O físico e astrônomo Marcelo Gleiser não é de hoje um dos cientistas brasileiros de grande projeção internacional. Membro da Academia Brasileira de Filosofia, ex-conselheiro geral da American Physical Society, em 2019, ele foi o primeiro latino-americano a receber um dos mais consagrados prêmios do mundo, o Templeton, considerado o “Nobel da espiritualidade”.
A entrevista é de Marcelo Menna Barreto, publicada por Jornal Extra Classe, 11-11-2022.
Confrontado sobre a visão clássica de um cientista cético, envolto em números para confirmar uma teoria, a resposta vem na ponta da língua para quem, no senso comum, estranha ele figurar ao lado de Madre Tereza de Calcutá, Dalai Lama e Desmond Tutu. “Depende de como se olha para a ciência e depende como se define espiritualidade”, diz.
Professor titular de Filosofia natural e de Física e Astronomia na Dartmouth College, universidade norte-americana fundada em 1769, ele afirma ter agora como missão não ser mais um dos pensadores críticos pessimistas, que, destaca, são a maioria. É importante sair do óbvio que o mundo está em crise e buscar as formas de saídas dessa crise.
Marcelo Gleiser
Foto: Eli Burakian/Divulgação
Lançando pela editora Record O tempo e a vida, um diálogo entre ele e o filósofo Mario Sergio Cortella, o primeiro de uma trilogia de conversas que inclui o historiador Leandro Karnal e a monja Coen (budista), Gleiser desdobra ainda nesta entrevista para o Extra Classe questões que parecem ser paradoxais, como a ciência x espiritualidade e a ciência x crenças religiosas.
No final, lembrando sua missão evidenciada, deixa escapar que, em breve, deve estar lançando nos Estados Unidos um livro que “vai se chamar algo como O despertar da mente cósmica: um manifesto para um futuro da humanidade”.
Você inicia agora uma série de livros com diálogos seus com outros pensadores feitos em videoconferências. Em síntese, qual é a motivação de um físico que, no estereótipo clássico, é uma pessoa envolta em números, em publicar essas conversas com um filósofo, um historiador e uma monja budista?
Faz parte da minha trajetória profissional mostrar que a ciência não existe isolada na academia, nos confins das torres de marfim, nos departamentos de física, química. Ao contrário, a ciência é uma manifestação cultural da humanidade e que deve trocar conhecimentos com as outras disciplinas também. Então, essas conversas são uma maneira de abrir essa dinâmica, não só para uma conversa entre mim, o Mario Sergio (Cortella), o Leandro Karnal e a monja Coen, mas para um mundo muito mais amplo.
O processo via conference teve a ver com a pandemia ou por uma questão de localização mesmo, uma vez que você reside nos Estados Unidos?
Tem a ver com a pandemia enquanto incubadora. Eu tinha um canal no YouTube, mas não dava muita bola para ele. Durante a pandemia, eu percebi que as pessoas estavam precisando desses encontros, dessa troca de informações, dessa companhia mesmo que digital. Daí eu criei o Papo Astral que deu supercerto.
Muitos cientistas se declaram ateus e manifestam-se contra religiões. Você está mais associado ao agnosticismo e a uma linha de convivência respeitosa entre a ciência e a religião. Sempre pensou assim?
Eu sempre pensei assim. Eu acho que, talvez, eu tenha ficado um pouco menos radical. Quer dizer, quando era mais jovem, eu não me preocupava muito com questões religiosas porque eu estava muito ocupado fazendo contas (risos), como você falou, escrevendo artigos mais técnicos. Com o passar do tempo, comecei a me interessar mais. Eu sempre fui uma pessoa que pensa historicamente sobre as coisas. Se olhar os meus livros, verá que eles apresentam sempre o desenvolvimento histórico do conhecimento científico. Você não pode falar sobre a história da ciência sem falar sobre religião, sem falar sobre filosofia. Há um encontro de disciplinas que é absolutamente necessário para a gente entender o contexto em que, vamos dizer, o Galileu pensou, Newton pensou, Einstein pensou. Para mim, isso faz parte dessa conversa.
O que dizer de ateísmo x agnosticismo?
Acho que o problema de ateísmo e agnosticismo é que as definições são um pouco, vamos dizer assim, permeáveis. Elas não são muito claras e as pessoas meio que se confundem. Então, quando se fala o que é ateísmo, muitos ateus pensam da forma que eu penso e eu me considero um agnóstico. Mas Richard Dawkins [1] e outros pensadores, especialmente de uns dez anos atrás, tentaram criar um humanismo extremamente radical, dizendo que quem pensa religiosamente é um louco essencialmente (risos), que está em delírio; tem um livro do Dawkins que se chama Deus, esse delírio, uma coisa assim.
Isso é um absurdo porque você não pode ver a religião apenas como uma fé no sobrenatural. Tem que ver a religião como um processo social extremamente importante que, para muita gente, é absolutamente essencial porque dá à pessoa uma identidade, uma dignidade de vida, um senso de comunidade. Daí vem um cara da Universidade de Oxford, da Inglaterra, que não tem o menor contato com esse tipo de importância social, e começa a falar essas coisas que são totalmente absurdas para alguém que vai na igreja no domingo para poder encontrar pessoas que são como ela. Essa arrogância desse ateísmo mais radical é realmente meio cego em relação ao papel superimportante do ponto de vista social, emocional mesmo, das religiões que existem mundo afora.
Interessante que, antes de você, outros físicos também receberam o Templeton. Pode me falar um pouco sobre esse estereótipo de uma pessoa, digamos, cética, envolta em números para se comprovar teorias. Há aí uma quebra de expectativas do senso comum, não?
Depende de como se olha para a ciência e depende como se define espiritualidade. O prêmio Templeton celebra pessoas que têm um pensamento que enriquece a espiritualidade humana. Sem dúvidas, para um rabino, para um padre ou um monge, espiritualidade em geral tem uma relação com a questão do espírito, com o sobrenatural, mas se tem também outra visão de espiritualidade que é uma visão secular. Uma espiritualidade que não é associada a nada, vamos dizer assim, sobrenatural. São essas pessoas na esfera científica que recebem esse prêmio. Seria o caso de pensadores científicos que celebram a ciência como uma manifestação da espiritualidade humana no que tange ao fato de que nós temos esse fascínio com o mistério de quem nós somos; a existência de tantas questões que não temos respostas e nem se sabe como responder, essa ideia de que nós, seres humanos, somos criaturas preocupadas com o desconhecido. Tem a ver com o fato da gente entender que somos criaturas que entendem que nós pertencemos a uma realidade muito mais ampla do que aquilo que podemos captar. Através da prática da ciência, você desenvolve uma prática espiritual também. O fazer ciência para o Einstein e um monte dessas pessoas que ganharam o Prêmio Nobel, para mim, é uma prática espiritualizada.
E como um físico como você encara a questão da fé?
Fé é uma coisa que todos nós, seres humanos, temos. Não interessa se é fé em Deus ou se tem fé que o seu filho vai ser campeão de futebol ou o seu clube, seja lá qual for. A fé que é essa capacidade de acreditar em alguma coisa com muita força sem uma evidência concreta. Essa é a definição de fé, vamos dizer assim. E toda ciência começa um pouco com a fé. Afinal de contas, você tem que acreditar na sua teoria, na sua ideia, antes de comprová-la através de observações, de cálculos, etc. Então, existem tipos de fé diferentes. Você pode ter a fé em uma entidade sobrenatural, que é uma fé religiosa mais tradicional, e pode ter fé em ideias, em teorias que você vai querer demonstrar ao longo da sua carreira científica.
E a transcendência?
A questão da transcendência é superinteressante. Significa que nós, seres humanos, temos essa urgência de sermos mais do que somos, transcender as nossas barreiras espaciais e temporais. É a ideia de que nós podemos projetar a nossa existência para dimensões que são muito maiores do que alguém estar falando comigo em uma sala, em um determinado momento do tempo. Acho que a ciência tem um lado transcendente porque ela eleva o pensamento humano a uma esfera muito distante do nosso dia a dia. A ciência pode ser usada como esse portal de transcendência a realidades muito mais amplas que as do nosso dia a dia.
Me parece que aí você está falando um pouco no sentido de legado. No ponto de vista religioso tradicional, a transcendência entra na questão da vida eterna, por exemplo. A transcendência do espírito. Como você vê isso?
Essa é uma conversa que, no primeiro livro, O Tempo e a Vida, com o Mario Sergio Cortella, explora em detalhes. O Mario Sergio tem uma preocupação com a “obra”, como ele chama, que é justamente essa questão do legado. A vida que é bem vivida, que faz sentido, que se preocupa com o outro, é uma vida que vai deixar algo. E não precisa ser uma grande sinfonia, uma grande teoria. Pode ser também a receita da vovó que você continua fazendo décadas depois; uma coisa que mantenha a permanência da pessoa no mundo, mesmo que essa pessoa tenha ido para outro mundo ou para onde você quiser que ela vá, não é?
Imagem: Divulgação | Editora Record
A ideia da morte…
A ideia de se deixar um legado, criar um significado na sua vida para que outras pessoas possam apreciar, mesmo depois de você ter morrido. A ideia da morte é mais complicada (risos), mas é óbvio que, por exemplo, todo artista, todo escritor, todo cientista tem uma preocupação com um legado. Consciente ou inconsciente, é óbvio que a gente quer que as pessoas lembrem da gente. Eu acho que você só morre quando as pessoas deixam de lembrar que você existiu. Isso é uma coisa muito importante. Os meus tataravós lá da Ucrânia, eu não tenho a menor ideia de quem eles eram. Mas se eles tivessem escrito um livro, tivessem criado alguma coisa com que eu pudesse me relacionar com eles ou com a mentalidade deles, eles estariam presentes ainda. Essa perda de memória é que assusta muito as pessoas. É você deixar de ser, deixar de existir. Daí que vem a questão da “vida eterna”, mas essa aí não é minha maneira de lidar com essa questão. Sei lá o que acontece depois.
Você saiu do Brasil na década de 1980 para fazer doutorado. Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas?
É aquela coisa de você sair do Brasil com formação em Física para estudar na Inglaterra, no meu caso também nos Estados Unidos. Você sempre sai um pouco preocupado. Você não sabe se a sua formação acadêmica vai dar conta, vamos dizer assim (risos). Devo dizer que o meu preparo acadêmico se demonstrou espetacular; eu me formei em Física pela PUC do Rio de Janeiro, depois eu fiz mestrado na UFRJ. Eu cheguei lá na Inglaterra com medos que rapidamente se esvaneceram porque percebi que eu não deixava desejar para ninguém, para nenhum dos outros alunos de doutorado. Acho que o preparo que as universidades de ponta do Brasil dão aos seus alunos na área científica é excelente. O problema não é esse. O problema é o que acontece depois. A falta de recursos para fazer pesquisas, a falta de regularidade desses recursos; as vezes um governo dá muito dinheiro, as vezes outro governo não dá dinheiro nenhum, corta. Você não pode desenvolver projetos de pesquisas ao longo prazo se existe essa instabilidade no financiamento. Esse é o problema endêmico, digamos assim.
Como você vê as oportunidades para jovens pesquisadores brasileiros hoje?
No caso do jovem, ele sabe muito bem que se ele quer fazer uma carreira acadêmica, vai ter que tentar de alguma forma uma experiência fora do Brasil. Seja com bolsa-sanduíche, seja como pós-doutorado, para ter contato com essa outra comunidade acadêmica fora do país que funciona de outra forma. Infelizmente, o governo atual detonou as bases do financiamento da pesquisa de uma forma trágica. Isso pegou toda uma geração de jovens que têm medo, justificadamente medo, de fazer pesquisa. Por outro lado, felizmente, está havendo uma abertura muito maior de vários tipos de indústrias para aceitar, receber pessoas com treinamento avançado, com doutorado, por exemplo, nas áreas mais técnicas. Uma coisa que na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, na China e na Índia é abundante e que no Brasil está começando. Isso é importante também. Não precisa só ficar na área acadêmica para se trilhar uma carreira científica.
Sendo um dos maiores nomes da divulgação científica no Brasil, como você vê as recentes manifestações anticientíficas, especialmente sobre vacinas e mudanças climáticas?
Vejo isso de uma forma triste. A gente ainda tem muito trabalho a fazer. O desenvolvimento da internet abriu portas para muita gente: para pessoas que têm uma missão construtiva e, infelizmente, também para quem tem uma ação destrutiva. Com a falta de conhecimento científico, filosófico, no geral da população, é muito fácil pessoas que têm uma retórica que é “chamadora” vir a enganar. Se criam comunidades em torno de certas ideias, mesmo que essas ideias estejam completamente erradas do ponto de vista científico. Antivacina, que negam o aquecimento global, terra plana, etc. Todas essas besteiras aí que estão acontecendo são sintomas do fato de que grande parte da população não tem os recursos necessários para poder diferenciar entre informação de qualidade e informação manipuladora, com intuito de confundir, com intuito destrutivo. Infelizmente, isso é popular na mídia social.
Como o sistema educacional e de pesquisa pode agir contra essa onda de desinformação?
Sendo mais ativo. Os cientistas podem ser muito mais ativos socialmente do que são. Você falou em divulgação científica; existem poucos cientistas brasileiros na academia que se dedicam à divulgação científica. A maioria da divulgação científica de qualidade – e é boa – está sendo feita hoje por jovens que se formaram na área científica que tem lá o seu canal de YouTube, o seu podcast. Fazem um ótimo trabalho, mas são poucos e não estão na área acadêmica. Se tem uma descontinuidade aí. Por exemplo, quantos cientistas vão visitar a escola pública para falar com as crianças sobre os trabalhos deles? Praticamente, nenhum. A gente tinha que criar uma lei para que todo o estudante que fosse financiado pela Finep, pela Capes, pelo CNPQ, dedicasse ao menos uma horinha por mês a visitar uma escola pública da região que ele trabalha para falar para as crianças o que é ser cientista, o que significa ter uma carreira como pesquisador. Eu me formei no ensino médio sem jamais ter visto um cientista. Você vê médico, advogados, engenheiros, mas cientista é aquela coisa meio estranha, não é? Parece que não existe no mundo normal, o que é uma grande besteira. Falta esse interesse de divulgar, de disseminar o que significa a ciência para a moçada, para juventude, principalmente das escolas públicas que não têm o menor acesso.
Como você vê essa atual onda de divulgadores da ciência nas redes sociais?
Tem ótimas pessoas e eu reforço isso. Tanto na área de biologia, quanto na área de astronomia, da física, você tem. E eu acho fantástico. Pelo menos isso está acontecendo. Mas sem muito suporte da comunidade acadêmica ainda. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência ou a Academia Brasileira de Ciência têm um programa de educação, mas ainda não são tão interessantes, tão impactantes quanto o que essa moçada toda, Pirula, Space Today e uma porção de outros que estão aí fazendo um trabalho bem legal. Aliás, entrevistei todos esse no meu canal do YouTube, o Papo Astral.
Quais grandes descobertas científicas o senhor espera no futuro próximo? Como o recém-lançado telescópio espacial James Webb pode contribuir para isso?
Talvez a mais interessante de todas, a mais impactante, seja a confirmação de vida extraterrestre. Essa é uma das missões principais do James Webb. A gente vai poder analisar a composição química das atmosferas desses planetas distantes para ver se há vida, se é que existe. Se esses planetas deixaram algum sinal lá que a gente possa detectar atividade biológica, da mesma forma com que um ET olhando para a atmosfera da Terra pode verificar que, sem a menor dúvida, existe vida aqui. Um planeta que tem vida tem assinaturas que a gente chama de bioassinatura, que podem ser detectadas à longa distância. O James Webb tem a capacidade de fazer isso e a gente acha que em dez anos, talvez menos, possamos ter uma resposta relativamente precisa sobre a existência, pelo menos, de vida simples, unicelular, bactéria; não estou falando de ET que constrói foguetes. Isso vai ser muito, muito interessante. Tanto a resposta positiva quanto uma resposta negativa. Ambas são muito interessantes.
A sua geração viu inúmeros avanços tecnológicos melhorarem a vida das pessoas (comunicações, transportes, medicamentos, oferta de alimentos, etc.). Em um mundo com mudanças climáticas e concentração de renda aceleradas, disputas militares e econômicas mais intensas, como você vê o futuro das próximas gerações?
Acho que existem dois tipos de pensadores críticos hoje em dia. Tem os otimistas, que são raríssimos, e os pessimistas, que são a maioria absoluta. Você olha para o Luck Ferry [2], olha para o Harari e é o fim do mundo que está chegando. Na minha opinião, é muito fácil fazer esse papel da pessoa que diz que o mundo vai acabar, que a gente está perdido. O mais difícil é tentar se criar soluções que mudem a nossa perspectiva.
Tipo?
De, como seres humanos, como reinventar a nossa relação com o planeta, com a vida no planeta e entre seres humanos. Para mim, a minha missão agora é essa. Não ser mais um dos pessimistas e ficar falando ‘é, o aquecimento global, a superpopulação, o desequilíbrio social, tudo isto vai levar à crise’. Claro que está levando à crise! Isso a gente já sabe. A questão é o que a gente pode fazer para mudar essa história. Por exemplo, o livro que eu escrevi O Caldeirão Azul: O Universo, o Homem e seu Espírito (Record) coloca umas ideias lá, mas estou terminando agora um que acho mais importante e que deve sair aqui nos Estados Unidos no ano que vem, que vai tratar justamente de como mudar essa história.
E como mudar essa história?
Para mudar, a gente tem que mudar como a gente pensa a ideia de como nós somos. De onde que vem essa retórica de que nós somos os reis da Terra, do planeta? De que a gente está acima da natureza, que está acima dos animais; que a gente pode matar uma vaca porque ela é inferior a nós, que a gente pode cortar uma árvore porque ela não tem valor ético ou moral, que é um pedaço de madeira. Essa história que a gente está contando há séculos é uma história errada e destrutiva. A gente precisa contar outra história.
[1] Clinton Richard Dawkins é etólogo, biólogo evolutivo e escritor britânico.
[2] Luck Ferry é filósofo, professor de Filosofia e ex-ministro da Educação da França.
[3] Yuval Noah Harari é professor israelense de História e autor do best-seller internacional Sapiens: uma breve história da humanidade.