04 Março 2023
Por que alguns católicos insistem tanto em defender o ensino católico contra a contracepção artificial, que foi rejeitado em grande parte pela fé e pela prática da maioria dos casais católicos e que os teólogos católicos fiéis, críveis, maduros e adultos desconstruíram completamente? A resposta, em grande parte, está na percepção de que, uma vez que a Igreja reconhece as falhas no princípio fundamental da Humanae vitae, todo o edifício do ensino sexual católico oficial desmorona.
A reflexão é dos teólogos estadunidenses Todd A. Salzman e Michael G. Lawler, coautores do livro “A pessoa sexual: por uma antropologia católica renovada” (Editora Unisinos, 2012).
Lawler é doutor em Teologia Sistemática pelo Aquinas Institute of Theology, em Saint Louis, e professor emérito da cátedra Amelia and Emil Graff em Teologia Católica da Creighton University, nos Estados Unidos. Salzman é doutor em Teologia pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e sucessor de Lawler na cátedra Graff.
O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 06-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No ano passado, a Pontifícia Academia para a Vida do Vaticano gerou polêmica em alguns ambientes católicos com a publicação de um livro que continha artigos que contestavam o ensino da Igreja sobre a contracepção e outras questões éticas sexuais.
Um tuíte posterior na conta oficial da Academia no Twitter, que foi posteriormente deletado, sugeria que a encíclica Humanae vitae do Papa Paulo VI, que promulgou uma proibição absoluta da contracepção artificial, não era um ensinamento infalível e, portanto, estava sujeito a mudanças.
A resposta dos católicos conservadores nas mídias sociais e em outros lugares foi rápida e negativa. Alguns acusavam a Academia de promover uma campanha destinada a derrubar o ensino da Igreja sobre a contracepção. O padre dominicano Thomas Petri, presidente da Dominican House of Studies em Washington, argumentou que esse ensino é “irreformável” e, portanto, não está sujeito a mudanças.
Algumas instituições americanas, como a Ave Maria University e o Ethics and Public Policy Center, ajudaram a promover um congresso inteiro dedicado à oposição à publicação da Academia. Organizado pelo Fórum Internacional de Juristas Católicos, o congresso foi realizado em Roma, em dezembro de 2022, e contou com palestrantes que fizeram críticas contundentes à Academia e à sua publicação.
Fulvio Di Blasi, eticista e advogado católico italiano, chamou o documento de “vergonhoso” e afirmou que havia uma “conspiração” e uma “estratégia clara para derrubar o magistério anterior”. Ele afirmou que alguns teólogos que contribuíram para a obra estavam tentando justificar moralmente a contracepção, as relações homossexuais e as tecnologias reprodutivas, mudando “o paradigma da teologia moral”.
“Parece que, às vezes, todo o trabalho de algumas pessoas na Igreja é justificar o sexo homossexual, o que é realmente feio. Digo ‘feio’ porque, na ética clássica, o bom e o belo andam juntos, de modo que há uma atração para aquilo que é bom”, disse Di Blasi.
A Academia defendeu tanto sua publicação quanto o congresso dos opositores, observando que é responsabilidade de uma Academia Pontifícia, especialmente à luz da sinodalidade do Papa Francisco, facilitar o diálogo entre especialistas com opiniões diferentes.
Então, por que os conservadores defendem com tanta veemência a Humanae vitae? Acreditamos que isso vai além da questão da contracepção.
Primeiro, devemos verificar se a Humanae vitae é, de fato, infalível. A infalibilidade pode ser exercida de duas maneiras. A primeira foi estabelecida no Concílio Vaticano I (1869-1870), no qual um exercício extraordinário de infalibilidade papal foi definido como o fato de o papa declarar uma doutrina ex cathedra (a partir da cátedra). Isso ocorreu apenas uma vez, quando o Papa Pio XII declarou o dogma da Assunção da Virgem Maria aos céus em 1950.
O segundo exercício da infalibilidade, explicado na Lumen gentium, é a infalibilidade do magistério ordinário e universal. Tal infalibilidade ocorre quando os bispos, “embora dispersos pelo mundo, mas unidos entre si e com o sucessor de Pedro [o papa], ensinam autenticamente matéria de fé ou costumes concordando em que uma doutrina deve ser tida por definida” [n. 25].
Ninguém afirma que a doutrina sobre a contracepção na Humanae vitae foi definida ex cathedra. A questão da autoridade, então, gira em torno de saber se ela foi declarada infalível pelo magistério ordinário e universal.
