08 Mai 2023
"Quando o serviço de saneamento é conduzido por uma preocupação de bons resultados financeiros é muito difícil fazer com que chegue nos locais onde é caro e as pessoas têm pouco dinheiro. As propostas de ampliar a privatização dos serviços de saneamento são absolutamente preocupantes", escrevem Ricardo de Sousa Moretti e Liza Maria Souza de Andrade.
Ricardo de Sousa Moretti é professor do Programa de Planejamento e Gestão do Território da UFABC e integrante do Conselho de Orientação do ONDAS e da RedeBrCidades.
Liza Maria Souza de Andrade é Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Brasília, coordenadora do Programa de Residência Multiprofissional CTS - Habitat, Agroecologia, Saúde, Ecossistêmica e Economia Solidária. Integrante do Conselho de Orientação do ONDAS e da Rede BrCidades.
O artigo foi enviado pela Assessoria de Comunicação da Rede BrCidades ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Interessa a todas as pessoas que o saneamento, nas suas quatro dimensões, de água potável, águas pluviais, resíduos e esgotamento sanitário, chegue a todas as pessoas, na perspectiva de garantir saúde e de evitar doenças. Vale lembrar que as doenças se propagam e afetam diretamente os desassistidos do saneamento, mas em geral toda população, como bem mostrou a pandemia de Covid-19. A questão chave é fazer com que o saneamento chegue aonde ele é caro e as pessoas têm pouco dinheiro, ou seja, justamente onde se concentra o déficit destes serviços.
O saneamento com suas soluções usuais, que se ensinam nas escolas, tende a ser mais caro onde é baixa a densidade populacional e também nos núcleos menores, onde não se consegue ganho de escala com soluções centralizadas de grande porte. Este pensamento focado no grande porte trouxe uma paralisia na evolução de soluções descentralizadas, de soluções baseadas na natureza, ambientalmente mais amigáveis, que somente mais recentemente passaram a ter algum destaque. Com as soluções usuais e centralizadas de saneamento, o saneamento é mais caro nas áreas rurais de praticamente todos os municípios e nos núcleos de menor população ou menor densidade populacional.
Inicialmente, quando se procura pelos locais onde as pessoas têm pouco dinheiro, é necessário considerar que ter pouco dinheiro não é sinônimo direto de pobreza e vulnerabilidade, embora muitas vezes os conceitos se mesclem. O dinheiro flui em menor quantidade onde existe uma estrutura forte de economia de subsistência e onde o regime de trocas é intenso. O caso de algumas tribos indígenas que tiveram pouco contato com a sociedade industrial é uma situação extrema e que ilustra isto. Porém, pode-se dizer que o dinheiro circula menos em parte significativa da área rural, especialmente naquela área rural onde se pratica a agricultura familiar e as diversas formas de produção para subsistência como as comunidades tradicionais. Evidentemente, há uma concentração de pessoas com pouco dinheiro nos núcleos informais, tanto nas áreas centrais como nas periferias das cidades.
Quando se busca a população desassistida pelo saneamento, ou os locais onde o saneamento é mais caro, ou onde a população tem pouco dinheiro, chega-se a um denominador comum. Este denominador converge para a população que vive em áreas rurais- que inclui as comunidades tradicionais-, para a que vive em pequenos municípios- em especial das regiões Norte e Nordeste- para os núcleos informais e para a população em situação de rua. Locais onde o saneamento é pouco interessante na lógica estritamente financeira. O termo vulnerabilidade social utilizado pelo IPEA no Atlas da Vulnerabilidade Social nos Municípios Brasileiros [1], publicado em 2015, corresponde ao acesso, à ausência, ou à insuficiência de alguns “ativos” em áreas do território brasileiro. A princípio, estes ativos deveriam estar à disposição de todo cidadão, por força da ação do Estado, pois sua posse determina as condições de bem-estar das populações nas sociedades contemporâneas.
Esses ativos podem ser divididos em três subíndices:
Todos estão relacionados à pobreza multidimensional e à má distribuição de renda da população (renda per capita inferior a meio salário mínimo), que possui dificuldade no acesso à saúde, à educação, à mobilidade, à água, ao saneamento básico, à segurança, dentre outros. Estamos falando de uma perspectiva que vai além da identificação da pobreza entendida apenas como insuficiência de recursos monetários.
Dentre as quatro dimensões do saneamento, a água potável e o esgotamento sanitário são os serviços em que a tarifa é a fonte principal de recursos, mesmo que para sua realização sejam utilizados recursos como do FGTS, que são utilizados como empréstimos para investimento em obras que, posteriormente, serão pagas com as tarifas. Já os serviços de limpeza urbana, gestão de resíduos, drenagem e manejo das águas pluviais são usualmente pagos com recursos municipais oriundos de tributos arrecadados pelos municípios ou transferidos pelas outras esferas de governo. Ou seja, os serviços são sempre pagos pelo contribuinte, seja através da tarifa, seja através dos impostos. E tem-se aqui um aspecto delicado quando se considera que do total de recursos arrecadados, só 22 % ficam com os municípios. Em função da baixa capacidade institucional, os municípios menores têm maiores dificuldades de pleitear transferências voluntárias das esferas estaduais e federal. Muitas vezes ficam reféns das emendas parlamentares, que são como tiros no escuro e que apenas atingem o problema com muito baixa precisão.
Evidentemente, quando o serviço de saneamento é conduzido por uma preocupação de bons resultados financeiros é muito difícil fazer com que chegue nos locais onde é caro e as pessoas têm pouco dinheiro. As propostas de ampliar a privatização dos serviços de saneamento são absolutamente preocupantes neste sentido.
Alguns mecanismos de subsídio cruzado, com a aplicação de tarifas diferenciadas, foram e têm sido utilizados especialmente pelas companhias estaduais de água e esgotamento sanitário, viabilizando a chegada do saneamento em municípios pequenos, onde o serviço é caro e pouco atrativo. Aplica-se uma única estrutura tarifária para uma região e consegue-se viabilizar o atendimento dos municípios menores com os excedentes gerados pelos municípios maiores. A aplicação de tarifas mais altas para os consumos elevados e para os setores comerciais e industriais também tem sido uma forma de viabilizar a criação de tarifas sociais mais baixas para as pessoas de pouca renda. Os critérios para aplicação da tarifa social variam muito entre os diversos locais e têm se mostrado completamente insuficientes para atender o grande contingente de pessoas que têm dificuldade de pagar pelos serviços.
O olhar distorcido, focado em bons resultados financeiros a partir do que se arrecada com as tarifas de água e esgoto, atinge as prestadoras privadas de forma aguda, mas também tem afetado as prestadoras públicas de saneamento, parte das quais têm seu capital aberto, pagam dividendos a seus acionistas e têm preocupações significativas com os resultados financeiros. Evidentemente, isto tem reflexos na população mais pobre, mas também em questões ambientais como, por exemplo, no baixo interesse em ampliar rapidamente o tratamento de esgotos e de melhorar a qualidade dos rios de forma mais ecológica, na medida que a remuneração pelos serviços acontece automaticamente a partir da coleta de esgotos, quer os mesmos sejam tratados ou não, quer esteja havendo ou não uma evolução na qualidade das águas.
Existe hoje um gigantesco desafio de, a curto prazo, assegurar um serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário de boa qualidade para as pessoas que residem nas áreas rurais e comunidades tradicionais, em assentamentos informais ou para o contingente crescente de pessoas em situação de rua. Para que se consiga avançar nesta direção, identificam-se algumas ações estratégicas:
- inclusão das ações e programas para enfrentamento das soluções descentralizadas de saneamento nas políticas públicas deste setor, em especial para os pequenos núcleos e para aqueles de baixa densidade populacional. Esta ação inclui a certificação de soluções, assessoria técnica para sua implantação levando em consideração as questões socioculturais, operação e manutenção; e mecanismos de financiamento e subsídio para concretização;
- aperfeiçoamento dos mecanismos de remuneração dos serviços de saneamento, para que passe a ser um “bom negócio” o atendimento daqueles que têm pouco dinheiro. Isto inclui parâmetros de avaliação tais como o percentual de pessoas atendidas com tarifa social e o fornecimento do mínimo vital de água em qualquer situação. A ação inclui também o aperfeiçoamento dos mecanismos de tarifa social e de subsídio cruzado tarifário;
- formulação de estratégias para que recursos tributários das esferas estaduais e federal, tanto onerosos como a fundo perdido, consigam atingir, de forma planejada, os pequenos municípios e os locais com forte concentração do déficit de saneamento, onde apenas os recursos tarifários e recursos municipais não serão viáveis para o efetivo equacionamento da demanda.
- Integração da saúde pública ao objetivo primordial dos serviços de saneamento em todas as dimensões, com uma abordagem ecológica e incluindo a gestão de riscos, bem como melhoria da qualidade de vida e a preservação dos ecossistemas. Inclui o desenvolvimento de programas e fundos para alavancar as Soluções Baseadas na Natureza (SBN), para promover a gestão ecológica do ciclo da água, saltar da infraestrutura cinza para verde, para o eco saneamento, contribuindo nos processos de revitalização de bacias hidrográficas, integrando a cidade, o campo e o bem viver das comunidades tradicionais, ou seja, unindo a Reforma Urbana, a Reforma Agrária, a Reforma Sanitária e a Preservação das Terras Indígenas e Quilombolas.
[1] Disponível aqui.
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Como fazer com que o saneamento chegue de forma mais ecológica onde ele é caro e as pessoas têm pouco dinheiro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU