19 Janeiro 2023
"Uma nova hipótese para o apoio ruralista ao fracassado 8 de janeiro: teria sido uma demonstração de força – em escala regional – frente ao novo governo. Objetivo: negociar “a quente” sua expansão na fronteira amazônica. Quais elementos apontam para isso?", escreve Luiz Felipe F. C. de Farias, doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), em artigo publicado por Blog da Boitempo, 09-01-2023.
A sociedade e o território no Brasil vêm passando por profundas transformações nas últimas quatro décadas, em que se destaca em primeiro lugar um processo de desindustrialização com amplas consequências sobre a estrutura de classes no país. Segundo carta do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI 2021), entre 1980 e 2020 a parcela da manufatura no PIB do Brasil recuou constantemente, enquanto o grau de industrialização da economia mundial aumentou nas últimas quatro décadas impulsionado especialmente pelas transformações na economia chinesa. Segundo este documento, enquanto a manufatura brasileira reduziu sua participação no PIB nacional de 21,1% em 1980 para 11,9% em 2020, o grau de industrialização em escala mundial elevou-se de 15,6% para 16,5% do PIB global neste mesmo período. Trata-se de uma mudança estrutural de longo prazo do padrão de articulação do Brasil com o mercado internacional, com profundos desdobramentos sobre o conflito social e a dinâmica política na sociedade de classes no Brasil.
Este processo desindustrialização tem sido acompanhado por uma acelerada reprimarização da pauta de exportações brasileiras principalmente a partir dos anos 2000. Em uma transformação geopolítica de consequências ainda imprevistas, a parcela dirigida à China das exportações brasileiras aumentou de 2,8% em 2000 para 27,9% em 2018, enquanto a participação dos EUA no conjunto caiu de 23,9% para 12% neste período. Este incremento das relações comerciais com a China levou a um aumento da exportação brasileira de produtos básicos como minério de ferro e soja em grãos e ao aumento de importações de produtos manufaturados, intensificando o enfraquecimento de cadeias produtivas industriais e fortalecendo as cadeias de commodities minerais e agrícolas. Segundo o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, a participação de produtos manufaturados nas exportações do Brasil caiu de 59% em 2000 para 36% em 2019, enquanto a participação de produtos básicos aumentou de 23% para 51%.
Especialmente a sojicultura tem promovido uma ampla reorganização do território nacional: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2000 e 2018 a produção de soja em todo Brasil saltou de 32,8 milhões de toneladas em 13,7 milhões de hectares para 117,9 milhões de toneladas em 34,8 milhões de hectares. Principal produtor brasileiro do grão no país hoje, o estado do Mato Grosso viu sua safra de soja saltar de 8,8 milhões de toneladas colhidos em 2,9 milhões de hectares no ano 2000 para 31,6 milhões de toneladas colhidos em 9,4 milhões de hectares no ano de 2018. Segmento central do chamado agronegócio, o complexo soja tornou-se decisivo para o atual padrão de articulação do Brasil com o mercado internacional: segundo o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, as exportações brasileiras de soja em grãos, farelo e óleo saltaram de US$4,2 bilhões (equivalentes a 7,5% de toda exportação do país em 2000) para US$40,7 bilhões (equivalentes a 17% de toda exportação do país em 2018).
As transformações descritas servem de base à relativa perda da capacidade dos grandes centros metropolitanos de exercer hegemonia sobre o território nacional e ao crescente protagonismo político das estruturas de poder que atravessam sua hinterland. As últimas duas décadas têm sido marcadas no Brasil pela erosão dos aparelhos de hegemonia que haviam permitido às frações das classes dominantes no Sudeste mais industrializado dirigirem a sociedade civil em escala nacional ao longo do século XX. Imprensa escrita, emissoras de televisão, universidades públicas, federações industriais, aparelhos partidários e entidades sindicais sediados prioritariamente na região Sudeste, com suas dinâmicas próprias, parecem perder capacidade de enxergar inquietações, dirigir interesses, elaborar valores e orientar expectativas das frações de classe pelo país. Paralelamente, o ascenso do agronegócio tem promovido o fortalecimento de novos centros de poder em espaços urbanos de médio porte pela hinterland brasileira, demandando novos canais de representação política que parecem cada vez mais transbordar os pactos sociais instituídos desde a redemocratização do país desde 1985.
Em sua análise da relação entre forças de extrema direita e a hinterland nos EUA, Neel (2018) critica a leitura característica do liberalismo norte-americano que contrapõe a ignorância do interior do país à racionalidade de centros urbanos das costas leste e oeste. Segundo o autor, tal interpretação auto-centrada e condescendente de forças liberais nos EUA tende a obscurecer em meio ao processo de desindustrialização o fortalecimento na hinterland de estruturas de poder pautadas em especial na apropriação de renda da terra. Comparativamente às forças ditas progressistas neste país, tais estruturas de poder têm demonstrado maior capacidade de orientar inquietações de amplos contingentes de trabalhadores brancos altamente endividados e cronicamente subempregados no interior. Ensaia-se assim uma nova territorialização da estrutura e do conflito de classes nos EUA bem como no Brasil, em que elites econômicas, políticas e culturais dos principais centros metropolitanos destes países são surpreendidas pela emergência de ameaças ao status quo desde forças à direita auto-proclamadas representantes da maioria silenciosa do “povo”.
