01 Agosto 2023
“A experiência jesuítica não foi uma experiência conservadora. Foi antes uma experiência anticolonial, anti-hispânica e confrontada com uma Igreja que fez das pompas barrocas das catedrais o brilho do ouro de seus sacrários, quase uma finalidade essencial de sua existência. Uma Igreja muito distante do sentido missionário dos Jesuítas”, escreve Alfredo Poenitz, diretor do Mestrado em Cultura Guarani-Jesuítica, na Faculdade de Arte e Desenho, da Universidade Nacional de Misiones, Argentina, em artigo publicado por El Territorio, 30-07-2023. A tradução é do Cepat.
Em 1768, centenas de padres da Companhia de Jesus eram expulsos dos trinta povoados fundados ao longo de pouco mais de um século e meio de experiência missionária com os indígenas Guarani. No povoado de Yapeyú, o mais meridional de todos, às margens do Rio Uruguai, foram concentrados e transportados por via terrestre e fluvial até a capital do governo de La Plata, Buenos Aires. De lá, foram enviados para a Europa, onde, após uma odisseia de mais de um ano de rejeições e negações a seus pedidos, finalmente, foram asilados pela rainha Catarina da Rússia.
Os jesuítas tinham sido expulsos de todos os domínios hispano-americanos, em consequência de uma furiosa campanha contra eles, iniciada em fins dos anos 1750, por um grande grupo de intelectuais e personalidades ilustradas muito ligado às monarquias espanhola e portuguesa, encabeçado pelo Marquês de Pombal e o Conde de Aranda.
Com este fato político-histórico, frustravam-se 150 anos de uma experiência missionária única e irrepetível. Executava-se a pior medida contra a Igreja hispano-americana, desde a Conquista da América, produzindo um vácuo definitivo nos propósitos evangélicos da Espanha em terras americanas.
Que razões tão importantes poderiam existir para que tal empreitada evangelizadora, e que tinha dado resultados tão notórios, fosse cortada pela raiz e frustrada em seu destino?
Muito já foi escrito sobre esse assunto. De Voltaire e Montesquieu até hoje. Da ideia absurda da “república utópica”, governada por um monarca jesuíta a quem respondia um poderoso exército constituído por milhares de soldados guaranis à impossibilidade de uma experiência socializante, em um mundo que se projetava para as liberdades individuais. Dezenas de hipóteses foram traçadas até hoje.
Bartomeu Melià, profundo estudioso da experiência jesuítica com a comunidade guaranítica, afirma que essa utopia consistiu em um permanente questionamento ao mundo colonial no humano, no social e no econômico. E com o passar do tempo se transformou em um verdadeiro questionamento político que foi derrotado pelo sistema colonial. A experiência jesuítica significou um enfrentamento à prática colonial das “encomiendas”, em que o indígena era utilizado como mão de obra escrava.
Por isso, as reduções se transformaram em um espaço socializante, a partir da recusa dos indígenas em servir os latifundiários escravizadores com o seu trabalho. E a Companhia de Jesus, através de religiosos excepcionalmente preparados, foi fiel aos princípios evangélicos e, desse modo, a vida nas reduções se converteu em um espaço de harmonia e convivência de duas realidades culturais diferentes, mas harmonizadas.
O propósito missionário jesuítico foi o de buscar os elementos mais ou menos próximos da espiritualidade ancestral guarani e a cristã, em um admirável sincretismo que ainda hoje surpreende e, com o tempo, passou a ser descrito como “utopia”. Mas, qual foi a utopia? A impossibilidade de executar esse sincretismo religioso? Esta foi a teoria que persistiu por muitos anos.
No entanto, a utopia tinha a ver com uma situação extrarreduções, por trás das fronteiras que ferreamente continham e impossibilitavam o contato das missões de guaranis com o mundo colonial espanhol. Os Jesuítas foram antiespanhóis, mas não em oposição à Monarquia ou a seus objetivos apostólicos em terras americanas. Evitaram o contato do espanhol residente em solo americano porque isso implicava a transmissão de vícios e maus costumes em um espaço onde eram protegidos os principais elementos da civilização guaranítica. Essa foi a utopia. Almejaram lutar contra um mundo colonial pensado a partir da opressão e escravidão do indígena. Foram a "anti-encomienda". E isso lhes custou muito caro.
A vida nas reduções teve um caráter ritual, socializante e democrático. Toda a vida cotidiana era constituída por uma série de ritos. A vida religiosa era ritual com as cerimônias, cantos, rezas. Era um rito o trabalho das mulheres e crianças nas estâncias para onde iam ordenadamente e cantando, bem como o trabalho dos homens no âmbito produtivo rural. Era ritualizado o momento de comer e das brincadeiras e exibições alegóricas das celebrações.
Esse sistema com fortes traços paternalistas teve sua definição mais concreta nos momentos de crise. Quando tiveram que enfrentar o poder colonial, por exemplo, na Guerra Guaranítica (1750-54), o povo guarani se firmou como nação e fortaleceu os laços com seus protetores.
A experiência jesuítica não foi uma experiência conservadora. Foi antes uma experiência anticolonial, anti-hispânica e confrontada com uma Igreja que fez das pompas barrocas das catedrais o brilho do ouro de seus sacrários, quase uma finalidade essencial de sua existência. Uma Igreja muito distante do sentido missionário dos Jesuítas.
E foi essa utopia a que, finalmente, derrubou a estrutura das Missões Jesuíticas de guaranis.
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A utopia missionária jesuítica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU