12 Fevereiro 2023
No ano passado, a revista America pediu a duas professoras de teologia com formação em estudos de gênero, Elizabeth Sweeny Block, da St. Louis University, e Abigail Favale, da Universidade de Notre Dame, que respondessem à instrução vaticana de 2019 da Congregação para a Educação Católica, intitulada “Homem e mulher os criou: para uma via de diálogo sobre a questão do gender na educação” [disponível em português aqui].
À época, a America convidou cada estudiosa a responder à outra, cujo diálogo foi publicado pela revista.
À luz da discussão frutífera entre elas e em reconhecimento ao fato de que os debates sobre a identidade de gênero e a teoria de gênero continuam fazendo parte do diálogo político e eclesial nos Estados Unidos e em outros lugares, a revista America pediu a ambas as estudiosas que respondessem uma à outra novamente.
As respostas das autoras foram publicadas pela revista America, 08-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por Abigail Favale
Meus agradecimentos à America e à professora Block por esta oportunidade de diálogo. A Dr.ª Block escreve favoravelmente sobre os recentes encontros do Papa Francisco com pessoas transexuais, traçando um suposto contraste entre a abordagem de Francisco e o documento da Congregação para a Educação Católica. Essa é uma falsa bifurcação. “Homem e mulher os criou” contém quase duas dezenas de referências aos discursos e escritos de Francisco; Francisco é a fonte mais citada. De fato, mais do que qualquer outro papa ou departamento vaticano, Francisco ofereceu desafios diretos e contundentes ao marco da teoria de gênero.
Em quatro ocasiões públicas, Francisco descreveu a popularização da teoria de gênero como uma forma de “colonização ideológica”. O que, precisamente, ele acha tão censurável?
Primeiro, Francisco rejeita a premissa fundamental da teoria da identidade de gênero, especificamente que o sexo biológico não fundamenta a identidade de uma pessoa como homem ou mulher (Amoris laetitia, n. 56).
Em segundo lugar, ele adverte contra a manipulação biomédica da diferença sexual, que “remove ao mesmo tempo tanto a dignidade humana da constituição sexualmente diferente quanto a qualidade pessoal da transmissão generativa da vida”.
A crítica mais ampla de Francisco ao discurso de gênero contemporâneo pode ser encontrada na Amoris laetitia, na qual ele rejeita “uma ideologia genericamente chamada gender” que “nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher” e que separa a “identidade pessoal” do sexo biológico (n. 56). De acordo com Francisco, esse marco e o modelo de modificação biomédica que o acompanha invertem a relação entre o Criador e a criatura:
“É preciso não esquecer que ‘sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separar’. [...] Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspectos inseparáveis da realidade. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos onipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.” (AL 56)
Francisco situa a questão de gênero dentro de sua crítica mais ampla da conquista tecnológica da natureza pela humanidade. Ele traça uma conexão entre o modo como abordamos os nossos corpos e o modo como abordamos a criação como um todo: “Uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes sutil, de domínio sobre a criação” (Laudato si’, n. 155; AL 285). A aceitação corporal é um tema recorrente nas discussões de Francisco sobre gênero, e ele nos exorta a ajudar especialmente os jovens a “aceitar o próprio corpo” tal como foi criado (AL 285).
Esse é o aspecto da abordagem de Francisco que é negligenciado pela Dr.ª Block: o ministério do ensino, articulando a fé à luz dos desafios contemporâneos. Esse ministério é inseparável do trabalho pastoral paralelo de acompanhamento por parte de Francisco, de sua atenção às pessoas e de sua disponibilidade para a escuta, para o diálogo, para caminhar lado a lado. Como mestre, ele articula a verdade da antropologia católica e a doutrina da criação. Ele rejeita a antropologia falha da teoria de gênero. Mas, como pastor, ele modela o acompanhamento, encontrando o indivíduo onde quer que ele ou ela esteja e percorrendo o caminho de Cristo – o caminho da cruz – com paciência e gradualidade.
