25 Agosto 2022
O fechamento, anunciado em julho de 2022, da clínica Tavistock, especializada em questões de identidade de gênero, ocorre após inúmeras revelações de que os serviços prestados pela instituição são “inadequados”.
A reportagem é de Arnaud Aubry, publicada por La Vie, 19-08-2022. A tradução é do Cepat.
Na Inglaterra, o único estabelecimento que atende crianças e adolescentes que questionam sua identidade de gênero fechará suas portas. A decisão foi anunciada no dia 28 de julho de 2022 pelo NHS (National Health System), o sistema de saúde inglês.
Localizada no norte de Londres, a clínica Tavistock trata há mais de 30 anos menores de idade com disforia de gênero, ou com incongruência de gênero, a dissonância entre o sexo biológico e a identidade de gênero sentida – um descompasso que pode levar a angústia, até sofrimento psíquico profundo.
O fechamento da clínica Tavistock não passou despercebido, porque “era ao mesmo tempo um modelo e um contramodelo europeu”, conta Arnaud Alessandrin, um dos especialistas franceses na questão da transidentidade, sociólogo da Universidade de Bordeaux.
“Foi um dos primeiros estabelecimentos de saúde na Europa que, desde a sua criação em 1989, acolheu crianças com questionamentos sobre a sua identidade de gênero”, explica o autor de Sociologie des transidentités (Sociologia das transidentidades). Apesar deste estatuto precursor, nos últimos anos o estabelecimento foi visto cada vez mais como um contramodelo, devido a problemas de inadequação internos particularmente significativos.
Tudo começou quando um cuidador, depois um segundo… e finalmente 10 decidiram bater na porta de David Bell em 2018. Este psiquiatra trabalhava na Tavistock há quase 25 anos, mas em um serviço para adultos. Talvez por ser considerado alguém em quem se pode confiar, um terço dos membros da equipe de atendimento, um após o outro, vieram para testemunhar suas dúvidas, até mesmo suas preocupações sobre o funcionamento da clínica para menores de idade.
Eles relatam histórias preocupantes, como explica o The Guardian em um retrato detalhado do denunciante. Crianças que, durante as consultas médicas, parecem ter seu texto repetido, e que não necessariamente compartilham a urgência dos seus pais em estabelecer um tratamento. São crianças, às vezes, muito pequenas: uma delas tem apenas 8 anos.
David Bell faz um relatório, baseado nesses depoimentos, concluindo que esses pacientes com percursos “complexos ou altamente traumáticos” estão expostos a tratamentos que podem causar “danos de longo prazo” em razão da “incapacidade (da clínica) de resistir à pressão” de ativistas “altamente politizados” e de famílias que exigem uma transição acelerada. Mas o relatório simplesmente foi ignorado. Finalmente vazou para a imprensa em 2019. Este foi apenas o primeiro golpe na reputação da clínica de Londres.
Alguns meses depois, uma investigação da BBC confirma os alertas do psiquiatra. Entre os relatórios internos obtidos pela BBC Newsnight, o prestigiado programa investigativo da televisão pública britânica, encontramos cuidadores alertando seus superiores para a homofobia por parte de familiares de pacientes jovens, um cuidador chegando a afirmar que alguns pais preferem que seu filho seja transgênero e heterossexual ao invés de homossexual… Esses relatórios confidenciais também explicam que os tratamentos, que deveriam ser prescritos após pelo menos três sessões, são prescritos após duas, ou mesmo uma única sessão…
“Esses vazamentos revelam um desrespeito à ética da prudência, ações muito rápidas e sem discernimento”, alerta Pauline Quillon, autora de Enquête sur la dysphorie de genre (Pesquisa sobre a disforia de gênero). Havia nesta clínica “um incentivo para que as crianças mudassem de sexo”, protesta.
Arnaud Alessandrin faz ainda outra análise: “O número de cuidadores não acompanhou o número de pacientes. Isso levou a uma sobrecarga de trabalho, cuidadores sem tempo e incapazes de estabelecer um acompanhamento ideal dos pacientes”. Em 2010, o estabelecimento recebeu 138 pacientes; 10 anos depois, esse número era de 2.383 por ano. Em 2021, a clínica Tavistock teria recebido quase 5.000.
Mas seja porque “a clínica estava sob influência, contra a qual não era necessário se opor”, como analisa Pauline Quillon, ou porque o estabelecimento estava simplesmente sobrecarregado, como argumentava Arnaud Alessandrin, ela não cuidou de modo adequado dessas crianças. E pelo menos um deles queria que isso parasse.
Em 2019, um processo retumbante enfraqueceu mais ainda a reputação da clínica. Keira Bell, de 25 anos, era paciente da clínica Tavistock. Ela recebeu bloqueadores da puberdade (um tratamento medicamentoso que impede temporariamente o desenvolvimento de características sexuais primárias e secundárias) aos 16 anos e foi submetida a uma mastectomia dupla aos 20 anos.
Ela agora se arrepende de uma transição que a deixou “sem seios, com voz grave, pelos no corpo, barba e função sexual afetada”. Keira pede que o uso de bloqueadores da puberdade seja proibido antes dos 16 anos. Em dezembro de 2020, uma sentença de primeira instância lhe deu razão. No entanto, menos de um ano depois, os juízes anularam a decisão de apelação, considerando que cabia “aos médicos e não ao tribunal decidir sobre a competência dos menores de idade para consentir”.
Para a clínica Tavistock, é uma vitória judicial sem entusiasmo. Alertado por estas várias revelações, o NHS decidiu investigar esta clínica, que financia desde 1994. A Dra. Hilary Cass, ex-presidente do Royal College of Paediatrics and Child Health (organismo profissional dos pediatras do Reino Unido), é encarregada de auditar o funcionamento da instituição.
Os primeiros relatos publicados são contundentes: ela descreve um serviço que não leva em conta em seus diagnósticos os outros transtornos mentais que as crianças e adolescentes podem ter; ela critica duramente a falta de acompanhamento dos pacientes no longo prazo e uma lista de espera excessivamente longa – quase dois anos e meio – para crianças que muitas vezes estão em grande sofrimento.
Em seu último relatório, publicado em 17 de julho de 2022, Hilary Cass finalmente ataca os conhecimentos científicos atuais, que considera insuficientes, sobre os tratamentos medicamentosos prescritos para pacientes menores de idade. Existem “questões ainda sem respostas, mas de grande importância” sobre os bloqueadores da puberdade, escreve. Houve apenas “pesquisas muito limitadas sobre as consequências a curto, médio e longo prazo dos bloqueadores da puberdade no desenvolvimento neurocognitivo”, diz ela preocupada.
Apesar dessas críticas, o fechamento da Tavistock não põe fim ao atendimento de crianças e adolescentes que questionam sua identidade de gênero. Pelo contrário. O NHS decidiu implantar o atendimento, ordenando a abertura de duas novas clínicas: em Londres e em Manchester, no norte da Inglaterra.
A ideia é facilitar o acesso ao atendimento, limitando os tempos de deslocamento e de espera dos pacientes. Estes centros devem ter uma abordagem multidisciplinar, com “pelo menos um serviço dedicado à saúde mental, um serviço dedicado a crianças e jovens adultos com autismo (…) e o acesso a um serviço de endocrinologia e de fertilidade”, recomenda Hilary Cass.
Enquanto isso, o fechamento da clínica Tavistock, que ocorrerá apenas em 2023, parece ter aberto as comportas para reclamações judiciais. O escritório de advocacia londrino Pogust Goodhead anunciou sua intenção de entrar com uma ação coletiva contra a clínica. “Estas crianças sofreram os efeitos por vezes irreversíveis do tratamento que receberam… Espera-se que pelo menos 1.000 pessoas adiram a esta ação coletiva”.
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Inglaterra. Crianças transgênero: por que a clínica Tavistock vai fechar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU