Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 2º Domingo da Páscoa (in albis), 16 de abril de 2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O capítulo final do quarto Evangelho, João 20 (Jo 21 é um acréscimo posterior), deveria ser lido inteiramente, para compreender em profundidade “o primeiro dia da semana” (Jo 20,1.19; cf. 20,26), o terceiro dia depois da morte de Jesus.
O primeiro dia da semana é o dia da ressurreição do Senhor, mas é também aquele em que o Ressuscitado se faz presente em meio aos seus: é o dia do Senhor, o dia da intervenção decisiva de Deus, que, ressuscitando Jesus, venceu a morte.
A partir do Novo Testamento, sabemos também que justamente “o primeiro dia da semana” (At 20,7; 1Cor 16,2) foi escolhido pelos cristãos para estarem “no mesmo lugar” (At 1,15; 2,1.44.47 etc.) como assembleia de irmãos e irmãs que experimentam a vinda do Ressuscitado no meio deles.
Tendo descido a noite daquele dia, o desconforto reina nos corações dos discípulos, que não acreditaram nem na Madalena nem no discípulo amado. Mas Jesus tinha prometido: “Depois da minha morte, ‘mais um pouco e vocês me verão’” (Jo 16,16) e, fiel à palavra dada, ele “vem e está no meio”. Jesus é visto pelos discípulos no meio deles, no centro de sua assembleia, como aquele que cria e dá unidade, que “atrai todos a si” (cf. Jo 12,32).
Naquela posição de Kýrios, de Senhor, o Ressuscitado diz: “Paz a vocês!”, a saudação messiânica, palavra eficaz que traz paz, vida plena e expulsa o medo. E, para que as palavras sejam autenticadas pela sua pessoa de Mestre, Profeta e Messias conhecido pelos discípulos em sua vida com ele, Jesus mostra as mãos e o lado, que ainda trazem os sinais de sua paixão e morte (cf. Jo 19,34).
Jesus está presente com um corpo que não é um cadáver reanimado, mas que vem a portas fechadas, não obedecendo às leis do tempo e do espaço: um “corpo de glória” (Fl 3,21), um “corpo espiritual” (1Cor 15,44.46), no qual, porém, permanecem os sinais do fato de ter sofrido a morte por amor. São sinais de paixão e, ao mesmo tempo, de glória, sinais do amor vivido “até o fim, ao extremo” (Jo 13,1).
“E os discípulos se alegraram por verem o Senhor.” Ocorre aquilo que Jesus havia profetizado: “Agora, vocês também estão angustiados. Mas, quando tornarem a me ver, vocês ficarão alegres, e ninguém poderá tirar essa alegria de vocês” (Jo 16,22). Nessa nova situação da comunidade, o Ressuscitado, que havia prometido não a deixar órfã (cf. Jo 14,18) e dar-lhe outro Consolador (Jo 14,16), torna-se manifesto. Ele repete a saudação “Paz a vocês!” e anuncia: “Como o Pai me enviou, também eu envio vocês”.
Os discípulos acolheram o Enviado de Deus, seguiram-no e creram nele; agora, são enviados por todo o mundo para serem como ele, Jesus, foi em toda a sua vida: testemunhas da verdade, da fidelidade de Deus, isto é, de seu amor pela humanidade. Com sua vida, devem mostrar que “Deus amou tanto o mundo a ponto de lhe dar seu único Filho” (Jo 3,16).
Para serem habilitados a essa missão, devem ser recriados: é preciso uma imersão no Espírito Santo, é preciso o Espírito como novo sopro no coração de carne (cf. Ez 36,26). Então, Jesus, o Ressuscitado que respira o Espírito Santo, efunde-o sobre sua comunidade. Nós, cristãos, vasos de barro frágeis e pecadores (2Cor 4,7), pelo dom de Jesus ressuscitado, respiramos o Espírito Santo que perdoa os pecados e nos habilita à vida eterna no Reino de Cristo.
Somos, portanto, o corpo de Cristo, o “templo do Espírito Santo” (1Cor 6,19). O mesmo Espírito que ressuscitou Jesus da morte é o doador de vida aos discípulos, e, como “companheiro inseparável de Cristo” (Basílio de Cesareia), torna-se companheiro inseparável para todo cristão. É ele, presente em cada discípulo e discípula, que recorda as palavras de Jesus (cf. Jo 14,26), que o torna presente e testemunha que ele é o Senhor (cf. 1Cor 12,3).
O Espírito Santo, Espírito de Deus e Sopro de Cristo, nos é dado na nossa condição de corpo humano, de carne. Não esqueçamos que, no quarto Evangelho, a carne é o lugar da humanização de Deus – “A Palavra se fez carne” (Jo 1,14) –, o lugar escolhido por Deus para estar conosco e no meio de nós. A carne é lugar de conhecimento a serviço da Palavra de Deus que a habita: eis a morada do Espírito Santo.
Por isso, assim como Jesus foi concebido como carne pelo Espírito Santo e por uma mulher, assim também a Igreja é gerada pelo Espírito Santo e pela humanidade, e faz do sopro do Espírito a sua respiração.
Mas isso tem uma repercussão decisiva na vida dos cristãos: significa remissão dos pecados, porque a experiência da salvação que podemos fazer na terra é justamente a remissão dos pecados. Cantamos isso todas as manhãs no Benedictus: “... anunciando a seu povo a salvação, que está na remissão de seus pecados” (Lc 1,77). Receber o Espírito Santo é receber tal remissão, isto é, viver a ação do Senhor que não só perdoa, mas também se esquece dos nossos pecados, fazendo de nós criaturas novas.
Essa é a epifania da misericórdia de Deus, do amor de Deus profundo e infinito, que, quando nos alcança, nos liberta das culpas e nos recria em uma novidade que nós não podemos nos dar! E cuidado para não entender esse texto apenas como fundamento do sacramento da reconciliação. A capacidade de libertar da culpa e de fazer misericórdia é dada por Jesus a todos os discípulos: não só aos Onze, porque, no Cenáculo, no dia de Pentecostes, também estão as mulheres, está Maria junto com outros discípulos e discípulas (cf. At 1,13-15; 2,1).
Jesus, “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29), batizando os discípulos no Espírito Santo (cf. Jo 1,33), habilita-os à sua missão: perdoar, reconciliar com Deus e com os irmãos e as irmãs. Pela cruz e pela ressurreição, a humanidade foi reconciliada com Deus, mas tal evento deve ser anunciado a todos, e os discípulos são enviados para isso: aonde chegarem, devem fazer reinar a misericórdia de Deus, devem viver o mandamento último e definitivo do amor recíproco (cf. Jo 13,34; 15,12), devem perdoar os pecados uns aos outros, habilitados, portanto, a pedir o perdão dos pecados a Deus.
E que fique claro: as palavras de Jesus que acompanham o gesto do sopro do Espírito – “A quem vocês perdoarem os pecados eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoarem, eles lhes serão retidos” – são expressadas através de um estilo semita que se serve de expressões contrastantes para afirmar com mais força uma realidade.
Não significam um poder que os discípulos poderiam utilizar de acordo com seu arbítrio; pelo contrário, expressam que sua tarefa é a remissão dos pecados, o perdão, assim como foi para Jesus, que, em toda a sua vida, nunca condenou, mas sempre disse ter vindo não para julgar e condenar (cf. Jo 8,15; 12,47), mas para que todos “tenham a vida em abundância” (Jo 10,10). “Como o Pai me enviou, também eu envio vocês”, em que esse “como” refere-se a um estilo: “Como eu perdoei os pecados, vocês também devem perdoá-los; é com essa tarefa que eu envio vocês”.
Feita essa experiência, os discípulos anunciam a Tomé, que não esteve presente na primeira manifestação do Ressuscitado: “Vimos o Senhor!”. É o anúncio pascal que deveria ser suficiente para acolher a fé no Ressuscitado. Mas Tomé não acredita, aquelas palavras parecem-lhe devaneios nada confiáveis.
“Oito dias depois”, portanto, no primeiro dia da segunda semana depois do túmulo vazio, eis Tomé e os outros juntos novamente. É o primeiro, mas também o oitavo dia, dia da plenitude, mas os discípulos ainda têm medo dos assassinos de Jesus. Eles deveriam levar o anúncio pascal a toda a Jerusalém, mas, em vez disso, permanecem fechados, dominados pelo medo. Mas Jesus se faz presente de novo: “A portas fechadas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘Paz a vocês!”.
Eis a fidelidade de Jesus, Aquele que vem entre os seus, mesmo quando não o merecem e não estão à sua espera. Acima de tudo, ele entrega a paz, “a sua, não a do mundo” (cf. Jo 14,27), depois se dirige a Tomé, “chamado Dídimo”, o “gêmeo” de cada um de nós. Tomé é o gêmeo no qual há, como em nós, a lógica de querer ver para crer. Tomé é como nós: quando se perfila o evento da ressurreição, vemos morte (cf. Jo 11,15-16); quando Jesus anuncia que nos precede, não sabemos qual é o caminho (cf. Jo 14,2-6); quando devemos confiar no testemunho dos nossos irmãos e irmãs, queremos ser aqueles que veem...
Jesus, porém, vem também para Tomé e também a ele se mostra com os sinais de seu amor: os estigmas de sua paixão impressas para sempre em sua carne gloriosa. A ressurreição apaga os sinais da morte e do pecado, mas não os sinais do amor vivido, porque o fato de ter amado tem uma força que transcende a morte. Todo o cuidado aos doentes que as mãos de Jesus praticaram, todas as carícias que ele deu, todo o seu amor vivido, todas as forças liberadas de seu seio são visíveis também em seu corpo ressuscitado. Jesus, portanto, convida Tomé a se aproximar e a pôr o dedo naqueles estigmas.
E aqui, atenção, não está escrito que Tomé pôr seu dedo, mas disse: “Meu Senhor e meu Deus!”. Reconhecendo nos estigmas o amor vivido por Jesus, Tomé faz a confissão de fé mais alta e plena em todos os Evangelhos: Jesus é o Senhor, Jesus é Deus.
É por isso que quem vê Jesus vê o Pai (cf. Jo 14,9); é por isso que Jesus é a exegese de Deus que ninguém jamais viu nem pode ver (cf. Jo 1,18); é por isso que Jesus é “o Vivente” (Lc 24,5) para sempre.
Tomé certamente não é um modelo, embora possamos nos reconhecer nele. Por isso, Jesus lhe diz: “Bem-aventurados os que chegam a crer sem terem visto”. É conhecendo o amor vivido pelo Crucificado que se começa a crer: milagres e aparições não nos fazem ter acesso à verdadeira fé. Só a palavra de Deus contida nas Santas Escrituras, só o amor de Jesus do qual o Evangelho é anúncio e narração (“sinal escrito”, para citar o encerramento do Evangelho), só o fato de ficar no espaço da comunidade dos discípulos do Senhor é que podem nos levar à fé, fazendo-nos invocar Jesus como “nosso Senhor e nosso Deus”.