Empresa de José R. Marinho e Armínio Fraga tenta instalar, em refúgio da Mata Atlântica, mansões, campo de golfe, aeroporto e marina. Projeto pode devastar manguezais e restingas e inviabilizar comunidades tradicionais. Mas a resistência começou.
A reportagem é de Aldem Bourscheit, publicada por ((o))eco, 17-03-2023.
Em uma das porções mais preservadas de toda a Mata Atlântica, a Mangaba Cultivo de Coco avança com um loteamento de luxo que poderá ocupar área semelhante a 1.700 campos de futebol, ou um quinto da ilha de Boipeba, no litoral sul da Bahia.
O projeto Turístico-Imobiliário Fazenda Ponta dos Castelhanos prevê a construção de residências de alto padrão, pousadas, aeroporto, píer para mais de 150 barcos e um campo de golfe.
Mapa da Ilha (Fonte: www.ilhaboipeba.org.br)
Conforme o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos da Bahia, o projeto também abriga um “parque de lazer”, sistema para abastecimento de água, rede própria para energia elétrica e estrutura para processamento e destinação de lixo.
A empresa tem como sócios José Roberto Marinho e Armínio Fraga. Marinho é um dos filhos do jornalista Roberto Marinho (1904-2003) e um dos herdeiros do Grupo Globo. Ele controla a Fundação Roberto Marinho, criada por seu pai, em 1977. Brasileiro naturalizado norte-americano, Fraga é economista, ex-presidente do Banco Central (1999-2003) no governo Fernando Henrique Cardoso e sócio fundador da Gávea Investimentos, banco de capital nacional e estrangeiro.
Outra sócia da empreitada é a Filadélfia Empreendimento Imobiliários e Participações. Ela pertence a Antônio Carlos de Freitas Valle, um dos ex-donos do Banco Matrix, cujas operações foram encerradas por envolvimento em escândalos financeiros.
Em meados de março, órgãos ambientais baianos e a empresa de frutas assinaram um “termo de compromisso” reforçando o sinal verde ao megaempreendimento. Na ocasião, o secretário de Meio Ambiente João Carlos Silva disse que o “grande atrativo dessa região é o ativo ambiental que se encontra ali. Isso tem que ser preservado, pois é o que torna a área relevante”. A realidade do projeto e as denúncias de moradores tradicionais mostram outro cenário.
O acordo governo-empresa prevê pouco mais de R$ 180 mil para “educação ambiental” e um “projeto socioambiental” na Área de Proteção Ambiental das Ilhas de Tinharé e Boipeba. O Conselho daquela Unidade de Conservação estadual está desativado desde 2004 e, assim, não avaliou o projeto.
O aperto de mãos e as declarações oficiais jogaram lenha na fogueira da indignação de ambientalistas, pescadores e pequenos agricultores. O loteamento de luxo causará estragos em manguezais, restingas, apicuns, mata nativa e terrenos de Marinha. Tudo protegido pela legislação federal, por sua importância para a sobrevivência e reprodução de inúmeras espécies de peixes e crustáceos.
Além disso, o empreendimento prejudicará o dia-a-dia de comunidades centenárias que vivem da pesca, da pequena agricultura e do extrativismo. Seu estilo de vida ajudou a manter grande parte do verde de Boipeba. O povoado de São Sebastião, ou Cova da Onça, no extremo sul da ilha, será encurralado pelo projeto turístico. Campos de mangaba nativos que posicionam a região entre as maiores produtoras do país estão na mira do desmatamento.
“Nunca plantaram (a empresa) um pé de coco, nem de mangaba, nada. Pelo contrário, querem tirar os pés de mangaba que são parte de nossa renda e alimentação”, reclama o presidente da associação de moradores, Raimundo Esmeraldino Silva (56), o Siri. “Nunca passamos necessidade, sempre tiramos nosso sustento do território, da agricultura, do extrativismo e da pesca. Estamos pedindo socorro, pois estão acabando com nossa cultura e nossa identidade”, desabafa o pescador.
Segundo ele, o Ponta dos Castelhanos é puro desrespeito com as comunidades tradicionais, que começaram a ouvir sobre o mesmo apenas em 2011, quando o Governo da Bahia apresentou estudos socioambientais para a empreitada. Silva conta que a Mangaba Cultivo de Coco tem pressionado indivíduos, famílias e lideranças comunitárias para que engulam o projeto. Áreas de pesca são bloqueadas, barracos de pescadores vão ao chão e moradores que trabalham em fazendas regionais têm empregos ameaçados.
“É violência mesmo. Sem nosso território, a comunidade não sobreviverá, não tem como crescer. Como ficam nossos filhos e netos? Será que nossa única possibilidade será sair daqui e migrar para regiões onde está crescendo a especulação imobiliária, com alto custo de vida?”, pergunta o nativo da Cova da Onça.
Análise do Ministério Público do Estado da Bahia sobre os estudos oficiais para o licenciamento do Ponta dos Castelhanos concluiu que no processo há uma série de conflitos de competência entre órgãos públicos, planos para obras em áreas ecologicamente sensíveis, possibilidade de que materiais para a obra venham de ambientes preservados, destruição de mangues, prováveis prejuízos a córregos, nascentes, águas subterrâneas e áreas de desova de tartarugas marinhas.
“A questão desse Empreendimento é que as áreas de intervenção estão, em sua maior parte, conservadas, quais sejam os campos de mangabas, os manguezais, os recifes, os cordões litorâneos e os remanescentes de floresta ombrófila. Além disso, essas áreas estão legalmente protegidas”, traz o relatório. O mesmo sugeriu, ainda, a criação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural em área rica em mangabeiras.
Outro ponto cinzento é a propriedade das terras do Ponta dos Castelhanos. Conforme relatório da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, a ilha é alvo de grilagem de terras para projetos privados desde meados da década de 1970. Conforme o documento, a Mangaba Cultivo de Coco “sequer figura como compradora do imóvel no qual pretende realizar o empreendimento, não mantendo, portanto, nenhum direito possessório ou proprietário sobre o mesmo”.
Há outras comunidades na zona de impacto direto do empreendimento, como Moreré, Velha Boipeba e Monte Alegre. As duas últimas têm origem quilombola, em escravos fugidos da escravidão.
A resistência dos povoados ganhou uma petição na Internet, já com mais de 33 mil assinaturas. Também ocupa espaços na mídia regional, estadual e nacional. Desde 2013, o Movimento Boipeba Viva tem apelado ao Governo Baiano, que segue dando de ombros aos atropelos de direitos dos moradores tradicionais.
Naquele mesmo ano, Boipeba foi eleita a ilha mais bonita do Brasil, em uma votação feita pelo Trip Advisor, um dos sites de turismo mais acessados do mundo. Afinal, ela é pouco explorada em comparação com as vizinhas Morro de São Paulo e Trancoso, onde resorts e grandes hotéis começaram a chegar no fim dos anos 1990 e provocaram sérios impactos ambientais e sociais.
“Não queremos que Boipeba vire uma Morro de São Paulo, destruída pela urbanização desregrada. Comunidades tradicionais que viviam nos territórios que foram ocupados por resorts, hotéis e pousadas foram encurraladas em uma grande favela, o Buraco do Cachorro”, ressalta Bernardo Bramont (37), representante dos moradores de Moreré e de Monte Alegre.
Questionada por O Eco, a Superintendência do Patrimônio da União na Bahia afirma que o “imóvel Fazenda Ponta dos Castelhanos é totalmente da União” e que, até hoje, não recebeu nenhuma consulta dos órgãos ambientais do estado quanto ao projeto turístico-imobiliário.
O órgão federal informa que existe um pedido para uso “de território ocupado por comunidade tradicional denominada São Sebastião, também conhecida como Cova da Onça, (…), numa enseada próxima ao local conhecido como Ponta dos Castelhanos. Cabe ressaltar que, somente após a definição da área de uso tradicional, outras demandas de destinação de uso na região poderão ser avaliadas”.
Até o fechamento da reportagem, o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos da Bahia não explicou como o licenciamento ambiental do empreendimento imobiliário pode incidir sobre terras da União e ser concedido a uma empresa registrada para cultivo de frutas.
Não localizamos os contatos da Mangaba Cultivo de Coco, pois os registrados na Receita Federal são de uma agência de contabilidade, que desconhece telefone e e-mail da empresa. Apesar do grande porte, tanto a mesma quanto o projeto Turístico-Imobiliário Fazenda Ponta dos Castelhanos não possuem sequer um website.
Após a reprodução da matéria no site do IHU, a empresa Mangaba Cultivo de Coco, por meio de sua assessoria de comunicação, enviou a seguinte nota de esclarecimento:
Nota de esclarecimento
A empresa Mangaba Cultivo de Coco vem esclarecer os principais pontos do projeto Fazenda Ponta dos Castelhanos, localizada na Ilha de Boipeba, município de Cairu, Bahia.
Ao contrário do que vem sendo divulgado, o projeto prevê construções em menos de 2% da área total e supressão vegetal em apenas 0,17% (com sua devida compensação determinada pela Lei 11.428 de 2006) de 1.651 hectares adquiridos pelo grupo em 2008, o que garante a preservação naturalmente da APA das Ilhas de Tinharé-Boipeba.
A autorização e licença de instalação concedidas pelo Inema, através da Portaria 28.063 de 07 de março de 2023, preveem a implementação de um condomínio residencial rural com 69 lotes, sendo dois deles destinados para a comunidade de Cova da Onça para construção de um centro de cultura e capacitação, campo de futebol, equipamento esportivo e estação de tratamento de resíduos. Preveem também a construção de duas pousadas com 25 quartos cada, ao contrário de um resort de luxo como foi noticiado, de um atracadouro flutuante para pequenas e médias embarcações e a recuperação da pista de pouso já existente, tudo isso cumprindo rigorosamente 59 condicionantes socioambientais. Ressalte-se que o projeto autorizado pelo Inema não prevê a construção de campo de golfe.
Entre as condicionantes, estão o plano gestão de resíduos sólidos, gestão urbana e melhorias no saneamento básico da comunidade de São Sebastião (Cova da Onça), capacitação da mão de obra local, manutenção dos caminhos tradicionais para o Rio Catu, para os portos do Almendeiro Grande, da Ribanceira, do Coqueiro e do Campo do Jogador e livre acesso para as atividades extrativistas, respeitando o limite do manguezal.
O projeto foi submetido à manifestação de diversos órgãos, como o próprio Inema, o IPHAN, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Cultural Palmares (FCP), por exemplo.
Desde 2008, a Fazenda Ponta dos Castelhanos, que tem como sócio gestor Marcelo Pradez de Faria Stallone, vem cumprindo à risca diversos compromissos, entre os quais o Plano de Manejo APA Tinharé-Boipeba.
Além disso, sob orientação do Projeto Tamar, a Mangaba tem se responsabilizado pelo serviço de monitoramento e proteção dos ninhos de tartarugas marinhas, já que a Praia dos Castelhanos constitui uma área de desova. O serviço consiste em patrulhar diariamente a praia, promovendo sua limpeza e, nos períodos de desova, identificar, sinalizar e proteger os ninhos e registrar informações.
Importante destacar que, como demonstração do apoio da comunidade local ao projeto, em 2019, os habitantes de São Sebastião (Cova da Onça) encaminharam a autoridades municipais, estaduais e federais abaixo-assinado a favor da iniciativa, refletindo o entendimento daqueles que habitam, trabalham e estudam no território, já que se trata de uma importante e bem-vinda alternativa social, ambiental e econômica para o desenvolvimento sustentável da região.
Por fim, com o intuito de fortalecer ainda mais a relação com a comunidade local e outros atores envolvidos no processo, e garantir a transparência de todas as etapas, a Mangaba Cultivo de Coco vai instituir um comitê de relacionamento comunitário. A ideia é sensibilizar e mobilizar a participação, com vistas à compreensão popular das principais propostas do projeto. Além disso, será enfatizada a construção coletiva de um processo de escuta com o trade turístico, órgãos públicos municipais e outros agentes envolvidos.