O processo pelo qual a Humanae vitae surgiu em 1968 é uma parte importante de sua história. Por incentivo do cardeal belga Leo Suenens, cuja intenção final era que um documento adequado sobre o casamento cristão fosse levado ao Concílio Vaticano II (1962-1965) para ser debatido, o Papa João XXIII instituiu uma comissão para estudar a questão do controle de natalidade. A comissão foi confirmada e ampliada pelo Papa Paulo VI até chegar a 71 membros.
Na votação final da comissão sobre a questão de saber se a contracepção era intrinsecamente má, nove bispos responderam que não, três responderam que sim e três se abstiveram. Nove bispos também votaram a favor do relatório majoritário da comissão, que aprovava o uso da contracepção para regular a fertilidade em certas situações.
Dados os votos dos bispos da comissão, é um incrível esforço de imaginação e algo que desonra a consciência dos bispos afirmar que o magistério universal ordinário declarou esse ensinamento irreformável.
Os teólogos que aconselharam a comissão também ficaram divididos. Quinze deles não viam a contracepção como intrinsecamente má nem como uma violação da lei natural; quatro deles sim.
No entanto, Paulo VI não se convenceu com os argumentos da maioria e compartilhou a preocupação da minoria de que a Igreja não poderia repudiar seu ensinamento de longa data sobre a contracepção sem sofrer um sério contragolpe em sua autoridade moral geral. Assim, ele aprovou o relatório da minoria em sua carta encíclica Humanae vitae.
O relatório da minoria argumentava que “todo e qualquer ato matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida”. O relatório da maioria argumentava que o matrimônio em si, e não todo e qualquer ato matrimonial, deve estar aberto à transmissão da vida.
As duas posições refletem dois modelos diferentes de casamento: por um lado, o modelo tradicional de procriação focado no resultado “natural” do ato sexual; enquanto o relato da maioria se baseava, por outro lado, no novo modelo de união interpessoal que havia surgido no Concílio, que focava o significado total do matrimônio e da relação sexual dentro da relação conjugal.
O modelo interpessoal continua sendo o julgamento da maioria dos teólogos católicos e da grande maioria dos casais católicos. Cinquenta e cinco anos depois, apesar de um esforço minoritário coordenado, liderado pelo Papa João Paulo II e, mais recentemente, pelo Fórum Internacional de Juristas Católicos, para tornar a adesão à Humanae vitae um padrão de autêntica catolicidade, o debate entre os modelos procriativo e interpessoal perdura como fonte de divisão desnecessária na Igreja chamada à comunhão.
O debate sobre a autoridade do ensino sobre a contracepção foi resolvido pelo julgamento prático da grande maioria dos casais católicos e por muitos padres e bispos que optam por uma abordagem pastoral para aplicar a norma da Humanae vitae.
Na Amoris laetitia, Francisco ensina que, embora os meios naturais de regulação da fertilidade – a única forma moralmente aceitável de regulação da fertilidade permitida pelo magistério oficial da Igreja – devam ser “promovidos”, o próprio casal deve decidir em consciência diante de Deus.
Em nenhum lugar da Amoris laetitia Francisco cita a condenação absoluta da Humanae vitae à contracepção artificial, o que ele certamente teria feito se esse fosse um ensinamento infalível. Em vez disso, seguindo o magistério católico tradicional, ele promove a paternidade responsável e a autoridade e a inviolabilidade de uma consciência bem formada, citando a Gaudium et spes.
Ao justificar o desacordo com (e não a conspiração contra, como sugere o Fórum Internacional de Juristas Católicos) o ensinamento magisterial contra a contracepção artificial, a Pontifícia Academia para a Vida e outros teólogos estão usando um novo paradigma moral ou aquilo que Francisco chama na Amoris laetitia de “novos caminhos pastorais”, que “levam em conta tanto a doutrina da Igreja como as necessidades e desafios locais” [n. 199].
Esses novos métodos reconhecem a distinção entre teologia moral e pastoral, entre moral objetiva e subjetiva. A primeira enfatiza as normas objetivas e o ensino magisterial; a última enfatiza a orientação pastoral e a consciência subjetiva.
Como observa o teólogo Norbert Rigali, embora haja apenas uma única verdade moral, a verdade moral existe apenas no sujeito. Francisco parece defender esse tipo de priorização do sujeito moral e de sua consciência quando ensina na Amoris laetitia que a Igreja é chamada “a formar as consciências, não a pretender substituí-las” [n. 37].
Os novos métodos pastorais também refletem uma integração do ensino social e sexual católico. A ética social católica tem sido amplamente orientada por princípios, focada em relacionamentos, dinâmica, desenvolvimentista e indutiva; a ética sexual católica continua sendo amplamente orientada pela lei, legalista, focada em atos, estática e dedutiva. A integração de ambas marca uma mudança profunda na ética teológica católica.
Na Amoris laetitia, Francisco introduziu uma mudança de paradigma ético ao integrar os métodos éticos sexuais e sociais católicos e ao confiar fortemente nas intuições da experiência, da sinodalidade e das ciências biológicas e sociais. Essa mudança em relação a um ensino sexual católico dedutivo, absolutista e de tamanho único é profundamente ilustrada na citação de Francisco da Summa Theologiae de Tomás de Aquino pela primeira vez em um documento oficial da Igreja.
“Embora nos princípios gerais tenhamos o caráter necessário” – afirma Tomás –, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da ação, a verdade ou a retidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a retidão é idêntica nas próprias ações, esta não é igualmente conhecida por todos. (...) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação” [n. 304].
Essa passagem sugere uma mudança de paradigma ético na ética sexual católica, que tem profundas implicações para o ensino sexual católico.
Por que alguns católicos insistem tanto em defender o ensino católico contra a contracepção artificial, que foi rejeitado em grande parte pela fé e pela prática da maioria dos casais católicos e que os teólogos católicos fiéis, críveis, maduros e adultos desconstruíram completamente?
A resposta em grande parte, acreditamos, está na percepção de que, uma vez que a Igreja reconhece as falhas no princípio fundamental da Humanae vitae, todo o edifício do ensino sexual católico oficial desmorona.
O princípio fundacional para justificar a proibição absoluta da contracepção é o princípio da inseparabilidade, que afirma “a conexão inseparável que Deus quis e que o homem não pode alterar por sua iniciativa, entre os dois significados do ato conjugal: o significado unitivo e o significado procriador”, nas palavras da Humanae vitae [n. 12].
Se o princípio da inseparabilidade for demonstrado como falso, o que de fato tem sido demonstrado agora por inúmeros estudiosos que usam uma exegese sólida, uma ciência, uma experiência e uma leitura adequadas da tradição, então toda a base para defender outras normas sexuais desmorona.
No entanto, esse princípio, na realidade, é uma revisão da teologia conjugal e moral anterior a 1968. Ele está em contradição direta com o ensinamento do Papa Pio XII que permitia a prática intencional do método rítmico para regular a fertilidade, ao separar de fato os dois significados do ato conjugal e impedir a gravidez, mesmo durante o casamento, por “motivos graves”.
A alegação de que existe uma distinção moral entre as intenções do método rítmico aprovado ou o planejamento familiar natural e a contracepção artificial proibida, ambos os quais pretendem evitar a gravidez, é hipócrita, contraintuitiva e moralmente injustificável.
Para casais inférteis e pós-menopausa, e para todas as mulheres férteis durante a maioria dos dias de seu ciclo de fertilidade, não há nenhum significado procriativo para o ato sexual. Uma razão pela qual o magistério católico condena os atos homossexuais é que tais atos “fecham o ato sexual ao dom da vida” [Catecismo da Igreja Católica, n. 2.357]; em outras palavras, eles violam o significado procriativo do ato sexual.
Tanto gays quanto lésbicas são seres humanos naturalmente sexuados, e sua atividade sexual é tão incuravelmente infértil quanto os atos de heterossexuais casados permanentemente inférteis, que a Igreja Católica reconhece como legítimos e éticos.
A abertura à transmissão da vida em termos biológicos, então, é moralmente sem sentido quando é impossível que casais heterossexuais permanentemente inférteis se reproduzam biologicamente.
Em termos relacionais, no entanto, casais heterossexuais e homossexuais permanentemente inférteis são capazes de se abrir à transmissão da vida, a vida de suas uniões pessoais, e não a vida de um novo ser biológico.
Uma vez que o ensino magisterial reconhece esse fato científico e experimental incontestável, o princípio da inseparabilidade não mais se sustenta, e os argumentos morais baseados nesse princípio para proibir atos contraceptivos, homossexuais e reprodutivos artificiais desmoronam.
Di Blasi afirma que é fundamental “gastar algum tempo para consertar esse debate para que possamos seguir em frente”. Concordamos plenamente que precisamos consertar esse debate e seguir em frente. Insistimos, no entanto, que devemos avançar de uma forma que reconheça a verdade de um ensinamento sexual e social católico integral, moldado pela experiência humana e por relacionamentos justos e amorosos, e não por um ensinamento desconsiderado e medroso que não tem nenhum peso ou relevância para os fiéis.
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A defesa conservadora da Humanae vitae não tem a ver apenas com contracepção. Artigo de Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU