23 Janeiro 2023
Amazônia Real visitou as aldeias dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, no Alto Rio Itajaí, para conhecer de perto o modo de vida e a história de resistência dos povos originários do Sul do Brasil. A Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, uma área de cerca de 15 mil hectares, ainda não foi homologada por causa do julgamento do marco temporal, um mecanismo jurídico discutido no Supremo Tribunal Federal (STF), e usado pelo governo de Santa Catarina para impedir a demarcação. Eles aguardam o apoio do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para solucionar os conflitos.
A reportagem é de Fabio Pontes e Lucas Amorelli, publicada por Amazônia Real, 18-01-2023.
O tráfego intenso de caminhões transportando madeiras dentro da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ é apenas uma entre as várias pressões a que estão submetidos três diferentes povos do estado de Santa Catarina. Após quase terem sido exterminados ao longo dos últimos cinco séculos por conta do contato com os colonizadores europeus, os Xokleng, os Kaingang e os Guarani hoje são obrigados a dividir uma área inferior a 15 mil hectares – as terras que ocupavam antes da invasão pelos europeus estendia-se pelo o que é hoje o litoral do Sul e Sudeste do Brasil.
Área declarada como terra indígena Ibirama Laklano. (Foto: Reprodução | Observatório dos direitos e políticas indígenas)
O avanço das plantações de eucalipto e pinheiros por madeireiras e moradores não-indígenas no território é outra das pressões sofridas. Em alguns pontos em suas próprias terras, os indígenas têm receio até de transitar. O temor é de conflito com os vizinhos problemáticos. A ousadia dos invasores é tão grande que até uma porteira foi colocada pelos donos das madeireiras, o que impede o livre trânsito dos indígenas entre as aldeias. Capangas armados fazem o controle de quem passa.
Foi este o cenário encontrado pela reportagem da Amazônia Real em maio de 2022 em visita ao território dividido entre Xokleng, Guarani e Kaingang. Localizada no Alto Vale do Itajaí, na região central de Santa Catarina, ele se espalha pelos municípios de José Boiteux, Doutor Pedrinho, Itaiópolis e Vitor Meireles.
E é exatamente o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) desse conflito fundiário envolvendo a TI Ibirama-Laklãnõ que servirá como divisor de águas para os processos de demarcação de territórios indígenas em todo o país: o marco temporal. Para os defensores dessa tese, só podem ser reconhecidas ou reivindicadas como terras indígenas as áreas ocupadas pelos povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal.
A decisão do STF servirá de diretriz a outros processos judiciais referentes a terras indígenas. Caso o julgamento do STF seja desfavorável aos Xokleng, muitas outras TIs reivindicadas depois de 1988 serão prejudicadas. Daí a luta dos indígenas contra a tese do marco temporal, defendida fortemente por grandes grupos econômicos, como fazendeiros, madeireiros, empresas mineradoras, garimpeiros, políticos defensores do agronegócio, entre outros.
Para os indígenas, esse argumento não tem sustentação, pois as populações originárias estavam nessas áreas bem antes da chegada dos europeus ao Brasil, em 1500. Se deixaram algumas dessas regiões foi por causa do brutal processo de expulsão e dos massacres a que foram submetidos desde a chamada “descoberta do Brasil”.
Os Xokleng lutam não apenas pelo direito de ter demarcado o último pedaço de chão que sobrou, mas também para ficarem livres das invasões que sofrem até hoje. Eles são o exemplo dessa batalha histórica.
No STF, a tese do marco temporal surgiu, pela primeira vez, no voto do ministro Carlos Ayres Britto, atualmente aposentado, quando foi questionada pelo governo de Roraima a homologação da TI Raposa Serra do Sol, em 2005. O julgamento no STF só foi finalizado em março de 2009, com a maioria dos ministros votando a favor da demarcação contínua da terra indígena. Mas os ministros estabeleceram condicionantes, gerando brechas para questionamentos nas homologações, como é o caso do território dos Xokleng, Guarani e Kaingang.
Durante a viagem à TI Ibirama-Laklãnõ, a equipe da Amazônia Real conheceu de perto a realidade das aldeias que formam o território reivindicado. Além de conhecer o modo de vida das populações, a reportagem presenciou as pressões e as ameaças sofridas pelos três povos. O que impulsiona a invasão é a devastação da mata atlântica nativa para plantar eucalipto e pinheiros para a indústria madeireira. Em alguns pontos, verdadeiros complexos madeireiros foram criados dentro do território.
No primeiro dia de visita, a reportagem acompanhou o trabalho de monitoramento territorial feito pelos Xokleng. Dias antes, eles tinham descoberto uma invasão recente na área reivindicada para o plantio de eucaliptos. Mudas da espécie plantadas ao longo do caminho mostram a ousadia dos vizinhos invasores.
Por se tratar de uma região de serra, o trabalho de proteção do território é desafiador. Os declives e aclives do terreno exigem destreza e esforço físico. Para não deslizar morro abaixo, é preciso se agarrar às raízes das árvores. Esse tipo de terreno faz com que o espaço fique livre das plantações de eucalipto e outras espécies invasoras, mantendo a vegetação nativa.
Basta chegar a uma área plana, no entanto, para encontrar os primeiros sinais da invasão para cultivo de eucalipto. Assim é a área recém-desmatada, descoberta dias antes da chegada da reportagem. A abertura no território Xokleng feita pelos colonos – como são chamados os vizinhos não-indígenas – é a forma de fazer a divisão de lotes.
A poucos metros dali, a placa da hoje rebatizada Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que delimita a TI e o apresenta como “área protegida” está jogada ao chão. Não se sabe se caiu pela ação do vento ou foi derrubada de forma proposital.
Nos dias atuais, a relação entre indígenas e colonos é tida como “tranquila”, mas apenas até certo ponto. A herança de confrontos sangrentos entre indígenas e imigrantes alemães, italianos e seus descendentes ainda é perceptível. Os bugres, a forma como os invasores definiam as populações originárias, eram caçados e mortos. Até hoje, em algumas regiões do Sul, os indígenas são chamados assim.
Os povos Xokleng, Kaingang e Guarani eram expulsos das melhores terras agricultáveis pelos imigrantes europeus, sendo empurrados e, literalmente, confinados nas regiões de serra, onde o solo é mais pobre e improdutivo. A terra onde os três povos moram hoje foi o arranjo encontrado na década de 1920 para “pacificar” os confrontos. Mesmo assim, o próprio estado de Santa Catarina, atendendo a interesses locais, questiona a legitimidade da TI Ibirama-Laklãnõ.
Em uma das regiões da estrada de terra batida que cruza a terra indígena até uma porteira foi colocada pelos madeireiros. Homens armados em picapes fazem a segurança da área. Eles intimidam os indígenas, que evitam passar por ali sozinhos, expostos em motocicletas. Segundo os relatos de indígenas ouvidos pela reportagem, seus parentes foram assassinados nas últimas décadas em confronto com os invasores. Mas eles não ficam apenas na defensiva. Quando necessário, unem forças para a retomada de áreas invadidas.
Este tipo de conflito violento, comum num passado não tão distante, hoje parece estar controlado. Mesmo assim, a relação entre indígenas e colonos ainda é tensa. As populações que resistem e vivem nessa região de Santa Catarina são vítimas de racismo e discriminação por parte dos não-indígenas, em sua maioria formada por descendentes de imigrantes italianos e alemães.
Confinados nesta área do Brasil, os povos indígenas da região Sul estão sujeitos a pressões tão intensas como a de seus parentes da Amazônia. A diferença é que, por conta da importância estratégica da maior floresta tropical do mundo, o Estado brasileiro é obrigado a dar alguma resposta – ainda que efêmera – às necessidades na região amazônica, incluindo a proteção territorial.
Hoje, a resistência dos Xokleng é conduzida pelas jovens lideranças do povo, em especial as mulheres. É o exemplo de Jaciara Kuwu Priprá de Almeida. Aos 24 anos, Jaci, como é conhecida, é formada em pedagogia e estuda psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Ela é a principal referência para jornalistas e pesquisadores interessados em visitar a terra indígena no centro do debate do marco temporal. Mora na aldeia Bugio, a primeira para quem chega à TI partindo da cidade de José Boiteux, no Vale do Itajaí. É filha e herdeira da luta de resistência iniciada por seus pais, dois dos principais anciãos da comunidade.
Por ali, é comum a realização de casamentos entre Xokleng, Kaingang e Guarani. A maioria das pessoas da nova geração é resultado dessa mistura de povos. Casamentos entre indígenas e agricultores brancos do entorno também não são raros.