Acredito que a dupla abordagem de Francisco é o melhor caminho a seguir, um caminho que mantém a fidelidade tanto ao amor quanto à verdade, que em Cristo são inseparáveis. Devemos evitar a leitura errônea do rigorista, que vê os encontros de Francisco com pessoas LGBT como um fracasso de seu ministério papal, ao invés de uma conquista.
No entanto, também devemos evitar o erro da imagem espelhada do relativista: elogiar Francisco por esses encontros, ao mesmo tempo em que se desconsidera inteiramente o que ele realmente pregou sobre o assunto.
Ambos cometem o mesmo erro: ver a fidelidade ao ensino da Igreja e o trabalho de acompanhamento como mutuamente excludentes.
Francisco nos mostra um caminho para sair da falsa dicotomia entre relativismo e rigorismo, em que o acompanhamento se fundamenta na verdade, e a verdade se expressa no amor. A distinção que fiz em minhas considerações iniciais – que devemos distinguir entre pessoas e ideias em nossa resposta à teoria de gênero – é uma distinção que eu vejo refletida nas palavras e nas ações de Francisco. Ele atende compassivamente à situação e às experiências da pessoa; no entanto, ele não concede à “experiência vivida” o poder de determinar a verdade última.
Gostaria de acrescentar uma palavra final sobre o acompanhamento, apelando à minha própria – ouso dizer – experiência vivida. Quando me tornei católica, meu marco sobre a teoria de gênero foi desafiado por vários ensinamentos da Igreja. A posição da Igreja sobre a contracepção, um sacerdócio feminino e o casamento entre pessoas do mesmo sexo contradizia minhas crenças pessoais, e eu relutava em harmonizar minha vida com a Igreja. Então, não harmonizei. Não no começo, nem por algum tempo.
Meu caminho rumo ao catolicismo foi bastante solitário, mas eu tive uma pessoa que me acompanhou, um ex-aluno que se tornou seminarista. Eu levava para ele todos os meus sentimentos de dissonância; eu lhe fazia as minhas perguntas difíceis, fazia as minhas objeções. E ele sempre ouvia com gentileza e paciência. Ele nunca balançaria o dedo ou me pressionaria para entrar na fila. Mas ele também não varreu as reivindicações contraculturais da Igreja para debaixo de um tapete não ameaçador.
Dessa forma, fui convidada para uma verdade maior do que eu, mais vasta do que o marco estreito da minha experiência – uma verdade com o poder de fazer uma transformação real, uma verdade com o poder de salvar.
A Dr.ª Block termina suas considerações anteriores com um apelo à humildade, um valor que eu compartilho. Mas a elevação da experiência humana sobre a revelação divina é o oposto da humildade. O ponto de partida da humildade é a consciência de que somos criaturas, não autocriadores; que não determinamos a nossa natureza, mas a recebemos como um dom; que somos feridos por limites naturais, ignorância e pecado; que precisamos de salvação. E – ao contrário dessa primeira mentira primordial – não somos nossos próprios deuses. Não podemos salvar a nós mesmos.
Por Elizabeth Sweeny Block
A Dr.ª Favale e eu continuamos tendo pontos em comum em nossa conversa. A Dr.ª Favale se esforça para afirmar que existe uma realidade que existe fora dos marcos culturais, independentemente de afirmarmos ou não essa realidade. Eu concordo. Os humanos não inventam a verdade moral; nós a discernimos e a descobrimos mediante uma variedade de fontes em diálogo. Isso significa que não inventamos verdades sobre gênero e sexualidade; nós discernimos essas verdades na criação.
No entanto, é um trabalho para toda a nossa vida moral descobrir essa verdade moral, refinar e ajustar a nossa compreensão da realidade à medida que descobrimos novas informações e descobrimos a revelação de Deus em novos lugares. Tenho menos certeza do que a Dr.ª Favale de que conhecemos perfeitamente o plano de Deus para o gênero e a sexualidade humanos. Estamos aprendendo e descobrindo, e a nossa compreensão é sempre um trabalho em andamento, moldado por novas informações que encontramos.
A Dr.ª Favale dá menos peso à experiência humana do que a outras fontes de sabedoria moral. Concordo com ela que as nossas consciências devem ser formadas – pelo ensino e pela tradição da Igreja, mas também pela experiência, razão e conhecimento de uma variedade de disciplinas. Priorizo a experiência humana porque tem sido uma fonte subestimada de sabedoria moral e porque é a raiz da Escritura e da tradição.
Por “experiência”, eu não me refiro ao que quer que seja bom para um indivíduo ou mesmo para um grupo. A experiência se refere às realidades compartilhadas de milhões de pessoas que, neste caso, conhecem o plano de Deus para seu próprio florescimento. Estudos recentes sugerem que há mais de 1,6 milhão de pessoas trans apenas nos Estados Unidos.
A Dr.ª Favale observa que as nossas experiências são refratadas pelos marcos culturais que temos à disposição. De fato, somos formados e moldados por muitas forças que influenciam o modo como percebemos as nossas experiências. Mas isso também vale para a nossa compreensão do ensino e da tradição da Igreja. Isso significa que não podemos dizer nada? Não. Pelo contrário, continuamos trabalhando para descobrir nossos preconceitos e pontos cegos privilegiados em diálogo uns com os outros e com as vozes dos marginalizados, e estamos prontos para revisar nossa compreensão da verdade à medida que avançamos.
Muitas forças externas moldam as nossas autopercepções, mas eu não ousaria dizer que todas as pessoas trans são transgênero porque foram influenciadas pelo “conceito de identidade de gênero subjetiva e uma abordagem medicalizada do gênero”. Em muitos casos, uma abordagem medicalizada do gênero também proporciona alívio e esperança às pessoas trans.
Além disso, os marcos teóricos são moldados pela realidade e pela verdade, e podem nos ajudar a nos aproximar delas. De fato, a teoria nos ajuda a dar sentido à experiência humana e não apenas a obscurece. A teoria de gênero, em diálogo com o ensino da Igreja, pode iluminar a experiência humana? Essas três fontes podem trabalhar juntas e aprender umas com as outras? Eu penso que sim.
O fato de haver mulheres e homens não é um ponto que eu discuto. Mas nem todos se encaixam nesse binário, e por que deveríamos forçá-los a fazê-lo? Está em jogo nada menos do que seu próprio florescimento humano. Mesmo que aquelas pessoas que não se encontram nesse binário ou em seu gênero atribuído sejam poucas em comparação com a população cisgênero, por que negaríamos a elas seu próprio florescimento?
Aqueles que consideram imoral a transição de gênero são rápidos em apontar para estatísticas que mostram que a população trans é pequena. Isso torna muito fácil dizer que “as pessoas transgênero são exceções à regra binária” e descartá-las como discrepantes, em vez de levar a sério suas intuições morais.
Eu aprecio profundamente o trabalho do teólogo católico Dr. Craig Ford Jr., que observa que estamos todos em uma jornada de gênero, não importa como nos identificamos, o que exige que trabalhemos para adquirir a virtude do alinhamento de gênero. Cada um de nós alcançará esse alinhamento de modo diferente, da mesma forma que alcançamos a justiça ou a coragem de modo diferente. Cada um de nós expressa o gênero de modo único.
A Dr.ª Favale observa com razão que existe um fundamento de verdade além de nós mesmos e que devemos nos deixar formar pela autorrevelação de Deus. Absolutamente! Mas a verdade não está apenas “lá fora”; ela também está nas realidades vividas dos corpos criados por Deus. Não estou disposta a fechar a porta para a possibilidade de que a autorrevelação de Deus se revele em corpos trans e não binários.
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O que Deus revela nos corpos transgênero? Um debate sobre magistério católico e gênero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU