25 Agosto 2022
Zoologia sagrada: segundo Michel Pastoureau, o corvo é “o intermediário entre céu e terra, entre vida e morte, e engana todo o seu mundo, os homens e os deuses”.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 21-08-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Precisamente enquanto escrevo estas linhas, sinto-o grasnar na pequena praça junto à colunata de São Pedro, em constante disputa com as gaivotas. A sua voz desajeitada, a aparência escura, a voracidade lhe imprimiram uma marca simbólica negativa. E isso ocorre desde as primeiras páginas bíblicas, quando o nível das águas do dilúvio diminuía, e “Noé abriu a janela que tinha feito na arca e soltou um corvo, que ia e vinha, esperando que as águas secassem sobre a terra” (Gênesis 8,6-7). Preocupado apenas em encontrar comida, ele desaparece, ao contrário da doce pomba branca que se compromete a voltar carregando “no bico uma tenra folha de oliveira” (8,11).
Nascia, assim, uma espécie de fio simbólico preto que por muito tempo marginalizaria essa ave na tradição posterior, classificando-a quase sempre entre os animais negativos, agressivos, destinados a sobreviver em regiões desérticas. Santo Agostinho seria um dos ferozes adversários do corvo e curiosamente, no seu verso, que se assemelha ao latino cras, “amanhã”, ele intuía a voz diabólica que convida o pecador a adiar a conversão para um “depois” sem meta.
Além disso, a sua plumagem escura era semelhante a um manto sujo de mal e mortífero. De fato, o célebre Padre da Igreja estava convencido de que a arca de Noé, que abrigava tanto o corvo quanto a pomba, era um emblema da Igreja, onde convivem pecadores e justos, e até os nossos dias, nas salas vaticanos, falou-se da presença de “corvos” traidores.
Porém, folheando os textos sagrados bíblicos, as coisas não são bem assim. Pensemos, por exemplo, no início da vida pública do profeta Elias, em retiro na Transjordânia ao longo do rio Cherit: “Os corvos lhe levavam pão e carne de manhã, e pão e carne à tarde” (1Reis 17,6). Como verdadeiros garçons, eles se dedicavam à mesa do profeta solitário.
Assim, é deliciosa a cena que o Salmista retrata com apenas um verso: o Criador “fornece alimento para o rebanho, e aos filhotes do corvo que grasnam” (147,9). Ainda mais fascinado por esses pássaros seria Jesus, que se dirige aos seus discípulos assim: “Olhem para os corvos: eles não semeiam, nem colhem, não possuem celeiros ou armazéns. E, no entanto, Deus os alimenta” (Lucas 12,24).
Desse modo, entreveem-se duas representações que entrelaçam um fio branco ao fio preto evocado acima, tanto que um interessante autor cristão contemporâneo de Agostinho como Paulino de Nola cunhou uma distinção na ornitologia sagrada entre corvo bom e mau: “Esse pássaro, nas Escrituras, às vezes significa pecado, às vezes representa a graça”. Esses dois fios misturados entre si continuaram tecendo textos nos séculos seguintes (deixemos as mitologias antigas entre parênteses), talvez com a predominância do preto.
Michel Pastoureau, um dos maiores especialistas em história do simbolismo no Ocidente, descreve esses percursos de forma fascinante, também porque são acompanhados por um delicioso aparato iconográfico. Na verdade, ele se dedicou sobretudo ao estudo do espectro cromático na sua admirável variedade metafórica, tanto no seu conjunto quanto na sua multiplicidade, do azul ao verde, do vermelho ao amarelo e, naturalmente, ao preto. Embora este seu livro já tenha sido apresentado no nosso suplemento, voltamos a ele segundo a perspectiva de uma espécie de zoologia sagrada.
Outros animais bíblicos, aliás, envolveram o autor, selecionando justamente aqueles mais divisivos como o porco, o lobo, o touro e precisamente o corvo, em relação ao qual ele finalmente propõe um retrato metafórico eficaz: “O corvo não é apenas um intermediário entre o céu e a terra, entre a vida e a morte, mas é também um mistificador. Ele engana todo o seu mundo, os animais, os homens, os deuses. Às vezes, engana até os historiadores”.
O seu ensaio acompanha os voos metafóricos do corvo desde a antiguidade, quando era mensageiro dos deuses. Ele é encontrado no céu da Bíblia e dos Padres da Igreja, é descoberto em fuga durante a guerra que sofreu na Alta Idade Média e é admirado nas páginas coloridas dos bestiários medievais. Desde então, fabulistas e ornitólogos dividiram entre si a sua realidade e a sua imagem.
Mas é realmente surpreendente o resultado final do livro de Pastoureau, em que o corvo se transforma em um romântico “núncio de morte” (como não pensar no fúnebre thriller “Os pássaros”, de Hitchcock?). Mas ele não perde o seu fio branco ideal, embora um pouco maculado pela retórica moralista: é fácil evocar o corvo de “Uccellacci e uccellini”, de Pasolini. Dotado de eloquência, ele se revela mais lúcido, realista e generoso do que os dois protagonistas humanos, o pai estúpido e perverso, e o filho cínico e vaidoso, que o encontram pela estrada.
Mas, voltando à perspectiva religiosa, devemos recorrer a uma afirmação inesperada das Escrituras: “Homens e animais, tu salvas, Senhor... Bom é o Senhor para com todos, a sua ternura se estende a todas as criaturas” (Salmos 36,7; 145,9).
O quinto dia da criação, na primeira página bíblica, é dedicado aos animais, e logo voam no céu os pássaros que entrarão no bestiário sagrado sobre o qual serão bordadas infinitas aplicações ético-teológicas ao longo dos séculos. O próprio Jesus se interessará não só pelos corvos, mas também pelos pardais, pelas águias, pelos abutres e pelas galinhas, e haverá até um galo malicioso, cujo canto sinalizará uma famosa traição...
Mas, como observa o antigo sábio hebreu, “ninguém compreende o caminho da águia no céu” (Provérbios 30,19).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O corvo, aquele grande mistificador. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU