"No Estado profundo de Ancara são os militares que ditam o ritmo e as diretrizes do novo protagonismo imperial. Com ou sem Erdogan", escreve Lucio Caracciolo, diretor da Revista Limes, em artigo publicado por La Repubblica, 02-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Protagonista na cúpula da OTAN em Madri onde ameaçou vetar a adesão da Suécia e Finlândia, apenas para depois ceder arrancando o que queria em armas e freios ao PKK. Mas seu Grande Jogo tem uma esfera muito mais ampla.
A Turquia reconquistou seu lugar entre as grandes potências. Depois de ter desempenhado o papel de sentinela antissoviética da OTAN na frente sul por quarenta anos, hoje é um sujeito geopolítico plenamente soberano. Império em reconstrução, um século após o colapso dos otomanos. Determinado a repercorrer seus passos entre o Cáucaso, Oriente Médio, Norte da África e os Balcãs. Ancara permanece na Aliança Atlântica, claro, mas à sua maneira. A partir de seus próprios interesses, com as ambiguidades típicas dos atores que se querem irredutíveis a estratégias alheias. Em busca de um espaço autônomo no confronto entre Rússia e EUA. E com um líder, Recep Tayyip Erdogan, com desmedidas ambições.
Curdistão (Foto: U.S. Central Intelligence Agency
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Erdogan foi o protagonista da cúpula do Atlântico em Madri. Usando técnica de mercado levantino, o presidente turco ameaçou primeiro vetar a adesão da Finlândia e da Suécia à OTAN, decisiva para aumentar a pressão sobre a Rússia ao encurralá-la no Báltico. Depois deu luz verde aos escandinavos, mas em troca de concessões e promessas relativas tanto ao fornecimento de armas, especialmente estadunidenses (primeiro objetivo, os F-16), e dos endurecimentos de suecos e finlandeses contra os terroristas do PKK e outras estruturas curdas. Estocolmo e Helsinque se comprometeram a avaliar "rapidamente" os pedidos de extradição formulados por Ancara contra expoentes curdos que Erdogan considera inimigos mortais. Mas Erdogan se reserva o direito de vetar a entrada de suecos e finlandeses na OTAN - que deve ser ratificada pelos trinta países associados - se os pactos não forem respeitados.
Áreas habitadas pelos curdos (Foto: Sette-quattro
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É apenas a última jogada do líder turco, que está tecendo o enredo de uma esfera de influência muito mais ampla. Inaugurada pela penetração militar em antigos circuitos otomanos, da Síria ao Iraque, contando também com as ramificações em âmbito islâmico a que tem acesso graças às afinidades ideológicas forjadas na Irmandade Muçulmana. Seu raio de ação e penetração econômica e geopolítica vai da Tripolitânia ao Chifre da África, dos Balcãs ao Azerbaijão, com pivô no Grande Mediterrâneo, onde Ancara persegue a doutrina da Pátria Azul. Objetivo, emancipar-se do vínculo anatólico para firmar-se também como uma potência marítima, capaz de se estender para as grandes rotas oceânicas. Ali se joga o jogo estratégico que decidirá o futuro deste século: o embate entre os EUA e a China.
Na guerra na Ucrânia, a Turquia se move por conta própria, aproximando-se da Rússia ou dos Estados Unidos conforme o momento. Tática experimentada há anos. Por exemplo, Ancara se abastece de sistemas de mísseis russos S-400, apesar das ameaças estadunidenses. Tem o cuidado de não sancionar Moscou, aliás, oferece refúgio aos oligarcas de Putin e planeja acolher milhões de turistas russos neste verão, em peregrinação às costas da Anatólia porque estão banidos das praias euro-mediterrânicas. Ao mesmo tempo, fornece a Kiev seus drones TB2 baratos e eficazes, que nas primeiras semanas da guerra ajudaram a conter a invasão das tropas de Putin. Ancara mantém o Estreito fechado para a Frota Russa do Mar Negro, desafiando a ira do Kremlin. E a Turquia é o único país a ter esboçado uma negociação entre ucranianos e russos, que mais cedo ou mais tarde poderia reabrir de maneiras menos irrealistas.
Erdogan está impulsionando a Turquia para além de suas possibilidades efetivas, especialmente econômicas? Provável. Assim como não se pode descartar sua derrota nas próximas eleições, marcadas para o ano que vem. Mas seria um grave erro atribuir a ascensão da potência turca ao seu incômodo líder. Muitas vezes nós, ocidentais, caímos na tentação de identificar um país com seu líder, especialmente se for autoritário. Mais cedo ou mais tarde Erdogan passará o bastão, não necessariamente de forma pacífica. Mas não por isso a Turquia voltará a ser serviçal desta ou daquela potência superior. Se não depois de ser derrotada no campo.
Não tão simples: hoje as Forças Armadas turcas são as mais eficientes da OTAN, exceto as estadunidenses. E no Estado profundo de Ancara são os militares que ditam o ritmo e as diretrizes do novo protagonismo imperial. Com ou sem Erdogan.