"O que engloba combater as manifestações de discriminação? Liberdade de culto para todas as religiões e respeito por seus ritos e ações, desde que estejam sob o guarda-chuva constitucional", escreve Nelson Lellis, doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e bolsista pós-doc pelo mesmo programa.
Em 2016 iniciei uma tarefa: organizar um material que pudesse descrever, interpretar e ajudar a historicizar o cenário brasileiro que trazia como maior enquadramento entre os cientistas políticos nacionais o golpe sobre a então presidente Dilma Rousseff. Outras áreas também estavam interessadas na discussão: direito, psicologia, jornalismo, ciências das religiões, teologia, filosofia, economia, pedagogia. Neste caso, busquei reunir as várias possíveis lentes. Mas havia ainda outro enquadramento naquele horizonte: a interface religião e política. Desde então, foram 6 livros organizados (com o sétimo no prelo) em parceria com importantes pesquisadores ligados a universidades latino-americanas e europeias.
O que hoje tenho percebido é uma reação da esquerda buscando alinhar seu discurso com a hermenêutica evangélica – ainda que identificada como progressista. Aliás, observar o discurso petista se adequando a conteúdos doutrinários confessionais a fim de não ferir a consciência de certos cristãos para não perder votos, foi um indicativo de que as alianças com a direita e com o centro apontam para um novo tipo de conservadorismo guiado pela lógica religiosa.
Em outubro de 2021 escrevi sobre um conceito ainda inédito buscando oferecer algumas características do carismatismo de Lula: o de popululismo. [1] No texto que produzi trazia no título uma questão: “Popu[lu]lismo é uma saída nacional?”. Considerei alguns aspectos como as alianças feitas pelo PT, a retirada de um não-governo utilizando-se de uma linguagem popular com a presença de movimentos sociais (e por que não também cooptados em época de eleição, como o MTST e o MST?), mas cuja governança continua abrindo espaço para as mesmas oligarquias, além de um forte apelo emocional (o que Ciro não conseguiu produzir em seus discursos, nem em sua campanha) com uso constante de palavras/expressões como “fome”, “picanha e cervejinha”, “oportunidade”, “pela primeira vez na história desse país”, “dignidade”...
A chamada (ou considerada) “classe média” que viu nos governos do PT a oportunidade de avançar economicamente, não conseguiu interpretar o país criticamente e preferiu dividi-lo em duas partes: a primeira para desprezar; a segunda, como identificação de seu caráter. Deu no que deu nas eleições de 2018 e que demonstrou um substantivo crescimento quanto ao interesse do público por assuntos que interferem diretamente na sociedade e que passam, obrigatoriamente, por decisões nas instituições políticas competentes. Na leitura de Pierre Rosanvallon, no livro recentemente lançado pelo Ateliê de Humanidades Editorial, “A contra democracia: a política na era da desconfiança”, é possível falar sobre um avanço no interesse de se discutir política. E o problema não está centrado em hipóteses que circulam as redes sobre uma ausência de debate sobre política, mas sim, no que Rosanvallon chamou de impolítico. Ou seja, não se trata de despolitização. A crise que enfrentamos, tomando aqui o conceito do autor em tela, é a do impolítico, cuja característica é a “falta de apreensão global dos problemas ligados à organização de um mundo comum” (p. 41-42). A consequência desse jogo será exatamente o dissolver das “expressões de pertencimento a um mundo comum” (p. 42).
Não é possível afirmar, nem de longe, que o popululismo tem como característica o impolítico, mas que permitiu sua contínua e larga produção durante seu governo por classes e grupos específicos que sempre viram esse “mundo comum” como meta de um inimigo a ser extirpado da nação. O bolsonarismo – sobretudo em seu segmento cristão – é um desses grupos impolíticos e que tem forçou o popululismo durante as eleições de 2022 a reagir com ferramentas discursivas semelhantes dentro do aspecto de dominação carismática seguindo o viés religioso.
Popululismo conserva seu carismatismo e personalismo de poder mediante a defesa de um “povo brasileiro”, mas a identidade desse povo encontra-se muito ampliada no jogo político. Só um breve exemplo: engana-se aquele que acredita que pessoas como Flávio Rocha (Riachuelo), Roberto Justus, Henrique Viana (fundador do site Brasil Paralelo), que jantaram com Lula no dia 27 de setembro, são apoiadores incondicionais do agora presidente eleito. O populismo seria um jogo arriscado que poderia tornar o governo do PT hipotecado?
Retomando: a marca – talvez a mais estrepitosa – é o envolvimento abusivo com o tema religioso. O popululismo reage às provocações e pautas erguidas pelo bolsonarismo cristão através de um discurso que aponta para um conservadorismo estranho, no sentido de prestar contas ao confessionalismo de igrejas. E não se trata de prezar por um movimento ateísta, até porque, as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) participaram da fundação do PT em 1980. Todavia, a coerência dessa relação (religião e política) baseava-se no forte discurso e conduta frente às classes sociais. A motivação eram as classes.
O embate durante as eleições faz acirrar não apenas a personalização da política, mas a religião como um dos principais assuntos na propaganda eleitoral. Romualdo Panceiro – ex-bispo que era considerado o segundo homem da IURD – declarou ser Lula “um homem de Deus”. Já Messias Bolsonaro foi apresentado como o “escolhido de Deus” para banir de vez o comunismo do Brasil. Este último sempre demonstrou forte ligação com a liderança de igrejas evangélicas que se uniram para realização de cultos, campanhas de jejum e oração a fim de nortearem melhor as consciências de seus eleitores.
A verdade é que a aproximação do PT com os evangélicos nem sempre surtiu efeito que pudesse resolver uma eleição. A estratégia com a Carta aos Evangélicos, por exemplo, assinada pela então presidente Dilma Rousseff, em 2010, não apresentou muito sucesso (ou seja, engajamento de evangélicos após a Carta), embora tenha vencido. As polêmicas que rondavam aquele ano eram as mesmas desse: liberdade de culto, questão de gênero, aborto. Lá, Dilma reafirmou a liberdade de culto, que não levaria ao Congresso a pauta sobre o aborto e que pastores não seriam obrigados a realizarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Aqui, uma nova tentativa: a carta aos religiosos intitulada “Religião: um direito sagrado e fundamental”, publicada no dia 12 de outubro e assinada por Lula. Acusado de ter pacto com o demônio e ter planos de fechar igrejas, Lula reafirmou o compromisso de liberdade de culto e sinalizou a importância das religiões “no papel essencial na formação do ser humano” e enquanto instrumentos que promovem “a paz, a justiça e a fraternidade” [2]. Tais sentenças não conferem com o lado bolsonarista cristão do país.
A carta aos religiosos foi meramente mais uma demonstração desse lado aparentemente conservador que o popululismo engendra. Bastava, por exemplo, resgatar o Estatuto do partido (aliás, os estatutos partidários deveriam ser mais estudados). No Estatuto do PT, em seu Art. 14 – II, já existe informação necessária que abarca o cerne da carta publicada:
– combater todas as manifestações de discriminação em relação à etnia, aos portadores e às portadoras de deficiência física, aos idosos e às idosas, assim como qualquer outra forma de discriminação social, de gênero, de orientação sexual, de cor ou raça, idade ou religião... [3] (Partido dos Trabalhadores Estatuto, p. 6; grifo meu).
O que engloba combater as manifestações de discriminação? Liberdade de culto para todas as religiões e respeito por seus ritos e ações, desde que estejam sob o guarda-chuva constitucional.
No mesmo dia, foi lançado um vídeo de campanha em seu Instagram com o título “Fé, Futuro e Família”, onde inicia com uma criança orando de joelhos em seu quarto dizendo que foi à igreja com seu pai, sua mãe e seu irmão (seria o retrato da típica família conservadora brasileira?) e viu uma família na rua pedindo comida. Seu irmão mais velho explica que nem sempre foi assim e pontua os feitos do governo do PT. Esse tipo de diálogo com a religião foi intensificado nas redes e nos discursos de campanha.
Importante lembrar que Lula já demonstrava aproximação com o setor evangélico antes da publicação da carta. A reunião com pastores e líderes desse segmento no dia 09 de setembro, em São Gonçalo, traz elementos importantes para a construção desse popululismo. De acordo com o candidato do PT em seu twitter (09/09), o encontro foi para discutir com os evangélicos acerca dos “reais problemas do Brasil”. Neste evento, dois pontos foram destaque na fala de pastores: inclusão social e respeito à religião no período dos governos Lula/Dilma. Seguem algumas frases ditas por líderes: “O povo que pastoreamos era feliz. Tinha sua laje e churrasquinho pra fazer em sua laje. Hoje vivem debaixo de outras lajes.”; “A mendicância agride o senhor Deus.”; “Adversários de Deus estão no controle dessa nação.”; “... em nome de Jesus, nós vamos salvar nosso povo da fome [...], do desemprego [...] salvar nossas indústrias, vamos salvar nosso país.” [4]
No dia 19 de outubro, uma carta encaminhada especificamente aos evangélicos reafirmando a importância da liberdade religiosa, o cuidado com órfãos e viúvas, crítica ao uso da fé para promover campanhas etc. [5] Após a leitura da carta, Lula discursou relembrando que foi durante seu governo que as igrejas mais cresceram e puderam, inclusive, encaminhar missionários a outros países. E se reeleito estimulará a parceria com igrejas no cuidado com as famílias brasileiras. Veremos isso, portanto, a partir de 2023.
Ao abordar o tema família, não traçou pautas morais, mas o compromisso em afastar a juventude das drogas e ampliar a possibilidade de envolvê-lo na educação. Além disso, retornar com o “Minha casa minha vida”. Ainda neste tema, ressaltou que pessoalmente é contra o aborto e esse assunto será decidido no Congresso. Chorou ao falar de sua família colocando sua imagem como um ser sensível e não um agente demoníaco – como a extrema-direta busca identificá-lo.
É notória a capacidade de interlocução entre líderes evangélicos que se classificam “progressistas” com demandas reais da sociedade. Contudo, o elemento ainda legitimador, motivador e norteador acerca do argumento para combater fome, desigualdade, desemprego, é a fé. Eis que o popululismo se viu na condição de utilizar no jogo político o recurso religioso, assim como a direita, para vencer as eleições. E o jogo foi desdizer o que se havia dito e prestar contas às igrejas. A potência do discurso religioso na política pela extrema-direita forçou, em certo nível, a campanha de Lula a adotar um discurso que também acessasse o público evangélico. Entre os católicos, segundo pesquisa do Ipec divulgada em 10 de outubro, Lula tinha mais eleitores para o segundo turno (60 contra 34% - após o caso em Aparecida, Bolsonaro perdeu apoio ainda mais o apoio de católicos), e entre os evangélicos, Bolsonaro liderava (63 contra 31% - Lula cresceu nesse segmento do primeiro para o segundo turno cerca de 3%). Os evangélicos possuem um número menor (ainda) na sociedade brasileira, mas fazem mais barulho; e trabalharam muito em suas redes e cultos sobre temas que envolviam diretamente a família.
Quando Lula trazia o tema da família, buscava ter o cuidado de discutir “dignidade” e “melhores condições de vida” com aumento de salário mínimo, moradia e outras oportunidades, mas o tema do aborto manteve-se espinhoso. A esquerda não consegue progredir nesse tema. Em abril deste ano, Lula declarou que o aborto deveria ser “transformado em assunto de saúde pública e todo mundo ter direito”. Perfeito!, mas ao ser chamado de “abortista” por bolsonaristas cristãos, a reação foi retomar o assunto e afirmar ser contra o aborto. (E vale lembrar: a questão não é o aborto em si, mas sua descriminalização).
Por que isso? Porque o que esteve em pauta nessas eleições foi a tentativa de construir a imagem do candidato que mais se aproximava dos valores cristãos. Poderíamos questionar: a) Em que nível encontra-se o popululismo nessa guerra de narrativas sobre o que é ser um verdadeiro cristão?; b) O popululismo estaria cedendo cada vez mais espaço para uma mobilização evangélica em torno de seu futuro governo?
É um momento delicado de transição da política nacional onde a mesma parece possuir uma dependência cada vez mais constrangedora da legitimação confessional para agir. Isso impediria o debate político sobre o cenário real? Óbvio: a religião é um fato social, todavia, quando falo de um cenário real aponto exatamente para as demandas que precisam ser notadas e discutidas para criação de emendas, leis e todos os instrumentos legais que afetam de maneira real na sociedade. O conceito está aberto, como todos os conceitos que auxiliam na interpretação de sociedades em metamorfose. Há um longo caminho pela frente. E a música popular brasileira que talvez melhor descreva uma das características do conceito aqui trabalhado é: “Andar com fé eu vou que a fé não costuma faiá”.
[1] LELLIS, Nelson. Popu[lu]lismo é uma saída nacional? Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades, em 23/10/2021.
[2] EFRAIM, Anita. “Lula divulga carta sobre Religião: um direito sagrado e fundamental”, Yahoo Notícias, em 12/10/2022.
[3] Partido dos Trabalhadores. Estatuto.
[4] PT Lula Presidente. “No Rio, evangélicos abraçam Lula e pedem volta do ex-presidente”, em 09/09/2022.
[5] Carta Compromisso com os Evangélicos.
Carta Compromisso com os Evangélicos. Disponível aqui.
EFRAIM, Anita. “Lula divulga carta sobre Religião: um direito sagrado e fundamental”, Yahoo Notícias, em 12/10/2022.
LELLIS, Nelson. Popu[lu]lismo é uma saída nacional? Fios do Tempo do Ateliê de Humanidades, em 23/10/2021.
Partido dos Trabalhadores ESTATUTO.
PT Lula Presidente. “No Rio, evangélicos abraçam Lula e pedem volta do ex-presidente”, em 09/09/2022. Disponível aqui.
ROSANVALLON, Pierre. A contra democracia: a política na era da desconfiança. Rio de Janeiro: Ed. Ateliê de Humanidades, 2022.