O fundamento deste impulso golpista de frações das classes dominantes vinculadas ao agronegócio parece ser seu interesse estratégico no aprofundamento da acumulação primitiva permanente na região amazônica, um dos maiores bolsões de recursos comuns ainda não reduzidos à condição de propriedade privada no mundo hoje. Para que em especial o Mato Grosso se tornasse uma espécie de plataforma de produção de commodities agrícolas para o mercado internacional, a moderna lavoura de soja avançou ao longo das últimas décadas especialmente sobre aquelas áreas que haviam sido anteriormente desflorestadas para a formação de pasto para pecuária bovina. Similarmente ao que ocorreu com a expansão da lavoura de cana de açúcar na região Sudeste, também o avanço da sojicultura na região Centro Oeste vem pressionando o deslocamento do gado bovino em direção ao norte, consequentemente contribuindo de maneira indireta para a ampliação do arco do desflorestamento no Brasil como um todo. Neste sentido, o avanço da lavoura da soja sobre o Mato Grosso não implicou na solução ou superação das contradições sociais e ambientais características da fronteira agrícola, mas sim na preservação e no deslocamento de processos como apropriação ilícita de terras públicas, expropriação de posseiros e de povos originários.
Historicamente, tal apropriação privada de terras públicas (e consequentemente de renda da terra) não foi um traço arcaico a ser superado pela modernização do país, muito pelo contrário foi antes base para a formação de capital industrial no século XX. Períodos de impasse na acumulação de capital foram respondidos por meio de periódicos ciclos ditatoriais que aceleraram o avanço do capital sobre a fronteira amazônica no país. Neste sentido, a particularidade do atual flerte com um novo período de exceção não parece ser a intensificação do regime de espoliação sobre a região amazônica brasileira, mas sim o fato de que esta acumulação primitiva permanente ocorre em meio a uma desindustrialização profunda e não parece servir de alavanca ao capital industrial do país. A espoliação sobre a região amazônica parece antes ter se tornado um horizonte estratégico por si só capaz de unificar parcela das frações das classes dominantes, apontando para o aborto de quaisquer pretensões civilizatórias de um Brasil moderno e para a falência de qualquer quadro institucional formalmente democrático.
Neste contexto, a estrutura de classes resultado do fortalecimento do agronegócio parece ter como característica distintiva seu caráter centrífugo, exemplificado por cidades de médio porte no Mato Grosso que pleiteiam crescente protagonismo econômico e político mas são incapazes de assumir hegemonia sobre a sociedade em escala nacional. Comparativamente às cadeias produtivas vinculadas à indústria metal-mecânica que se consolidaram especialmente na região Sudeste durante a segunda metade do século XX, as cadeias produtivas vinculadas às commodities agrícolas e agroprocessadas parecem significativamente menos densas e, consequentemente, possuem uma capacidade limitada para impulsionar relações sociais crescentemente complexas, diversificadas e dinâmicas. É compreensível, portanto, que a unidade das frações das classes dominantes vinculadas ao agronegócio dependa da contínua expansão da fronteira agrícola e do mercado de terras, principal centro gravitacional capaz de organizar seu horizonte estratégico comum. É compreensível também que a representação política destas frações das classes dominantes do agronegócio mato-grossense assuma a forma de uma simulação performática de quebra da ordem, incapaz de estabelecer consensos minimamente estáveis no interior do bloco no poder capazes de efetivar uma transição de regime.
Mais do que propriamente um golpe de Estado em escala nacional, talvez possamos dizer que os questionamentos radicalizados de setores do agronegócio aos resultados das eleições de 2022 são antes o prenúncio de uma negociação a quente acerca da expansão do processo de acumulação primitiva permanente sobre a fronteira amazônica. Dotada de um caráter relativamente centrífugo e difuso que é corrosivo mais que criativo, a prática política radicalizada destes setores das classes dominantes do agronegócio mato-grossense parecem ser uma demonstração de força em escalas local e regional, reafirmando limites do poder público federal para diminuir o ritmo da espoliação no norte. Neste contexto, permanece em aberto este impasse central para o Brasil do século XXI: até que ponto é possível compatibilizar os processos de desindustrialização, reprimarização e aceleração da acumulação primitiva sobre a fronteira amazônica com um quadro institucional formalmente democrático?
NEEL. P. Hinterland: America’s new landscape of class and conflict. Londres: Reaktion Books, 2018.
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Agronegócio e golpismo na hinterland brasileira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU