21 Setembro 2022
Há algum tempo, pelo menos desde a publicação do livro “Oltre Dio. In ascolto del Mistero senza nome” [Além de Deus. À escuta do Mistério sem nome] (Ed. Gabrielli, 2021) – mas a questão tem raízes que remontam ao início do século passado – discute-se sobre o pós-teísmo. Com este artigo de Raniero La Valle sobre o assunto, quer-se dar continuidade à atenção sobre um tema “crucial” para a conjugação da nossa fé na história.
Raniero La Valle é jornalista e ex-senador italiano. O artigo foi publicado por Viandanti, 15-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Livro “Oltre Dio. In ascolto del Mistero senza nome” | Foto: reprodução
A perturbação do pós-teísmo que investiu sobre a comunidade cristã não é um fracasso xeque-mate da fé, mas uma tragédia da teologia política. Sua impetuosidade abateu-se especialmente, com particular dor para nós, sobre aquele que Vittorio Bellavite, coordenador nacional do Nós Somos Igreja, chama de “o nosso circuito conciliar”, ao qual também pertencem a editora Gabrielli, Adista, Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, ou seja, personalidades e meios de comunicação que nos são caros pelo seu compromisso com a renovação conciliar da Igreja.
Digamos que o pós-teísmo não é um xeque-mate da fé, porque, ao contrário, pretende torná-la verdadeira, e a fé cristã teve que suportar o impacto de muitos outros mal-entendidos e heresias de todos tipos, mas é uma tragédia daquela dimensão específica e essencial da fé que é sua relação crucial com a sociedade e com a história; e não é por acaso que eu uso o adjetivo “crucial”.
Ao fazer da questão de Deus uma questão do passado (se o “pós” das expressões “pós-teísmo”, “pós-religião” e similares corresponde ao seu significado normal e pressupõe um tempo que já acabou), o pós-teísmo neutraliza qualquer impacto dela no presente; a própria “hipótese de trabalho” Deus é privada de toda energia capaz de influenciar a situação existente, seja para preservá-la, para modificá-la ou para levá-la a cumprimento, o “mundo do nosso tempo” se livra de toda irrupção messiânica, rompe a relação com a escatologia: se as coisas de Deus estão no passado, as coisas presentes não podem ser nem contemporâneas nem penúltimas àquelas, e o “reino de Deus” foi inutilmente anunciado.
A objeção é que o pós-teísmo não negaria Deus, mas sim a palavra com a qual a inefabilidade daquilo que é evocado como Deus é nomeada ou foi nomeada na idade infantil da nossa espécie. Mas essa palavra, Deus, que é dispensada é a palavra que alcança a Deus de fora, que o define a partir de nós e que já passou por uma miríade de significados (e os mais recentes certamente são menos improváveis, míticos e mágicos do que os mais antigos); mas outra coisa é a Palavra de Deus, isto é, Deus como Palavra, o Verbo que é Deus e que é o Deus inconfundível da fé cristã da qual Jesus “veio” para fazer exegese para o ser humano.
A contradição está no fato de que os pós-teístas, que, no entanto, professam ser cristãos e pretendem continuar sendo (um grande sinal do fascínio cristão!), assim como os discípulos de Emaús, não querem se afastar de Jesus, renunciar às suas palavras de vida, interromper o caminho que fizeram com ele; e é aqui que as contas não batem, porque o próprio Jesus encarna aquele Verbo, não feito por nós, e o próprio Jesus, não com seu agir e com seus ditos, mas com seu próprio ser, foi e é o “autor e aperfeiçoador da fé” (Hb 12,2), da nossa fé: teísta!
Portanto, se os pósteros de Deus se dizem ou se reconhecem como cristãos, é somente àquele Deus revelado por Jesus como Pai que eles podem se referir ao despedi-lo, caso contrário seriam não apenas pós-teístas, mas também pós-cristãos.
E é aqui que a fé perde sua força sobre o tempo. Porque, se o Deus em relação ao qual nos declaramos pósteros, isto é, pertencentes a um tempo posterior, é o Deus de Jesus, trata-se de um Deus crucificado e não retido pelo sepulcro. Esse é o Deus que, por meio da morte de seu Filho (“unus de Trinitate passus est”), “trocou-se” (Rm 5,10) pelo homem espancado e desfigurado por toda violência; o Deus da teologia política (Moltmann, Dossetti), o Deus que se pode continuar adorando depois de Auschwitz, enforcado com o jovem judeu no campo de concentração de Buna, contado por Wiesel, e tornado espetáculo aos prisioneiros, o Deus da Ucrânia, vítima sacrificial de seu pequeno rei com a camiseta marrom e dos soldados do invasor, o Deus da kénosis e da hypomoné, não só o Filho, mas também o Pai (Ruggieri), o Deus, enfim, identificado pelo Papa Francisco como “misericórdia” e que, portanto permaneceu como o último freio à ameaça de genocídio, à guerra total e ao holocausto nuclear; e esse é o Deus da fé, o Ressuscitado anunciado por Madalena e transmitido pelos Apóstolos. O Deus do passado?
Não sabemos nem o que fazer com o Deus dos exércitos, da troca, do dia da vingança, da Divina Comédia, do Deus “de traços antropomórficos e patriarcais” denunciado pelos pós-teístas, embora restem suas maravilhosas representações da arte sacra; e já há muito tempo descobrimos isso com a Igreja; aquele Deus não é digno sequer de uma citação dos textos reveladores do Concílio Vaticano II ou da pregação reparadora do Papa Francisco; e sabemos que, no delírio suicida da modernidade tardia, o que podemos esperar é no Deus que funda outra antropologia, não da onipotência, uma antropologia “radicalmente não senhoril”, como evocava Claudio Napoleoni, do ser humano que “é um nada que faz fronteira com Deus”.
E o que implica, teístas ou não mais teístas, continuar crendo em Jesus? Como se responde, fora do Evangelho, à pergunta: “E vocês, quem dizem que eu sou?”. A Sócrates sabemos o que devemos dar. Mas e a Jesus? A admiração, o culto ou o seguimento?
Não podemos separar a consciência que Jesus tinha de si mesmo: “Eu vim trazer fogo sobre a terra: e como gostaria que já estivesse aceso! Devo ser batizado com um batismo, e como estou ansioso até que isso se cumpra! Vocês pensam que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu lhes digo, vim trazer divisão” (Lc 12,49-51).
Trazer fogo sobre a terra não significa acrescentar um exemplo ao de tantas pessoas ilustres ou famosas, curandeiros, mestres, testemunhas, benfeitores, videntes, profetas ou sacerdotes: não é a partir dessa galeria que se pode obter a unicidade de Jesus.
Significa uma subversão que não pode ser neutralizada, não pode ser espiritualizada, não pode ser tornada inócua, encerrando-a em um universo simbólico. Significa assumir o drama da Terra, dividi-la e recompô-la, destruí-la e reconstruí-la, incendiá-la e reverdecê-la e, para além da metáfora, assumir a história e mudar sua rota, não no adiamento, não no quietismo, mas na urgência e até na angústia, como Jesus diz de si mesmo.
Quem diria isso? O Deus que não pode ser relegado ao passado é um Deus angustiado, mesmo que, como diz Luciano Manicardi, ex-prior de Bose depois de Enzo Bianchi, isso não seja “religiosamente correto”. Mas isso significa um juízo e uma intervenção no tempo, neste tempo aqui, “o tempo de agora”, que é igualmente o tempo de Jesus e o nosso tempo. Uma contemporaneidade que não deixa espaço para um antes e para um “pós”.
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Um Deus do passado ou sempre contemporâneo na história? Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU