A primeira mesa do Congresso teve como tema “Memória – Reflexão sobre os 50 anos do Cimi”; regionais e fundadores do Cimi partilharam histórias vividas ao longo das cinco décadas da instituição.
A reportagem é publicada por Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 10-11-2022.
O dia 8 de novembro entrou para o histórico de datas marcantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Ao som do canto dos missionários e missionárias, dos maracás dos povos indígenas e, em meio a alegria que pairava no ar, foram abertas as atividades do Congresso dos 50 anos do Cimi, no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO).
Após o momento especial de abertura, o Cimi deu início à primeira mesa do evento. Com o tema “Memória – Reflexão sobre os 50 anos do Cimi”, missionários e missionárias de cada Regional do Cimi – ao todo, onze – partilharam um pouco do histórico, de lutas e conquistas, com o público presente.
Os relatos mostraram que as histórias dos Regionais do Cimi, mesmo estando em diferentes lugares do país, se conectam por meio de um mesmo ponto: a defesa dos direitos originários. De Norte a Sul, missionários e missionárias seguem, ao longo das cinco décadas do Cimi, colaborando com a luta pelos povos indígenas.
Abertura do Congresso de 50 anos do Cimi
Foto: Maiara Dourado/Cimi
Entre os desafios mencionados nesse momento do Congresso, estava a demarcação dos territórios indígenas. Diante do contexto, vale ressaltar que, nos últimos anos, indígenas e organizações apoiadoras da causa têm denunciado o aumento das invasões e de violência contra as comunidades.
A política anti-indígena do atual governo agravou – e muito – esse cenário. Projetos de Lei (PLs), como o PL 191/202 – que libera a mineração em terras indígenas – e o PL 490/2007 – que inviabiliza a demarcação dos territórios indígenas –, decretos, e instruções normativas usurparam os direitos originários ao longo dos últimos quatro anos.
Além disso, não se pode esquecer da morosidade do julgamento do caso de Repercussão Geral – pelo Supremo Tribunal Federal (STF) –, que definirá o futuro das Terras Indígenas (TIs) de todo o país.
Abrindo o segundo momento da mesa, Antônio Carlos Queiroz – o ACQ –, ex-editor do Jornal Porantim, resgatou memórias do tempo em que ele contribuiu com a construção do Cimi. Em sua fala, ACQ lembrou de uma das edições do jornal – a de número 37.
“Um dos primeiros trabalhos que fiz no Porantim foi passar a noite fazendo a revisão do jornal de número 37, de abril de 1982. Esse número trazia um mapa do Brasil com a população estimada dos povos indígenas levantada pelo próprio Cimi. E o número estimado ali era de 185.485 pessoas. Naquela época, a ‘Funerária Nacional dos Índios’, a Funai [Fundação Nacional do Índio], fazia uma operação de extermínio estatístico. Cada número que publicavam, iam diminuindo o número dos indios”, relatou ACQ.
Mas, segundo ACQ, o Cimi caminhou na direção contrária da Funai. “O Cimi começou a ‘catar’ os povos Brasil afora. Pessoas como Egydio saíam com picuá [cesto], com uma ou duas laranjas, contando gente que se chamava ‘caboclo’ e que, de repente, se descobriam como índios. E isso aconteceu no Brasil inteiro. E, assim, começamos a resgatar esses povos. No Porantim, uma das brincadeiras mais interessantes que a gente fazia era ler o livro do Darcy Ribeiro, Índios do Brasil, e descobrir que povos que ele já tinha considerado extintos, estavam muitos vivos”.
Segundo ACQ, o jornal Porantim é um dos mais longevos jornais da imprensa alternativa brasileira, e é uma “grande referência brasileira da luta dos povos indígenas”.
“Dom Tomás Balduíno dizia que o Porantim era o único jornal da Igreja Católica que não tinha cheiro de sacristia, porque o jornal já nasceu com a função jornalística, com apuração dos fatos e denúncias”, afirmou ACQ, que divertiu o público ao replicar a fala de Dom Tomás Balduíno.
Em seguida, foi a vez de Egydio Schwade, indigenista, filósofo e teólogo, relembrar o seu histórico de luta ao lado dos povos originários. Logo no início de sua fala, Egydio leu um documento o qual destaca a importância do trabalho realizado por missionários e missionárias.
“Muitas vezes, estamos acostumados a ver apenas a presença do clero, das irmãs, dos bispos, e muitas vezes esquecemos daquela gente que, organizadamente, sustentou em muitos locais [do Brasil]. Lembro-me que no início do Cimi, muitos missionários, principalmente engajados em missões tradicionais, questionavam, sobretudo, o avanço da questão indígena como uma pauta nacional”, afirmou Egydio.
Egydio Schwade durante a primeira mesa do Congresso de 50 anos do Cimi, no dia 8 de novembro de 2022
Foto: Maiara Dourado/Cimi
Egydio também reconheceu que, sem os leigos e leigas, os trabalhos da instituição não teriam se desenvolvido de maneira tão eficiente. “De fato, se não tivesse entrado os leigos e leigas, sobretudo os leigos organizados, com toda certeza teria sido muito difícil fazer esse avanço nacional juntos aos povos indígenas”.
Recordando histórias de pessoas que decidiram somar à causa, Egydio, com os olhos marejados, se emocionou ao falar do momento em que conheceu Egon Heck, membro histórico e fundador do Cimi. “Por volta de 1971, conheci um motorista de ônibus [Egon Heck] que, ao escutar as minhas histórias, se interessou pela causa indígena e acabou, no ano seguinte, indo para Rondônia, para o Rio Guaporé. E ele se engajou a vida toda em lugares onde os povos sofriam, como Rondônia, Mato Grosso do Sul”.
Egydio e Egon durante primeira mesa do Congresso dos 50 anos do Cimi
Foto: Maiara Dourado/Cimi
Nesse momento, Egydio encheu os olhos de lágrimas e emocionou também o público presente, que se solidarizou e aplaudiu de pé.
Em seguida, Egon Heck lembrou da reação dos povos indígenas contra os “projetos de morte, do caminho da destruição” ao longo da história. A exemplo disso, Egon falou sobre o caso do “Gravador de Juruna”, se referindo ao primeiro deputado federal indígena do Brasil, Mário Juruna.
Na década de 1970, Juruna ficou conhecido por andar pelos corredores e gabinetes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Congresso Nacional portando sempre um gravador para registrar o que “os brancos diziam”.
“O gravador serviu para desmascarar a sociedade não-indígena que ia, sistematicamente, na maior ‘cara de pau’, falar que eram a favor dos povos indígenas. Mas que, posteriormente, destruíam os projetos de vida dos povos”, conta Heck.
Egon Heck lembrou do gravador de Juruna durante primeira mesa do Congresso dos 50 anos do Cimi.
Foto: Maiara Dourado/Cimi
Concluindo, Egon enalteceu a força e resistência dos povos indígenas e disse que é preciso mudar o olhar em relação à causa. “Ao longo desses 50 anos do Cimi, nós ressaltamos muito as citações de morte e condenação que os povos enfrentam. E essa intensidade [dos fatos negativos] fez com que a gente enxergasse menos toda a riqueza que passa pelas veias dos povos originários, e que transforma todo o sangue em força e energia”.