13 Julho 2022
"Um cristianismo engajado em um confronto crítico e missionário, mas não polêmico, com a modernidade existe no protestantismo clássico e em alguns setores do catolicismo: são precisamente as formas de fé, muitos notam, que estão mais vistosamente em crise", escreve Fulvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Confronti, julho de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em outubro de 1914 foi publicado na Alemanha um famoso manifesto, dirigido ao mundo da cultura, no qual 93 intelectuais alemães expressam seu entusiástico consenso à guerra na Alemanha, que consideram um empenho pela defesa do legado da cultura europeia contra a barbárie ocidental e democrática. Entre os "signatários", além de cientistas famosos como Max Planck e Wilhelm Röntgen, encontramos um bom número de teólogos, liderados por Adolf Harnack, o grande porta-voz de um cristianismo em sintonia com o novo século.
Karl Barth, então pastor na Suíça, reage consternado a esse hino bélico. Quanto aos teólogos em particular, seu raciocínio é: se, no momento decisivo, a teologia protestante não consegue fazer nada além de se juntar a um coro belicista, o problema não é apenas a ética política, mas as próprias bases da reflexão teológica. Ou seja, o nome de Jesus Cristo torna-se de fato irrelevante, diante de considerações ditadas pela mentalidade do tempo e do lugar.
Não basta discordar politicamente de Harnack ou Seeberg, é preciso refundar a teologia. Assim se manifesta Barth, cujas considerações retornam à memória no contexto do conflito ucraniano.
A primeira analogia diz respeito ao entrelaçamento entre a fé ortodoxa, em sua leitura moscovita e a ideologia do “mundo russo” [russkiy mir].
Muitos teólogos ortodoxos criticaram essa combinação, em um texto que, não por coincidência, segue (sem citá-lo explicitamente) o esquema da Declaração Teológica de Barmen de 1934, que em sua forma final foi redigida pelo próprio Barth: afirmam-se as próprias convicções de fé e, em sua base, condena-se como herética a tese oposta. A questão crítica é: temos certeza de que o vínculo que ocorreu na ideologia kirilliana seja acidental? Em termos mais brutais: a relação entre fé ortodoxa, em suas declinações nacionais, e ideologias nacionalistas não seria talvez mais estrutural do que parece à primeira vista? De acordo com Barth, por exemplo, esse era o caso do protestantismo alemão: não se tratava de exageros de fulano e cicrano, mas de uma doença mais profunda.
Segunda reflexão. Um elemento decisivo da ideologia do mundo russo e da propaganda de Kirill é a crítica ao "relativismo" ocidental, sobretudo na ética, sobretudo no âmbito sexual: é inesquecível a homilia de Kirill de 6 de março, na qual o patriarca afirmou que a guerra na Ucrânia servia para impedir as paradas de orgulho gay naquele país.
Pois bem:
a) essa alergia não é uma característica específica de Kirill, mas é amplamente compartilhada no âmbito católico (a de "relativismo" era uma das categorias críticas preferidas por Bento XVI) e evangélico: não é por acaso que esses setores cristãos, historicamente tão distantes, encontram-se unidos contra o que lhes parece uma degeneração libertina, mais que liberal, dos costumes;
b) essa aversão tem a ver com um problema cristão mais amplo em relação à modernidade de matriz iluminista.
Trata-se de um embaraço totalmente compreensível, pois tal movimento cultural e civil está impregnado não apenas de componentes antieclesiásticas, mas críticas também em relação ao cristianismo como tal. Se não se trabalhar sobre este ponto, sempre existirão Kirill, talvez mais educados, mas essencialmente não diferentes, não menos homofóbicos, fortemente discriminatório em relação ao feminino, substancialmente céticos em relação aos procedimentos da democracia.
Que são, como dizia Churchill, as piores já inventadas, exceto todas as outras.
Um cristianismo engajado em um confronto crítico e missionário, mas não polêmico, com a modernidade existe no protestantismo clássico e em alguns setores do catolicismo: são precisamente as formas de fé, muitos notam, que estão mais vistosamente em crise.
Não sei se isso é verdade, mas mesmo que fosse, poderia acontecer que a escolha diante de Jesus, hoje, comporte uma alternativa entre as dificuldades de uma fé que dialoga com o paradigma democrático e um tipo de cristianismo que talvez não esteja em crise, mas que transforma seu anúncio em uma ideologia autoritária.
Não necessariamente apenas russo-ortodoxa.
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Fé e ideologia. Artigo de Fulvio Ferrrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU