14 Abril 2023
"Talvez tenha chegado o momento de também reconsiderar o papel potencialmente positivo de comunidades e instituições religiosas transnacionais na reformulação e reforma das estruturas de governança globais. Atualmente, é possível observar tanto o papel negativo de certas religiões na configuração dos conflitos nacionais e internacionais, quanto o papel positivo de outras na busca de soluções para os muitos desafios globais que estão afetando as sociedades contemporâneas neste momento de transição para uma nova des/ordem global, ainda em estado de formação incerta", escreve José Casanova, professor emérito de Sociologia da Religião e Teologia na Universidade de Georgetown, Estados Unidos, em artigo publicado por La Vanguardia, 13-04-2023. A tradução é do Cepat.
Sociologicamente falando, ao longo da história, as religiões desempenharam uma função social dual. Por um lado, como bem analisou Émile Durkheim, as religiões serviram primordialmente como força de integração social, gerando e regenerando normas, valores e identidades coletivas, que serviam para manter tanto laços de solidariedade interna quanto de animosidade externa para com o outro.
Por outro lado, como ressaltou Max Weber, as religiões também serviram, em tempos de crise e transição social, à função profética e criativa de estimular processos de fraternização para além do clã, da tribo e da própria sociedade.
Ambas as funções tinham seu lado positivo, ao gerar laços de solidariedade e promover a fraternização, assim como seu lado negativo de sacralizar a violência e a conversão forçada do outro. Teorias da secularização e da modernidade tinham assumido que ambas as funções, embora operativas no passado, não poderiam mais ser desempenhadas nas sociedades modernas diferenciadas, tornando as religiões cada vez mais irrelevantes para o funcionamento do mundo moderno.
O papel ativo de diversas religiões em transformações políticas relevantes, que ocorreram simultaneamente, em 1979, em lugares tão diversos como Irã, Polônia, Nicarágua e Estados Unidos, forçou a uma reconsideração do papel potencial das religiões na esfera pública das sociedades modernas, processos que classifiquei como desprivatização da religião. [1]
Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, perpetrados por jihadistas muçulmanos, com imediata repercussão global, forçou a reconsiderar o papel potencial das religiões na geopolítica internacional. De repente, governos, organizações internacionais, cientistas sociais e jornalistas começaram a levar a religião mais a sério, ainda que por razões principalmente negativas, ou seja, pelo poder do sagrado em perturbar as estruturas seculares de governança global.
Talvez tenha chegado o momento de também reconsiderar o papel potencialmente positivo de comunidades e instituições religiosas transnacionais na reformulação e reforma das estruturas de governança globais. Atualmente, é possível observar tanto o papel negativo de certas religiões na configuração dos conflitos nacionais e internacionais, quanto o papel positivo de outras na busca de soluções para os muitos desafios globais que estão afetando as sociedades contemporâneas neste momento de transição para uma nova des/ordem global, ainda em estado de formação incerta.
O papel da Igreja Ortodoxa Russa e do Patriarca Kirill em sacralizar a atual guerra de agressão contra a Ucrânia como “guerra justa” e até como “guerra santa” é o caso mais óbvio do poder latente da religião na sacralização da guerra e a violência sociopolítica. Contudo, Kirill não é simplesmente o “coroinha de Putin”, conforme o classificou o Papa Francisco, ao contrário, junto com o arcebispo metropolitano Hilarion Alfeyev, é autor ideológico da teologia política do russkiy mir (mundo de Rus).
Em sua versão secular imperial russa, o mundo de Rus inclui a Grande Rússia, a Rússia Branca (Belarus) e a Pequena Rússia (Ucrânia), e a “operação militar é justificada” para desnazificar (ou seja, desnacionalizar), desmilitarizar e desucranizar a população da Ucrânia, forçando seus membros a se tornar novamente “russos” ou “irmãos pequenos” da Rússia.
Em sua versão político-religiosa, o Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa carrega o título de Patriarca de Moscou e toda a Rus, o que significa que considera a Ucrânia como território canônico próprio e que nega aos ucranianos o direito de formar suas próprias igrejas ucranianas (ortodoxa, greco-católica e protestantes).
A anexação dos territórios ucranianos da Galícia e Volínia, no final da Segunda Guerra Mundial, levou à liquidação violenta das igrejas históricas ucranianas, ortodoxa autocéfala e greco-católica, pelo regime estalinista, com o apoio da Igreja Ortodoxa Russa, que foi a única Igreja oficial estabelecida na República Soviética da Ucrânia. A partir de 2014, a anexação da Crimeia e a guerra em Donbass foram acompanhadas pela repressão da Igreja Ortodoxa Russa ao tentar restabelecer seu monopólio territorial.
Deve-se levar em conta que a busca do monopólio territorial religioso não é uma peculiaridade da Igreja Ortodoxa Russa, mas foi algo constante nas dinâmicas religioso-políticas do Estado-nação da idade moderna, como herança do modelo imperial constantiniano de cristandade, vigente tanto no Império Bizantino quanto no Sacro Império Romano ocidental.
O sistema de estados territoriais modernos que emergiu da Paz de Westfalia exacerbou o modelo de homogeneidade religiosa sob o princípio cuius regio eius religio (o monarca soberano determina a religião de seus súditos). O resultado foi uma Europa do norte homogeneamente protestante e uma Europa do sul homogeneamente católica, nas quais as minorias religiosas tiveram de se converter à força ou emigrar também à força. Nesse meio, formaram-se três sociedades com duas confissões religiosas (Holanda, Alemanha e Suíça), com suas próprias divisões territoriais constituídas por pilares, Länder e cantões protestantes ou católicos, que duraram até o final do século XX.
Mas, na realidade, o modelo de confessionalidade estatal e de territorialização religiosa de igrejas e povos precedeu às guerras religiosas da idade moderna, que acompanharam a formação do sistema westfaliano de estados territoriais soberanos. De fato, pode-se argumentar que o moderno processo de confessionalização estatal foi iniciado em 1492, pelos Reis Católicos, com sua decisão de expulsar judeus e muçulmanos, forçando todos os seus súditos a se converterem à fé católica.
Processos semelhantes de limpeza étnico-religiosa acompanharam a formação de estados nacionais territoriais soberanos em todo o mundo, com a expansão global colonial e pós-colonial do sistema de Westfalia.
O sociólogo alemão Max Weber ofereceu definições paralelas do Estado e da Igreja. Ambas são instituições que reivindicam o monopólio territorial: dos “meios da violência legítima”, no caso do Estado soberano, e dos “meios da graça salvadora”, no caso da Igreja verdadeira (extra ecclesiam nulla salus).
Os nacionalismos religiosos modernos são os que concentram esta fusão entre dinâmica territorial estatal e homogeneidade monopolista religiosa, mesmo no contexto de tradições religiosas milenares como o hinduísmo e o judaísmo do exílio, que não estavam associados com tal dinâmica eclesial territorial monopolista.
Dinâmicas semelhantes de limpeza étnico-religiosa são observáveis com a dissolução de impérios multirreligiosos (austro-húngaro, otomano e russo) e a formação de estados pós-coloniais, no subcontinente indiano e na Ásia, entre culturas caracterizadas por um pluralismo religioso tradicional, e no Oriente Médio e na África.
Portanto, parece mais adequado atribuir essa sacralização da violência étnico-nacional não à intolerância religiosa em si, mas, sim, à sacralização do Estado-nação e do nacionalismo moderno em fusão com a religião ou sem ela. Nesse sentido, o nacional-catolicismo, o nacional-socialismo, o nacional-comunismo, o nacional-hinduísmo e o nacional-sionismo, apesar de suas enormes diferenças, compartilham dinâmicas de sacralização da violência coletiva contra o outro, no sentido durkheimiano do sagrado, não por suas afinidades de intolerância religiosa, mas por seu qualificativo nacional comum.
Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 levaram muitos analistas, particularmente aqueles com tendências laicistas, a mais uma vez associar intrinsecamente a intolerância religiosa com a violência sociopolítica, lembrando as velhas guerras de religião da idade moderna, mas se esquecendo da violência indómita mais recente do século XX [2].
Sem dúvida, o século passado acarretou alguns dos mais graves genocídios coletivos da história da humanidade. Contudo, a maioria deles não é atribuível a doutrinas religiosas, mas, sim, a dinâmicas estruturais e ideologias seculares modernas, mesmo quando também envolveram dinâmicas conflituosas étnico-religiosas tradicionais. Por isso, também é questionável a associação intrínseca que tantos analistas encontram de modo muito mais superficial entre o Islã e a violência política.
De fato, the war on terror, ou a guerra contra o terrorismo supostamente muçulmano, foi convenientemente usada por muitos estados para avançar em seus próprios projetos geopolíticos imperiais e neocoloniais e para reprimir suas próprias minorias étnico-religiosas, como foi o caso do regime nacional-imperialista russo na Chechênia e o caso da repressão do regime nacional-comunista chinês contra suas minorias tibetano-budistas e uigures-muçulmanas. Isso nada mais é do que a dinâmica westfaliana do cuius regio eius religio, na chave do Estado absolutista laicista.
Nesse sentido, o próprio sistema internacional de Estados-nação, institucionalizado nas Nações Unidas, é a fonte da desordem global quando a soberania absoluta do Estado não é limitada, seja por processos de democratização interna, seja por normas jurídicas internacionais. A guerra na Ucrânia tornou evidente que, nas palavras do Papa Francisco, “a ONU não tem poder”. Não tem poder porque “as grandes potências”, os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, têm o poder de veto, que os coloca acima das normas que se supõe que eles próprios devem manter e proteger para o benefício de todos. Quando o país que atualmente preside o Conselho de Segurança se permite violar impunemente todas as normas internacionais, os Acordos de Helsinque e o direito internacional, claramente todo o sistema internacional cai na desordem.
A questão para todos nós é se seremos capazes de transformar esta tragédia humanitária em um momento kairós, ou seja, em um tempo justo, crítico e oportuno, que nos impele a criar novas estruturas de solidariedade transnacional que possam ser transformadas em novas estruturas internacionais, capazes de enfrentar os grandes desafios globais com os quais nos encontramos: movimentos migratórios e de refugiados que fogem de todos os tipos de desastres humanitários, a crescente desigualdade econômica e uma subsistência cada vez mais precária, não só nas periferias externas do sul, mas também nas periferias internas dos países mais desenvolvidos, pandemias que afetam a saúde pública de todas as sociedades e a crescente crise ecológica em grandes partes do mundo, causada pelo Antropoceno.
A guerra na Ucrânia, que ocorre após dois anos de uma pandemia global, não só deveria chamar a nossa atenção, mas nos chamar à ação. Desafios globais exigem respostas globais que, obviamente, nem o sistema capitalista global, nem o sistema internacional de Estados, as duas grandes forças estruturais que conduzem aos processos de globalização, parecem capazes de prover sozinhas.
Usando mais uma vez as palavras proféticas do Papa Francisco, em sua encíclica Fratelli tutti: “Além disso, quando eu estava redigindo esta carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia de Covid-19 que deixou descoberta nossas falsas seguranças. Para além das diferentes respostas dadas pelos diversos países, ficou evidente a incapacidade de agir conjuntamente. Apesar de estarmos hiperconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que afetam a todos nós. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está negando a realidade” (n. 7).
A era global em que estamos entrando não é o fim da história, como insistem alguns filósofos da modernidade ocidental, mas requer a construção de novas normas e sistemas, caso queiramos passar da globalização da indiferença reinante a uma globalização da fraternidade, como é defendida pelo Papa Francisco e outros líderes religiosos. O sistema capitalista global e o sistema internacional de Estados são as duas estruturas institucionais dominantes, que nada mais podem a não ser contribuir funcionalmente para uma globalização da indiferença.
Novamente, usando a linguagem profética do Papa, “a economia mata”. Mas é assim, não no sentido da crítica marxista tradicional ao capitalismo, porque é um sistema que supostamente está baseado na exploração universal do proletariado para se autorreproduzir. Mata porque o sistema econômico global contemporâneo pode prescindir de grandes massas populacionais nas periferias externas do sul e nas periferias do norte, já que não precisa mais delas como reserva de força de trabalho para se reproduzir.
Grandes massas da humanidade podem ser descartadas, como força de trabalho não qualificada, tendo que sobreviver na precária subsistência das economias informais. Segundo o jargão de Davos, todas essas pessoas não podem se tornar stakeholders, em parte interessada no sistema. O capitalismo hoje reina supremo como o sistema capaz de produzir eficientemente riquezas suficientes para cobrir as necessidades básicas de toda a humanidade. Contudo, o sistema continua mostrando sua incapacidade de redistribuir essas riquezas de forma equitativa.
Hoje, em meio à constante expansão da riqueza e da crescente desigualdade dentro e entre as nações, as sociedades democráticas avançadas já parecem incapazes de encontrar o consenso político, não só para redistribuir a riqueza de modo mais equitativo, mas também para reconhecer solidariamente o valor e a dignidade de todas as pessoas que se sentem abandonadas, tanto pelo sistema econômico quanto pelo político.
Ultimamente, o Papa Francisco tem se esforçado em promover com discursos e ações “a cultura do encontro”, que é absolutamente necessária para superar a crescente polarização - política, ideológica, moral e cultural - que está permeando nossas sociedades democráticas [3]. A promoção da cultura do encontro, em todos os níveis, interpessoais, entre comunidades, culturas, povos, sociedades e civilizações, é uma das tarefas ético-normativas mais urgentes de nossa era global.
Como sempre, são os mais fracos e os mais pobres que sofrem as consequências mais graves de todas as crises contemporâneas globais. Por isso, “a opção preferencial pelos pobres” não é simplesmente uma exigência ética bíblica, mas, sim, a única resposta adequada, tanto em uma perspectiva cristã quanto em uma posição realista de humanismo universal.
Somente através da mobilização dos recursos normativos de justiça social, paz, solidariedade fraternal humana e ecologia integral já existentes na sociedade civil transnacional, ainda que em formação e carente de maior estruturação institucional, pode haver esperanças de um novo modelo de desenvolvimento integral global. Tal modelo terá que emergir primeiro de baixo, a partir da base das práticas de redes e movimentos transnacionais, antes de encontrar uma institucionalização social mais ampla. É aqui que as tradições e instituições religiosas globais, que de fato já possuem uma estrutura transnacional, podem servir para promover uma globalização da fraternidade.
Apesar do caráter disfuncional de muitas instituições religiosas, que se manifesta sobretudo nos ainda vigentes escândalos de abuso sexual e no clericalismo e patriarcado ainda dominantes, seria necessário levar as religiões mais a sério, sempre e quando se mostrarem capazes de contribuir de alguma forma para “a cultura do encontro” e para fortalecer os laços de solidariedade humana global “para além de todas as fronteiras” e de todas as divisões sociais. Na linguagem durkheimiana, as religiões poderiam mais uma vez servir como um símbolo sacramental de uma transcendência sagrada que tenha a força de reunir as pessoas em novos laços de solidariedade e fraternidade globais.
De um ponto de vista sociológico, tais laços de solidariedade são absolutamente essenciais para desenvolver, individual e coletivamente, a força e a coragem para responder, criativa e responsavelmente, a todos os desafios prementes que enfrentamos como humanidade. É uma questão em aberto se as religiões, em diálogo e em colaboração com grupos não religiosos, serão capazes de responder a tal tarefa comum e tão urgente.
[1] José Casanova, Public religions in the modern world, Univ. of Chicago Press, Chicago, 1994.
[2] Julián Casanova, Una violencia indómita. El siglo XX europeo, Crítica, Barcelona, 2020).
[3] Kristina Stoeckl examina en este mismo Vanguardia Dossier el papel de grupos religiosos en las presentes guerras culturales globales.
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O papel das religiões na nova desordem mundial. Artigo de José Casanova - Instituto Humanitas Unisinos - IHU