data de 15 de agosto da festa cristã. Talvez ligada à dedicação de uma igreja em Jerusalém, a celebração da Dormição da Mãe de Deus passou no Ocidente algumas décadas mais tarde - na época do Papa Teodoro I, natural de Jerusalém - e com o tempo assumiu o nome de Trânsito ou Assunção da Virgem. Comemorada como festa antes mesmo da data de 15 de agosto, a crença na “dormição” de Maria – que adormeceu para despertar com o corpo no céu – começa a se difundir provavelmente já no século III e é depois contada por dezenas de textos (e centenas de manuscritos) em grego, latim, siríaco, copta, etíope, árabe, armênio, irlandês antigo, georgiano, eslavo.
O termo grego (kòimesis, em latim dormitio) indica o sono ou o repouso do sono, e é encontrado no Evangelho segundo João, quando Jesus ressuscita Lázaro. A mesma ideia é transmitida pelo latim transitus, que dá título a várias narrações da morte de Maria, todas apócrifas. De fato, na Bíblia não há menção ao destino da mãe de Jesus, exceto no Evangelho de João, em que testemunha o suplício de seu filho ao pé da cruz. Outro livro do Novo Testamento, os Atos de apóstolos, descreve-a reunida em oração com os apóstolos, as mulheres e os "irmãos" de Jesus após a ascensão de Cristo ao céu. Depois, nada mais. Afinal – exceto pelos dois primeiros capítulos do Evangelho de Lucas – nos Evangelhos Maria fica em segundo plano e quase não fala.
Compensam o silêncio dos textos bíblicos canônicos, já desde o século II, as interpretações teológicas de autores cristãos mais antigos (Inácio de Antioquia, Justino, Irineu) e, portanto, o adensamento de evangelhos e escritos apócrifos: sobre as origens e a infância de Maria, por um lado; e de outro, os textos sobre sua morte e seu destino extraordinário.
Esses apócrifos contam que, após a ascensão de Jesus, sua mãe recebe em Jerusalém de um anjo uma palma - ou um livro, segundo a tradição etíope - e o anúncio de sua própria morte.
Cercada por João e pelos apóstolos, Maria morre e é o próprio Cristo quem acolhe a sua alma.
Os judeus tentam em vão queimar o corpo da Virgem, mas este, colocado num túmulo, depois de três dias é milagrosamente levado ao paraíso para se reunir com sua alma. A crença, muito antiga, se espalhou enormemente. No calendário bizantino, a Dormição é uma das "doze grandes festas": precedida de um rigoroso jejum de catorze dias, é a última do ano litúrgico – que no rito bizantino termina no final de agosto – e uma outra celebração da Mãe de Deus, a festa de sua Natividade, que ocorre em 8 de setembro, é a primeira do novo ano.
Um dia de oração de ação de agradecimento pela criação e sua salvaguarda marca o 1º setembro, o ano novo bizantino. Sinal dos tempos, a decisão – tomada em 1989 por Demétrio, patriarca de Constantinopla, e confirmado por seu atual sucessor Bartolomeu – foi desde 2015 estendida à Igreja Católica a pedido do Papa Francisco.
“Em tua maternidade, conservaste a virgindade e em tua morte não abandonaste o mundo, ó Mãe de Deus. Passaste para a vida, tu que és a Mãe da Vida e que, por tuas orações, livras da morte as nossas almas.” cantam os fiéis bizantinos. “A tumba e a morte são não conseguiu segurar a Mãe de Deus” porque “ela foi transferida à vida por aquele que esteve em seu seio virginal” ressalta outro texto. Portanto, os hinos litúrgicos expressam o conteúdo da festa contada pelos apócrifos: Maria – criatura excepcional por ser a mãe de Cristo – morre como todo ser humano, mas é preservada da corrupção do sepulcro.
Paralelos são os desenvolvimentos doutrinários. Em 431 em Éfeso, onde estão enraizadas as tradições sobre a Virgem e sobre o apóstolo João, o terceiro concílio ecumênico – graças ao inteligente e audacioso patriarca alexandrino Cirilo, que substitui seu colega constantinopolitano Nestório - consagra definitivamente a Maria o título de theotòkos ("mãe de Deus"), caro aos fiéis pelo menos desde III século, conforme documentado em um papiro.
Muito importante no cristianismo oriental e ocidental, a festa também é contada por uma iconografia luxuriante e abundante. Nos ícones orientais Cristo acolhe a alma de Maria retratada como um bebê em panos; no ocidente, o afresco de Filippo Lippi, na catedral de Spoleto dedicado à Assunção, representa na abside – abaixo da coroação da Virgem no céu – sua dormição; e mais tarde inúmeras pinturas glorificam a assunção.
Vista do afresco de Filippo Lippi, na catedral de Spoleto (Foto: Jann Huizenga | Canva)
Vista da "Dormição" de Maria no afresco de Filippo Lippi, na catedral de Spoleto (Foto: Jann Huizenga | Canva)
Mas na época moderna o culto mariano alimenta fortes controvérsias entre protestantes e católicos. O embate é aguçado por dois dogmas: em 1854 a "imaculada conceição", que define Maria isenta do pecado original, depois em 1950 a Assunção. Ambos enraizados em crenças antigas e compartilhados por cristãos orientais, as solenes declarações são precedidas de pedidos e consultas do episcopado mundial, mas prelados e teólogos católicos respeitados se opõem a elas.
De fato, eles consideram, não erroneamente, que a proclamação papal de 1950 – a primeira a desfrutar da infalibilidade decretada em 1870 pelo Concílio Vaticano – não seria necessária e torna mais dificultosa a relação com outras confissões cristãs. A renovação do Vaticano II e a nova abordagem da teologia mariana promovida por Paulo VI com o documento Marialis cultus de 1974 aparam as arestas e sobre Nossa Senhora não existem mais as controvérsias do passado.
A definição da Assunção é proclamada por Pio XII em uma das últimas celebrações do ano santo, definido após a Segunda Guerra Mundial como o do "grande retorno".
Era 1º de novembro de 1950 e o pontífice celebrava numa Praça de São Pedro lotada de fiéis, e com a constituição apostólica Munificentissimus Deus declarava como “dogma revelado” que “a imaculada Mãe de Deus, sempre virgem Maria, tendo terminado o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”.
Carl Gustav Jung considerou a decisão do Papa Pacelli o acontecimento dogmático mais importante desde os tempos da Reforma Protestante porque a Assunção representa um retorno da matéria para o espírito e ao mesmo tempo um forte reconhecimento da feminilidade.
Em suma, segundo Jung, o dogma católico marca uma superação da fase patriarcal com “o anúncio de uma reintegração do princípio feminino, portanto de uma restauração da totalidade divina na consciência humana” resumiu Christiane Maillard. Que assim sintetiza o profundo significado da fascinante festa de meio de verão.