Além da luta pela demarcação do território, Jaci ainda enfrenta o desafio de lidar com a discriminação e o preconceito a que os indígenas da região estão submetidos. Os jovens são os mais impactados ao serem tratados com desprezo e a negação de suas identidades quando precisam ir para as cidades estudar ou trabalhar.
“O jovem tem medo de sair para o trabalho porque eles trabalham com essas pessoas [os brancos], e estar falando sobre a cultura vão zombar ou vão apanhar, que são casos que aconteceram aqui. Um indígena foi espancado, quase morreu, quebraram todo o carro dele, foi parar no hospital porque ele estava falando de questões indígenas com um grupo. Temos medo, mas temos que falar sobre a questão indígena, somos nós, é nossa luta”, diz Jaci. “Apesar do medo e da opressão, estamos aí lutando.”
A escola de educação indígena e o centro cultural são os espaços usados para manter vivas as tradições dos povos que ali moram. A resistência se dá por meio do ensino da língua Xokleng, dos cantos e rituais. Para povos que por muito pouco não foram exterminados, o resgate da identidade dos antepassados mostra-se um verdadeiro desafio.
Miriam Vaicá Priprá, 55 anos, é a professora de língua Xokleng da comunidade. Ela é a mãe de Jaci e também uma liderança, símbolo de resistência do povo. É uma das memórias vivas da história dos antepassados. Dos pais e avós, ouviu os relatos de massacre e perda de território desde a chegada dos brancos.
Além de terem sido confinados numa área improdutiva para seus roçados, os povos da TI Laklãnõ foram severamente impactados pela construção de uma barragem no rio Itajaí, na década de 1970, feita para conter inundações nas cidades na parte mais baixa do leito do rio, como Blumenau.
Já as aldeias no alto rio Itajaí tiveram que ser removidas para as porções mais altas da serra, onde estão até hoje. O cemitério sagrado também ficou submerso, afetando ainda mais a história e as relações dos povos com a memória dos antepassados.
“Na época eles prometeram que iriam indenizar as aldeias afetadas e recuperar o cemitério, o que nunca aconteceu”, afirma Miriam. Essa mudança forçada colocou os povos em situação de insegurança alimentar, reduzindo a oferta de animais na caça e na pesca, além de provocar a perda de áreas frutíferas. Dessa forma, eles ficaram dependentes da compra de alimentos industrializados nas cidades do entorno.
“Eu vivi nas terras onde nasci e me criei na outra aldeia onde tinha nossas plantações, que era pura. Este horário [fim da manhã] assim nós estávamos pescando, tomando banho no rio, de onde tirava nosso alimento, as roças eram todas em beira de rio, eram terras boas, milho, aipim, batata, banana verde que cozinhava para comer com peixe, tinha muita caça, tinha a taquara para fazer. Hoje não tem mais, traz uma tristeza muito grande, não tem uma fruta para comer”, lamenta Miriam. “A nossa relação com a terra é sagrada.”
Além de professora, Miriam é a parteira das aldeias do território. Muitos dos que nasceram em suas mãos, anos depois tornaram-se seus alunos. “Eu busco, todos os dias, em sala de aula, reviver a nossa cultura para mostrar a esse povo que acha que nós já acabamos que nós estamos vivos, resistindo a essas opressões. Para nós é difícil viver no meio desse povo que é contra nós, que quer exterminar o povo Laklãnõ Xokleng por causa das terras”, ressalta.
Além da oralidade, a história do povo é registrada através da escrita. João Adão Nunc-nfoôro de Almeida, esposo de Miriam e pai da jovem Jaci, aos 68 anos, lembra o que viveu e ouviu dos antepassados Xokleng e Kaingang por meio de poemas e conta a história de seus ancestrais.
Por meio de seus poemas, ele relata o massacre pelo qual passaram as populações indígenas desde a chegada das primeiras caravelas portuguesas, em 1500, até o contato de seu povo com os outros imigrantes europeus, a partir do século 20. “Foi um genocídio total”, define.
Perguntado sobre a expectativa para o resultado do julgamento do processo da TI Ibirama-Laklãnõ no STF, João Adão diz ter esperança de que o resultado seja favorável a eles. No entanto, ele sabe que as pressões e os interesses políticos são grandes.
“Segundo eles [defensores do marco temporal], as terras que pertencem aos povos indígenas é onde eles estavam em 1988, mas não é real. A gente estava aqui no Brasil muito antes da imigração. Todo o Brasil era nosso e nós não estamos reivindicando o Brasil, estamos reivindicando aquilo que é nosso”, diz.
Em setembro de 2021, o STF iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário (RE 1017365) impetrado pela Funai contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
A expectativa do movimento indígena era grande, tensa, mas esperançosa. Uma forte mobilização chamada Acampamento Luta pela Vida foi organizada naquele momento, com mais de 5 mil indígenas ocupando uma área dos Esplanada dos Ministério, aguardando a votação. Eles ficaram acampados em agosto e setembro de 2021.
O STF preparava-se para julgar como favorável a ação movida pelo governo de Santa Catarina, por meio de seu Instituto de Meio Ambiente (IMA), e determinou a reintegração de posse da TI Ibirama-Laklãnõ ao estado, que reivindica a área como reserva ambiental.
Segundo fontes locais, o pano de fundo é o interesse da indústria madeireira de eucalipto pelas terras indígenas. O processo se arrasta desde 2009 e agora está em análise pelo STF.
O relator é o ministro Edson Fachin, cujo voto foi contrário à tese do marco temporal e favorável aos indígenas. Primeiro ministro a emitir o voto após o relator, Kássio Nunes, indicado para o STF pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi no sentido contrário.
O julgamento tinha sido retomado no primeiro semestre do ano passado. Havia a expectativa do plenário retomar o julgamento na primeira quinzena de junho, mas o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas, retirando o RE da pauta, frustrando o movimento indígena, que organizava uma nova mobilização em 2022 em Brasília.
O ex-presidente sempre deu sinais de que não respeitaria o resultado das eleições de 2022 e a toda hora colocava em xeque o sistema eleitoral brasileiro. Bolsonaro assumiu o governo em 2019 prometendo que não iria “demarcar um centímetro de terra” e assim fez.
No entanto, organizações indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas, divulgaram nota expondo preocupação com mais um adiamento do julgamento do marco temporal. “A Apib, embora respeite as decisões internas da Suprema Corte, a quem apoia em razão das ameaças e ataques orquestrados rotineiramente contra ela pelo presidente da República e de setores que o defendem, não poderia deixar de tornar pública a sua preocupação a respeito dos impactos da decisão sobre os territórios, a vida, integridade física, cultural e espiritual de nossos povos”, divulgou a organização, em nota.
No início de dezembro de 2022, lideranças indígenas de 21 povos pediram a retomada do julgamento. Eles protocolaram no gabinete dos ministros do STF uma carta onde reivindicam isso. Também foi realizada uma audiência com a ministra Cármen Lúcia, a quem os indígenas relataram o aumento da violência nos territórios.
O STF já tinha se posicionado, em 2009, contra o entendimento do marco temporal, mas somente para o caso da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima. Diante do impasse de uma definição para todos os casos de demarcação em julgamento no país, o STF definiu que o processo da TI Ibirama-Laklãnõ seria de repercussão geral – ou seja, o resultado terá efeito para todos os demais casos de demarcação.
Assim, Xokleng, Kaingang e Guarani que sofriam todo tipo de pressão, violências e ameaças no Norte de Santa Catarina, quase sempre na invisibilidade, agora têm esperança por uma solução dos conflitos do marco temporal no novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que tomou posse no dia 1º de janeiro de 2023 e nomeou duas mulheres indígenas para cargos diretamente ligadas à política indigenista: Sonia Guajajara, que é a ministra dos Povos Indígenas, e Joenia Wapichana, presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
O cacique Tucun Gakrab e o líder Brasílio Priprá, do povo Xokleng, participaram da posse de Lula em Brasília. Na primeira segunda-feira (2) deste ano eles participaram da retomada da Funai, um ato que teve as presenças de Sonia e Joenia. Na ocasião, Brasílio disse à Amazônia Real que a questão da terra Xokleng vai nortear todas as outras demarcações no país. Por isso, segundo ele, a importância que o governo Lula coloque em pauta a ACO 1100 no STF. “Temos conversado com vários ministros do Supremo que mantêm a linha de pensamento do direito à terra ao povo Xokleng em cumprimento à Constituição”, disse.
As duas lideranças Xokleng já retornaram para casa, mas esperam que a Funai lhes apoie com recursos financeiros para voltarem à Brasília para estar no STF no momento do julgamento do marco temporal. “A questão da terra é uma constante preocupação do povo Xokleng, que está aumentando e não tem para onde ir. É [o julgamento] uma grande a expectativa”, finalizou.
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Marco temporal ameaça terra indígena em Santa Catarina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU