Não faltam, ao longo da história das nações, exemplos de líderes políticos, à direita e à esquerda, que foram verdadeiros iniciadores das massas. Se, de um lado, eles conseguiram mobilizar setores da população que apoiaram e deram legitimidade a seus projetos políticos de poder, de outro, no campo das humanidades, em particular na sociologia psicanalítica, na filosofia e na psicanálise, não foram poucos os esforços para compreender os mecanismos psíquicos que explicam a relação entre as massas e seus líderes extremistas, especialmente quando as consequências dessa relação são nefastas e destruidoras.
No Cadernos IHU ideias número 338, intitulado "Sobre o mecanismo do terrorismo político-fascista: a violência estocástica da serpente do fascismo", publicado recentemente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Rudá Ricci, doutor em ciências sociais e presidente do Instituto Cultiva, e Luís Carlos Petry, doutor em comunicação e semiótica, psicanalista, topólogo e professor aposentado pela PUC-SP, enumeram uma lista de obras que, de diferentes vias, propõem explicar esse fenômeno.
Entre elas, destacam "O declínio do homem público: as tiranias da intimidade" (1974), de Richard Sennett, sobre a "crise dos tempos modernos" e "o desaparecimento das virtudes dentro do novo capitalismo", "que tinham como consequência o fortalecimento dos laços sociais, comunitários e das relações de trabalhos que organizavam a vida em sociedade até então". Outros exemplos são "Psicologia das massas", de Gustave Le Bon, lido e relido por Benedito Mussolini, "A psicologia das massas e a análise do Eu", de Freud, e "Ensaios de psicologia social e psicanálise", de Adorno.
Para compreender essa correlação no Brasil recente, a partir da relação do presidente Bolsonaro com seu núcleo de apoio, mas também com parte da sociedade que o apoia de modo mais velado, os autores se apoiam na análise de Marcos Nobre, para quem a relação entre líderes e a massa se dá a partir da "emergência da 'democracia digital'", cuja "lógica dos algoritmos, seus usos e abusos políticos" e a "manipulação da leitura do cenário político sem citar diretamente a política", tem como consequência a formação de coletivos e "bolhas".
Esse fenômeno, segundo os autores, ultrapassa a mera "disputa política" e gera o que eles denominam de "terrorismo estocástico", "um fascismo societal" que, ao mesmo tempo em que disputa os valores no interior da sociedade, "revela uma sociedade adoecida e sedenta de mudança. Revela uma tarefa urgente do porvir que somente pode acontecer pela via do amor, da solidariedade, balançados pela razão dando limites aos impulsos da barbárie fascista".
A compreensão da realidade a partir de uma chave ideológica, pontuam, faz com "ressentimento e elitismo se fundem com o valor do trabalho, a ética do trabalho". Eles exemplificam: "Um segmento considerável da sociedade brasileira considera que as dificuldades pessoais e familiares podem ser superadas com esforço individual. Assim, políticas sociais promocionais – para além da proteção social – seriam humilhantes e injustas porque partiriam, hipoteticamente, da avaliação discriminatória da incapacidade de alguns brasileiros atingirem sucesso por seu próprio mérito. Tal leitura, profundamente conservadora, promove a aproximação de segmentos desfavorecidos ao discurso do líder extremista, antiestablishment. Um caminho tortuoso de autoexpiação de sua condição marginal, como se negando favores e invocando seu ingresso no mundo dos afortunados".
Recentemente, em entrevista concedida ao IHU, Rudá Ricci analisou a “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”, uma série de atos públicos inspirados na iniciativa da Faculdade de Direito de Universidade de São Paulo – USP, à luz da disputa eleitoral presidencial deste ano. "A carta revela que segmentos da elite intelectual e empresarial do Brasil se alinham, não necessariamente com o lulismo, mas contra outras ameaças do bolsonarismo. E só, não há mais do que isso. Há toda uma certa repercussão na grande imprensa de que isso é uma clara demonstração de oposição. Não é verdade, pelo contrário, esse tipo de manifestação é típico do século XX, quando se tinha um apelo grande. Mas, no século da difusão de informações e dos núcleos comunitaristas, coletivos e virtuais esse documento é mais uma bolha, fala de uma bolha", constata.
Desde 2006, informa, "muitas pesquisas vêm revelando que a opinião da massa trabalhadora de pobres se desgarrou totalmente da linha editorial da grande imprensa e da classe média. Elas vão para um lado e os trabalhadores e pobres no Brasil votam no outro lado e decidem sobre outra agenda. Então, a ideia de formadores de opinião tem que, no mínimo, ser reformada e, nesse sentido, não dá para achar que o manifesto vai se popularizar de maneira didática nessas novas formas colegiadas e bolhas que hoje envolvem multidões de maneira fragmentada, em grupos de WhatsApp, em acessos relacionados a YouTube, Instagram, Tik Tok. Essa é uma ideia completamente descabida no século XXI".
Segundo ele, na disputa eleitoral deste ano, há "duas forças políticas nacionais com grande apelo popular, que são o lulismo e o bolsonarismo. O bolsonarismo, na verdade, é mais do que Jair Bolsonaro, assim como o lulismo é mais do que Lula. Mas o fato é que o bolsonarismo é muito mais difuso do que o lulismo. O bolsonarismo tem duas grandes bases que dão consistência a ele, lembrando que ele é fascista de extrema-direita", afirma. A entrevista completa está disponível aqui.