25 Janeiro 2023
Para Costa-Gavras (Atenas, 1933), qualquer filme é político. Por isso, o nome deste cineasta grego, que logo completará 90 anos, aparece toda vez que se menciona o compromisso do cinema com a sociedade.
Presidente da prestigiada Cinemateca Francesa, que reúne e restaura o patrimônio cinematográfico mundial, sua última produção é Adults in the Room [no Brasil, o título é Jogo do Poder], inspirada no livro do ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, após seu efêmero mandato em plena crise financeira da Grécia.
Nessa produção, o cineasta reúne a sucessão de reuniões do Eurogrupo, em 2015, que levaram o país a adotar aquelas polêmicas medidas de austeridade. Uma tragédia no mais puro estilo da Grécia antiga, em que os personagens são simplesmente peões arrastados pelas consequências do que entendem ser o dever.
Três anos depois desse filme, aguarda-se que Costa-Gavras volte a pegar a câmera. Contudo, ele possui um motivo de peso para estender a pausa: ainda está procurando uma história pela qual se apaixonar.
A entrevista é de Gabriel Lerman, publicada por Ethic, 12-01-2023. A tradução é do Cepat.
Sua forma de trabalhar sempre foi marcada por histórias sociais que precisam ser reconhecidas. O mundo continua alimentando esse tipo de cinema?
O mundo hoje é um desastre. Ninguém sabe para onde a humanidade está indo, nem o que pode acontecer nos próximos anos. Mas, claro, essa incerteza pode ser a base para uma grande quantidade de filmes.
De qualquer modo, sempre me chamou a atenção essa distinção que se faz entre cinema social e outros tipos de cinema. Para mim, todo filme é político, porque fala a milhares de pessoas sobre a sua realidade e as leva a reagir diante dela.
O político não está só no que acontece com os líderes ou no trabalho que fazem comparado ao que outros construíram previamente. A política está naquilo que nós, cidadãos, fazemos todos os dias.
Em ‘Z’, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, você apresenta uma visão satírica da política grega em torno do assassinato do democrata Grigoris Lambrakis, em 1963. Com ‘Desaparecido’, mostra ao mundo o caso do jornalista estadunidense Charles Horman, desaparecido durante o sangrento golpe de Estado de Pinochet. E em ‘Muito Mais que um Crime’, relata a história de um imigrante húngaro acusado de ser um criminoso nazista. Você escolhe o conteúdo político porque realmente está interessado em abordá-lo ou porque faz parte do que marca a indústria do cinema?
Meus filmes são considerados políticos porque não seguem os temas do cinema atual, nem respondem à linha ideológica da maioria do público. Funcionam como um espectro da sociedade que vai ao cinema para vê-los e se sente bem com eles. Mas a forma de lê-los depende de cada um.
Começou nos anos 1960, um período histórico em que os assuntos políticos dominavam o cinema: a Guerra Fria, o bloco ocidental contra o oriental... No entanto, hoje, sua filmografia é uma das poucas que aborda a questão política.
Naquela época, havia muito mais tensões do que agora, por isso era possível criar excelentes histórias a partir da realidade. Não obstante, embora esses blocos agora tenham desaparecido, penso que muitos dos problemas vigentes naquele período permanecem vivos: não há mais tantos blocos ideológicos, mas, sim, econômicos.
Entramos em uma etapa histórica em que existe uma nova religião: a do dinheiro, que nos leva a nos concentrar na riqueza, enquanto abandonamos aqueles que nos cercam. O dinheiro está nos empurrando para o individualismo e para o progresso. Isto não é uma boa notícia.
A sociedade daquela época era mais consciente do que acontecia ao seu redor?
Completamente. Os anos 1960 e 1970 foram um grande período porque as pessoas pensavam nos outros, no ser humano e em como construir uma sociedade melhor. Lamentavelmente, aquelas pessoas também tiveram que se adaptar às mudanças que vieram nas décadas seguintes, transformando suas vidas conforme essa mudança. E agora vivemos em um mundo dominado por conservadores, com o retorno das velhas ideias sobre sociedade, religião e sexo.
É provável que não existam blocos políticos tão caracterizados como nos anos 1960, mas não se pode ignorar o crescente confronto entre as forças conservadoras e as progressistas, que leva a uma preocupante consequência: a polarização. Como enxerga essa luta ideológica moderna?
Quando a União Soviética caiu em 1991, minha geração pensou que, a partir de então, o mundo se tornaria nada menos que um paraíso. E não foi assim. Tudo está pior, e a cada ano piora mais. Passaram-se quase três décadas e nada melhorou. Talvez fosse melhor se existissem essas duas grandes forças para marcar um equilíbrio.
Agora, vemos o exemplo de tudo o que vai mal com a guerra na Ucrânia: Putin faz o que quer, e por isso mesmo tudo está pior. Não sei para onde essa guerra irá nos levar.
Abordará a situação na Ucrânia?
É muito complicado fazer um filme sobre o que está acontecendo lá. Há tempo procuro encontrar uma ideia que me permita fazer isso, mas é impossível. O conflito escapa por entre os dedos. Está entre os piores que nos aconteceu.
Até pouco tempo, ninguém poderia acreditar que no centro da Europa seria travada uma guerra que destruiria tudo e acabaria com a vida de cem pessoas por dia. De qualquer modo, ainda que não saibamos para onde estamos indo, obrigo-me a ser um pouco otimista.
De fato, você viveu a Segunda Guerra Mundial. Quais são as memórias que você guarda daqueles tempos?
Eu a atravessei em um pequeno povoado da Grécia, enquanto na capital as pessoas morriam de fome todos os dias. Por esse motivo, meu pai nos enviou para um povoado. Na verdade, foi uma fase agradável porque a guerra estava longe de nós e vivíamos como camponeses, o que me ensinou muito sobre a vida por vários anos. Aprendi quanta lenha é necessária para passar o inverno, a quantidade de farinha que é necessária para fazer pão … Ensinamentos desse estilo.
De qualquer modo, foram tempos muito duros e tive que trabalhar muito para poder progredir. Quando cheguei à França, a situação foi ainda pior, mas, ao mesmo tempo, sentia que éramos livres. Claro, depois aprendi o que de verdade era a guerra e suas terríveis consequências. Na Grécia, concretamente, a guerra civil foi horrorosa.
Então, você acredita que, neste contexto de violência crescente em que estamos, o conceito tradicional de esquerda e direita ainda é válido?
Os partidos que se identificam com a esquerda ou com a direita deveriam avaliar qual é o seu papel na sociedade. Só assim poderão observar quais são suas crenças e ideologias e, a partir daí, decidir o que devem mudar.
Precisam encontrar uma maneira diferente de administrar seus países porque é evidente a necessidade de uma profunda transformação compatível com um mundo em constante metamorfose (e que seguirá assim devido à revolução digital).
No momento, ninguém está fazendo isso e como prova temos o resultado das eleições francesas do último mês de abril, quando os extremistas se tornaram muito fortes.
Após uma carreira de sessenta anos, conquistou muitos reconhecimentos pelo seu trabalho. O que o motiva a continuar como diretor?
Não ligo muito para os reconhecimentos. Estou sempre pensando no que virá, porque passado é passado. Quando aterrissei na França e entrei no mundo do cinema, bastava-me ser assistente de diretor porque se trabalhava muito próximo dos diretores. Não acreditava que um estrangeiro pudesse chegar a dirigir filmes na França. Fazer isso foi extraordinário e ainda é. Filmar sempre foi uma descoberta para mim.
Então, por que dirigiu tão poucos filmes ao longo de sua carreira?
Porque filmar é uma história de amor, não posso fazer um filme se não sentir paixão. Tenho que repetir cada cena, mais de uma vez, até que fique perfeita. É a única forma em que posso fazer filmes. Por isso, só há vinte.
Contudo, com uma filmografia relativamente curta, alcançou grande sucesso. Recebeu o convite para fazer parte de Hollywood?
Depois de Los raíles de la muerte (1964), meu primeiro filme, convidaram-me para assinar um contrato com um estúdio e me recusei porque estava bem na França. Continuaram insistindo após o lançamento de Z (1969), mas eu não podia aceitar um roteiro de um filme, sem entender o mundo em que transcorria. Gostei do que me enviaram para Desaparecido, embora tenha escrito uma nova versão sob a condição de que a aceitassem, caso contrário, iria embora. Funcionou.
Eu sempre tive uma grande admiração por Salvador Allende, por isso Desaparecido foi tão importante para mim, porque era uma homenagem aos chilenos que estavam vivendo sob uma ditadura espantosa, apoiada pelo Governo estadunidense.
Naquela época, a boa disposição de Hollywood em me apoiar tinha a ver com a recepção dos meus filmes pelo público estadunidense, pois eram exibidos em universidades e sempre havia perguntas do público. É que nas salas de aula se falava muito de política. No entanto, Hollywood agora funciona de uma forma muito diferente. Não acredito que, atualmente, aceitariam rodá-lo.
De que forma, então, avalia que o cinema mudou?
Com tantas séries e filmes, está perdendo seu misticismo. Mas faz parte da evolução da sociedade. Antes, ir ao cinema em uma tarde de sexta-feira, com a sua família, era um motivo de celebração, mas, agora, qualquer filme está disponível na palma de sua mão, no momento que quiser, graças aos smartphones.
Não é mais uma relação mística, mas de consumo: você assiste a um filme e passa para o próximo. Por isso, é tão importante incentivar as pessoas a irem ao cinema. É preciso fazer o que for necessário para salvar essa experiência, porque o cinema é um testemunho da nossa história.
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“Entramos em uma etapa histórica em que existe uma nova religião: a do dinheiro”. Entrevista com Costa-Gravas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU