30 Março 2023
"Cuidar da saúde mental e prevenir casos de suicídio entre os Povos Indígenas, além de uma questão de saúde pública, também é uma questão política. Ou seja, uma abordagem isolada e descontextualizada pode ser desastrosa, reducionista e ineficaz. Muito mais quando se refere à saúde mental indígena.".
O artigo é de Gabriel Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP - São Paulo/SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE - Belo Horizonte/MG). Membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima, onde vive com os povos Wapichana e Macuxi, na Região Serra da Lua.
Dentre os assuntos espinhosos que não se pode deixar de enfrentar e nem sequer relativizar, está a saúde mental e o suicídio. Infelizmente, trata-se de temas ainda muito estigmatizados e evitados nos mais diversos ambientes. Falta preparo e coragem para que espaços de discussão sobre esses dramas humanos sejam estabelecidos, tanto nas escolas e universidades, no ambiente de trabalho, nas igrejas, quanto pelo poder público. Encarar o sofrimento psíquico com seriedade, cuidado e profundidade se impõe como uma tarefa urgente e inadiável. E os Povos Indígenas não devem ser excluídos desse debate tão fundamental para uma vida digna nas suas múltiplas dimensões.
A Organização Mundial da Saúde estima que de cada 100 mortes registradas por ano uma seja fruto de suicídio, o que totaliza um montante de 700 mil casos de morte autoinfligida, no mundo. Segundo o Ministério da Saúde o índice relativo à juventude tem crescido nos últimos anos, apresentando um quadro preocupante:
“Ainda de acordo com a OMS, as taxas mundiais de suicídio estão diminuindo, mas na região das Américas os números vêm crescendo. Entre 2000 e 2019, a taxa global diminuiu 36%. No mesmo período, nas Américas, as taxas aumentaram 17%. Entre os jovens de 15 a 29 anos, o suicídio aparece como a quarta causa de morte mais recorrente, atrás de acidentes no trânsito, tuberculose e violência interpessoal” [1].
O nível de deterioração da saúde mental nos Povos Indígenas, inclusive na sua forma mais extrema, o suicídio, está bem acima da média nacional. Esse cenário denota uma maior fragilização a que está submetida essa camada da população brasileira, com a evidente negação dos direitos e políticas públicas mais básicos. Tais violações estruturais atingem aquilo que tão bem resumiu o Papa Francisco como os 3 Ts: terra, teto e trabalho. Referida disparidade entre os índices chega a ser alarmante:
“No Brasil, a taxa de mortalidade por suicídio entre indígenas (15,2/100 mil) é quase três vezes maior do que a encontrada entre não indígenas (5,7/100 mil) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, SECRETARIA ESPECIAL DE SAÚDE INDÍGENA/SESAI, 2017). Por outro lado, é importante destacar que apesar do suicídio ser um problema importante de saúde pública no país este não ocorre de forma igual nos diferentes grupos indígenas do país. Por exemplo, taxas mais elevadas de mortalidade por suicídio são encontradas nas regiões centro-oeste (42,5/100 mil) e norte (15,1/100 mil) [...]” [2].
Como não poderia deixar de ser em um Estado alicerçado no agronegócio e no garimpo ilegal, Roraima não foge à regra. De acordo com os dados do relatório da Área Técnica de Atenção à Saúde Mental da DIASI - Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Leste de Roraima, apresentado na reunião do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI), em dezembro de 2022, houve 73 suicídios nos últimos dez anos (2012-2022). Logo, considerando uma população de 79.488 pessoas, o índice de mortalidade é de 9,2 por 100 mil pessoas, praticamente o dobro do montante nacional referente à população não-indígena.
Conforme os especialistas, o suicídio é uma questão complexa com influência de múltiplos fatores, entre eles, há aspectos biológicos, psicológicos, históricos e culturais. Dois deles merecem destaque, porque tocam particularmente as causas estruturais da injustiça social no país: a alta concentração de terras em grandes latifúndios e o racismo sistêmico, oriundo de um sistema escravocrata que perdurou legalmente por quase quatrocentos anos.
Segundo cálculos do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) existem cerca de 900 Terras Indígenas que ainda não tiveram seu processo de demarcação e homologação finalizado pelo Estado brasileiro [3]. O número provavelmente deve ser maior, considerando a diversidade de povos e a inexistência de dados exatos a respeito. Nesse sentido, pode-se imaginar a instabilidade e insegurança a que estão relegadas essas comunidades tradicionais, muitas vezes sem acesso às políticas públicas mínimas, em virtude do não reconhecimento oficial desses territórios. Sem mencionar os conflitos fundiários travados, sob cruéis violências e ameaças, com os fazendeiros e as grandes tradings internacionais exportadoras de commodities.
Para os Povos Indígenas, a terra tradicionalmente ocupada é vida. Ao revés, é inconcebível entender uma comunidade originária sem seu respectivo território. Não se está diante de uma mera relação de propriedade, como consideram os não-indígenas, mas de uma relação existencial. Por isso, impedir que retornem e ocupem com dignidade suas terras ancestrais significa um paulatino processo de genocídio.
No mencionado percurso de desumanização o racismo estrutural, segundo elemento apontado, desempenha um papel primordial. Ser indígena no Brasil é um fardo insuportável para muitos, porque significa ser caracterizado por estereótipos absurdos e sofrer todo o tipo de discriminação. Sem o direito à terra assegurado, os indígenas tornam-se escravos de um sistema capitalista baseado no consumo e na busca individualista do lucro desenfreado.
Infelizmente, a precarização da saúde mental dos jovens indígenas em Roraima e o seu consequente índice de mortalidade por suicídio revelam, dentre as possíveis causas, um diminuto território homologado e uma perda de identidade cultural das novas gerações. Muitas das Terras Indígenas foram demarcadas em ilha, ou seja, de modo descontínuo e com espaço insuficiente para as atividades tradicionais. Áreas de caça e pesca, cemitérios e lugares sagrados, locais de retirada de elementos para confeccionar seus artesanatos foram, invariavelmente, excluídos do reconhecimento oficial.
Referidas demarcações aconteceram, durante a década de 1980, sob pressão dos funcionários da FUNAI, mancomunados com a elite local, que convenceram as lideranças indígenas a aceitarem territórios menores, com a promessa de que o reconhecimento seria mais rápido. Isso aliado a forte e avassaladora invasão cultural da sociedade envolvente, sem políticas públicas apropriadas de fortalecimento dos valores ancestrais, tem contribuído para a desestruturação familiar e da organização comunitária indígena.
Desse modo, a introdução da bebida alcoólica, inclusive como estratégia histórica de escravização dessas populações, agrava sobremaneira as relações socioculturais. Em virtude do alto índice de alcoolismo, os casos de violência doméstica e abuso sexual têm crescido nas últimas décadas, com impactos negativos no ambiente familiar. Todavia, é preciso reiterar, mais uma vez, que os fatores históricos e socioculturais elencados não são as únicas causas desse complexo quadro ora descrito.
Mesmo sendo inegável o considerável índice de suicídio indígena em Roraima (9,2/100 mil), uma análise mais pormenorizada indica que se encontra abaixo da taxa de mortalidade indígena da região Norte (15,1/100 mil). Tal ponto pode indicar a força da organização local, que se constituiu em um modelo para o movimento indígena nacional. Apesar da demarcação em ilha e da necessidade de reestudo dessas terras, o estado possui pendentes de reconhecimento oficial quatro Terras Indígenas: Lago da Praia, Anzol, Arapuá e Pirititi. Ao passo que o Estado do Amazonas totaliza 199 territórios sem providências por parte da FUNAI.
Principal organização da região, o Conselho Indígena de Roraima (CIR), teve como convidado de sua 52ª Assembleia Estadual, ocorrida em 11 a 14 de março do presente ano, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Isso ocorreu décadas depois de uma grande decisão, tomada coletivamente em 1977, que disse “não à bebida alcoólica e sim à comunidade”. Um evento hoje celebrado e valorizado pelas lideranças indígenas como um momento marcante na história de sua luta. Essa força da resistência indígena culminou na eleição da primeira advogada indígena do país, Joenia Wapichana, como a primeira parlamentar indígena da história.
Diante desse cenário traçado, cuidar da saúde mental e prevenir casos de suicídio entre os Povos Indígenas, além de uma questão de saúde pública, também é uma questão política. Ou seja, uma abordagem isolada e descontextualizada pode ser desastrosa, reducionista e ineficaz. Muito mais quando se refere à saúde mental indígena.
Os Povos Indígenas com sua imensa diversidade cultural necessitam de uma atenção especializada e que respeite seus saberes ancestrais. Qualquer ação eivada de uma visão colonizadora que desconsidere seu modo de vida tradicional e traga mais violência e sofrimento é inaceitável:
“O fortalecimento das práticas de autoatenção, dos saberes e sábios indígenas constitui um fator de proteção que podem ser acionadas pelas próprias comunidades e aldeias indígenas. No entanto, também se faz necessário elaborar estratégias de cuidado das pessoas em sofrimento psíquico, emocional, espiritual. Estratégias estas que devem estar baseadas no dispositivo epistemológico da articulação de saberes em saúde indígena. Os saberes profissionais devem dialogar com os saberes indígenas e a partir do qual se construir as ações de enfrentamento ao fenômeno da morte autoinfligida. Sobretudo, para terem eficácia, essas ações precisam ser construídas com cada comunidade indígena” [4].
Aquele que se reconhece como o “Papa que veio do fim do mundo” tem alertado a todos os homens e as mulheres de boa vontade para a necessidade de se comprometer com a justiça social. Estar alheio ao contexto de opressão imposto às populações indígenas em plena atualidade implica na perpetuação dessa marginalização. Com a palavra o Papa Francisco:
“É preciso indignar-se, como se indignou Moisés (cf. Ex 11, 8), como Se indignava Jesus (cf. Mc 3, 5), como Se indigna Deus perante a injustiça (cf. Am 2, 4-8; 5, 7-12; Sal 106/105, 40). Não é salutar habituarmo-nos ao mal; faz-nos mal permitir que nos anestesiem a consciência social, enquanto «um rastro de dilapidação, inclusive de morte, por toda a nossa região, (…) coloca em perigo a vida de milhões de pessoas, em especial do habitat dos camponeses e indígenas». Os casos de injustiça e crueldade verificados na Amazônia, ainda durante o século passado, deveriam gerar uma profunda repulsa e ao mesmo tempo tornar-nos mais sensíveis para também reconhecer formas atuais de exploração humana, violência e morte” (Querida Amazônia, n. 15).
Portanto, enfrentar a gravidade do aumento dos casos de morte autoinfligida, promovendo o cuidado com a saúde mental dos Povos Originários, demanda que haja vontade política do Estado brasileiro e uma ampla participação dos diferentes órgãos públicos. Estruturar equipes multiprofissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), com pessoal e meios adequados para atender às comunidades indígenas, apesar de fundamental e básico é insuficiente.
Enquanto não houver uma política indigenista oficial, ampla e de conjunto, que garanta a posse e o usufruto exclusivo dos territórios indígenas, nos termos do art. 231 da Constituição Federal, bem como ofereça condições de autossustentabilidade e preservação da cultura por meio de uma educação específica e diferenciada, quaisquer outras medidas serão sempre insatisfatórias e incompletas. Por isso, o grito do abril indígena que se avizinha nunca foi tão apropriado: demarcação, já!
[1] Disponível aqui. Acesso em 23/03/2023.
[2] Bem Viver: Saúde Mental Indígena. Org: Michele Rocha El Kadri, Suzy Evelyn de Souza e Silva, Alessandra dos Santos Pereira e Rodrigo Tobias de Sousa Lima. Porto Alegre: Ed. Rede Unida, 2021, p.139.
[3] Disponível aqui. Acesso em 23/03/2023.
[4] Idem, p. 146.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Saúde mental e o suicídio indígena. Um problema de Estado. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU