05 Dezembro 2022
Não foi apenas a tradição russa que curvou as imagens sagradas aos imundos massacres entre humanos. Um exemplo entre milhares possíveis: a igreja romana dedicada a Santa Maria da Vitória.
A reflexão é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 02-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Diante dos soldados russos que, nos últimos dias, mostraram às câmeras de televisão um ícone de Nossa Senhora que supostamente chorava mirra – demonstrando que Deus estaria do lado dos agressores da Ucrânia – sentimos uma onda de raiva e repulsa.
É um hábito inveterado da Igreja Ortodoxa, acostumada a uma secular submissão ao poder dos sanguinários czares russos. Em 1904, nos tempos da guerra russo-japonesa, Lev Tolstói condenava sem apelo tais aberrações: “E em toda a Rússia, do palácio imperial até o último vilarejo, os pastores da Igreja que se diz cristã invocam a Deus – aquele Deus que ordena amar os próprios inimigos, Deus de amor – para que ajude na obra diabólica, para que proteja o massacre dos homens... Todos dão uns aos outros ícones feios, nos quais nenhuma pessoa esclarecida acredita, mas que o próprio aldeão analfabeto começa a desprezar. E todos se inclinam diante desses ícones, beija-nos e proferem discursos enfáticos e mentirosos, nos quais ninguém acredita”.
O cristianismo radical, isto é, evangélico, de Tolstói o levava a concluir que “a dúvida sobre se desagrada a Deus ou não que os líderes nos forcem a matar é a centelha daquele fogo que Cristo acendeu sobre a Terra e que começa a incendiá-la”.
Natividade, cópia de pintor desconhecido do fim do século XVI, Igreja de Santa Maria da Vitória, Roma
Mas certamente não foi apenas a tradição russa que curvou as imagens sagradas aos imundos massacres entre humanos. Um exemplo entre milhares possíveis: a igreja romana em que se encontra a suma Santa Teresa de Gian Lorenzo Bernini é dedicada a Santa Maria da Vitória.
A vitória em questão foi a da batalha da Montanha Branca (1620), um dos primeiros atos da Guerra dos Trinta Anos, na qual os católicos prevaleceram sobre os protestantes em um massacre entre irmãos que está contado entre as páginas mais sombrias da história do cristianismo.
No altar da igreja romana, no centro de uma trovejante glória barroca, foi entronizada a natividade muito medíocre que, depois de ter sido vandalizada pelos protestantes iconoclastas, um religioso fanático brandiu para abençoar as tropas católicas a caminho do vitorioso banho de sangue.
Uma “relíquia milagrosa” que tinha a mesma dignidade da relíquia atual dos pobres soldados de Putin. Providencialmente, a imagem original pereceu em um incêndio no século XIX, mas foi substituída por uma das muitas cópias conservadas por católicos piedosos. Hoje, ela ainda está lá, em glória: à espera de que um bispo de Roma tão evangélico quanto Tolstói mude o título da igreja para Santa Maria da Vergonha.
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Deus não está com os agressores. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU