27 Mai 2023
Carlos Umaña é um médico costarriquenho que pelas eventualidades da vida se tornou uma das grandes referências do movimento pelo desarmamento nuclear. É presidente da Associação Internacional de Médicos para a Prevenção da Guerra Nuclear, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 1985.
Também faz parte da direção da Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN), que recebeu o mesmo prêmio, em 2017, por promover a adesão dos países ao Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN), assinado por mais de 120 estados.
A entrevista é de Jairo Vargas Martín, publicada por Público, 23-05-2023. A tradução é do Cepat.
Em termos de ameaça nuclear, em que momento estamos?
Estamos no momento de maior risco, na História, de uma guerra nuclear em grande escala, conforme ponderou o grupo de especialistas do Boletim dos Cientistas Atômicos, em seu Relógio do Apocalipse. Isso se deve não apenas à atual guerra na Ucrânia, mas também a três outros fatores:
O primeiro é composto pela instabilidade, as declarações e ameaças imprudentes feitas por líderes dos países com armas nucleares.
O segundo é a crise climática, que gera instabilidade, competição por recursos e, portanto, conflitos nacionais e internacionais.
O terceiro é a possibilidade de disparos acidentais de armamento nuclear. Foram registrados muitos acidentes: só no Estados Unidos foram registrados mais de mil. Não foram disparos, mas quase. Acontecem quando mísseis são transportados, mas também quando os sistemas de alerta máxima são ativados por outras coisas que não são bombardeios. Isso me preocupa muito.
Então, um alarme falso pode nos levar à guerra nuclear?
Sim. De fato, existem alguns especialistas que dizem que a guerra nuclear mais provável não é uma intencional, mas uma acidental. Os alarmes foram acionados muitas vezes por uma tempestade solar, por balões meteorológicos ou mesmo por bandos de gansos.
As pessoas que monitoram esses sistemas de alarme precisam interpretar que são alarmes falsos, mas quando estamos em guerra, essas interpretações humanas podem variar e más decisões podem ser tomadas.
Já nem sequer cabe questionar qual é a sanidade mental de Vladimir Putin. A dissuasão nuclear está fundamentada no princípio de que a ameaça é credível e que esse cenário de destruição total não interessa a ninguém. Temos que estar assim, perto do precipício, para que essa lógica funcione. É uma loucura.
Por que viram a necessidade de promover um Tratado de Proibição de Armas Nucleares, se já existia um Tratado de Não Proliferação assinado por várias potências nucleares, entre elas, os Estados Unidos e a Rússia?
O tratado de não proliferação entrou em vigor em 1970, como uma reação à crise dos mísseis em Cuba, de 1967, quando as pessoas experimentaram uma ameaça existencial. Naquele momento, o Relógio do Apocalipse estava a menos 12 minutos, agora, estamos a menos de 90 segundos.
Está muito claro que sozinho este tratado não levará ao desarmamento nuclear. Suas duas últimas conferências de revisão foram um fracasso, pois não foi possível sequer produzir um documento de consenso.
Não serviu para que os arsenais nucleares diminuam?
Está havendo uma tendência a reduzir os arsenais nucleares, mas tem mais a ver com os tratados bilaterais START. O Tratado de Não Proliferação reconhece cinco estados nucleares e os outros são não nucleares, com obrigações distintas.
Serve muito mais para reforçar a ideia de que as armas nucleares são necessárias para a segurança e a estabilidade, cria um apartheid nuclear. O Tratado de Proibição que promovemos é uma proibição universal das armas nucleares para absolutamente todos os países.
Contudo, nenhuma potência nuclear o assinou.
Ainda. Todas as mudanças de paradigma começam com muita resistência. Agora, estamos passando pelas etapas da verdade de Schopenhauer: primeiro a chacota, em seguida, a resistência e, depois, a aceitação.
Inicialmente, fomos chamados de hippies e nos fóruns internacionais a palavra proibição mal era pouco mencionada, mas, em três anos, começaram as negociações desse tratado. É um sonho pacifista.
Na Espanha, você apresentou a Aliança para o Desarmamento Nuclear, que busca a adesão do país ao tratado de proibição. Pedro Sánchez prometeu assiná-lo, mas nunca cumpriu. Em que situação está a eventual adesão da Espanha?
Em 2018, esse compromisso foi assumido, mas houve resistência dos ministérios das Relações Exteriores e da Defesa. A Aliança é um grupo de movimentos de base que busca formar uma massa crítica para conscientizar sobre as consequências humanitárias de um ataque nuclear e para estimular a Espanha a se juntar ao TPAN.
Contudo, atualmente, o Governo não está disposto a apoiar o tratado, nem mesmo a comparecer como observador às reuniões dos Estados-membros, algo que fazem outros países da OTAN, como Alemanha, Holanda e Noruega. A Espanha agora não quer ter nenhuma controvérsia com a OTAN, nem com a Europa.
Houve uma resposta muito militarista de todo o mundo a partir da guerra na Ucrânia, especialmente da OTAN. E há uma interpretação errônea de que esse militarismo também implica apoio incondicional a dissuadir do uso de armas nucleares, muito pelo contrário.
Foram as armas nucleares que tornaram possível a guerra da Ucrânia. Putin invadiu lançando a ameaça de que se algum país se envolvesse diretamente, teria consequências como nunca vistas na história, em referência às armas nucleares.
Como a guerra na Ucrânia afeta a ameaça nuclear?
Aumentou o risco de uma guerra nuclear, mas o impacto tem uma leitura positiva e outra negativa. As pessoas estão se tornando mais conscientes do risco nuclear. Já passamos duas gerações de pessoas que não vivenciaram essa ameaça existencial e que, agora, estão acordando e vendo realmente a face de uma ameaça com a qual se convive há muitos anos.
Contudo, também ficou mais difícil o apoio ao tratado de proibição, porque se difunde o discurso de que as armas nucleares são necessárias como contrapeso. Os aliados nucleares não condenam o uso de armas nucleares, mas o seu uso por Putin. É hipócrita e absurdo dizer que alguns são responsáveis para tê-las, mas outros não. Não se trata de segurança, mas de mostrar um poder, um privilégio.
Além da Rússia, que outros países preocupam por seu desenvolvimento nuclear?
O caso da Coreia do Norte e o do Irã são vistos com preocupação. Cada vez mais países têm capacidade para fabricar armas nucleares, e essa capacidade deriva justamente da tecnologia para obter energia nuclear. Foi o que a Índia e o Paquistão conseguiram.
Quanto mais Estados tiverem essas armas, mais aumenta o risco para o mundo. Mas, esse é o sintoma de uma doença: o fomento da hegemonia nuclear como doutrina de segurança para os países.
Considera que, nesse contexto, é possível chegar a um cenário como o da crise dos mísseis de Cuba?
Esse cenário já estamos vivendo cotidianamente. Quando estourou a guerra na Ucrânia, muitos de nós que trabalhamos pelo desarmamento sofremos do que chamamos de “ansiedade nuclear”, porque estamos muito conscientes do risco.
Robert McNamara, secretário de Estado de Kennedy, durante a crise dos mísseis em Cuba, disse que naquele momento não houve uma guerra nuclear simplesmente por sorte. Agora, vivemos um contexto em que a possibilidade de reagir diante dessas situações é muito maior e mais rápida e onde os sistemas de alerta estão automatizados. Caso se ultrapasse o limiar de um disparo é muito fácil levar a uma guerra em grande escala.
A crise nuclear e a climática são, na sua opinião, as duas ameaças mais prementes para o planeta. Afirma que não é possível solucionar uma, caso não se acabe com a outra. Por quê?
Porque as armas nucleares já são uma grande ameaça para o meio ambiente. Também porque a manutenção e modernização dos arsenais consomem muitos recursos: 116 bilhões de dólares por ano é o que se investe em armas nucleares, além de recursos humanos, políticos, científicos e tecnológicos.
Caminhando para um mundo livre de armas nucleares, fortalecemos o regime multilateral entre os países, necessário para lutar contra a mudança climática. Também liberamos recursos científicos e econômicos para abordar soluções para a crise climática.
O que você pensou quando a cúpula do G7, que prometeu mais recursos para a guerra na Ucrânia, foi realizada em Hiroshima, devastada por uma bomba atômica dos Estados Unidos?
Não é por acaso que tenha ocorrido em Hiroshima. O Japão ainda não assinou o TPAN, mas tem uma clara intenção retórica nesse sentido ao estabelecer a cúpula lá.
Contudo, diante desse avanço, a declaração do G7 foi uma decepção total, serviu para aprofundar o militarismo e não para buscar avanços rumo à paz. Não esperava avanços nesta cúpula, mas serve para que as pessoas vejam quais são os efeitos reais das armas nucleares.
Receber o Prêmio Nobel da Paz abriu muitas portas para que os países assinem o TPAN?
Muitíssimo. Em determinados espaços, como nas reuniões da ONU, a relação muda completamente quando você é um ativista com um Nobel. Nós também estávamos ficando sem recursos e quando recebemos o prêmio, em 2017, essa situação foi completamente solucionada.
Agora, temos muito mais legitimidade internacional. Esta Aliança para o Desarmamento Nuclear na Espanha faz parte de todos os esforços que levaram ao Prêmio Nobel.
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“É o momento de maior risco, na História, de uma guerra nuclear em grande escala”. Entrevista com Carlos Umaña - Instituto Humanitas Unisinos - IHU