Professor e pesquisador ressalta a importância de fundamentarmos nossa política em verdades factuais contra o suicídio da consciência
Talvez seja óbvio, mas é preciso sublinhar que a experiência do mundo concreto é diferente daquela mediada por telas. Com a circulação massiva de mensagens em redes sociais e dispositivos móveis, não é raro o obscurecimento da vida em sua concretude e, como consequência, o apagamento da verdade factual. “Nós estamos cativos dentro de uma nova caverna de Platão. Nesta nova caverna as paredes são feitas de telas eletrônicas. Nós enxergamos as imagens, mas não vemos a experiência da vida, não experimentamos a vida”, alerta o professor e pesquisador Eugênio Bucci, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
Como se não bastasse esse cenário desafiador, no Brasil temos uma democracia de alcance limitado, incapaz de garantir direitos essenciais a grande parte da população e cujos avanços são constantemente ameaçados pela circulação de informação falsa. “Essa democracia que nós temos nasce de um pacto de rejeição da ditadura, da tortura e da censura. Não existe no Brasil liberdade para um partido que defenda a ditadura e a tortura, não pode existir. Isso não torna menor a nossa liberdade, mas, ao contrário, a amplia”, ressalta.
Sob o signo distorcido da “liberdade de expressão” grupos políticos contrários à democracia atacam os valores republicanos em nome de um autoritarismo tacanho e vil. “Seria pensável que em nome da liberdade uma pessoa instalasse a sede do partido escravocrata em Brasília? Alguém poderia dizer ‘é a minha liberdade’ e que as pessoas teriam a liberdade de criar o partido escravocrata. Ora, claro que não têm e claro que não podem ter, pois esta simples proposta viola a dignidade humana. Isso não é, portanto, um limite da liberdade, mas um limite de outra natureza, um limite de agressão da dignidade humana”, explica Bucci.
O que há, no fundo e para resumir de forma bastante ampla, é uma luta constante do autoritarismo contra todas as formas de verificação e comprovação da verdade factual. “O núcleo das razões que leva o autoritarismo a combater o poder judiciário é o mesmo que leva a combater a imprensa, a ciência, as universidades. Por quê? Na ciência, nas universidades, na imprensa, na justiça há um conjunto de métodos de verificação da verdade factual e da produção de conhecimento, elaboração, formulação que escapa aos desígnios do autoritarismo e traz desconforto para este”, complementa.
Eugênio Bucci (Foto: Reprodução | Youtube)
Eugênio Bucci é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - USP. Escreveu, entre outros livros, de A superindústria do imaginário. Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível (Belo Horizonte: Autêntica, 2021) a A forma bruta dos protestos, O Estado de Narciso e Sobre Ética e imprensa (São Paulo: Companhia das Letras, 2016). Recebeu o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2013, pela Revista ESPM de Jornalismo (edição brasileira da Columbia Journalism Review). Foi Secretário Editorial da Editora Abril, presidente da Radiobrás (entre 2002 e 2007, no primeiro governo Lula) e editor da revista Teoria & Debate.
IHU – Qual a importância da obra de Hannah Arendt, especialmente seu ensaio “Verdade e Política”, para a compreensão do conceito de “verdade factual”?
Eugênio Bucci – Acredito que algumas passagens do pensamento da Hannah Arendt se tornaram indispensáveis para a compreensão mais profunda da crise da democracia nos nossos tempos. Ela foi além do que é mera percepção do fato. Entendeu e coloca isso de forma muito clara nesse ensaio – Verdade e política – as raízes menos óbvias, menos aparentes, da conexão entre a vida numa sociedade democrática e a observância do que ela classificou com verdade factual. Se ficamos apenas no registro dos fatos, corremos o risco de embarcar numa espécie de fetiche. O mercado jornalístico, por exemplo, trabalha a partir de um fetiche dos fatos, como se entregasse os fatos como eles são ou como se houvesse uma possibilidade de haver uma perfeita tradução dos fatos. Isso é mais complicado.
A Hannah Arendt conseguiu destacar, do problema da verdade, o que ela chama de “verdade factual”. Ela, então, separa a verdade factual da verdade metafísica, da discussão filosófica sobre a verdade, da verdade religiosa e mesmo da verdade da ciência, que é sempre uma verdade precária. Ela mostra muito bem e com muita simplicidade que para haver democracia é preciso que as pessoas consigam enxergar na realidade fatos em comum. Hoje, quando existe uma poderosa indústria da desinformação e a democracia vai apresentado vários sintomas de debilidade, conseguimos ter um diagnóstico muito mais consequente quando levamos em conta essa relação entre verdade factual e os sistemas próprios da democracia. Dificilmente conseguiríamos fazer isso sem se apoiar, ao menos em parte, no pensamento da Hannah Arendt. É claro que o pensamento dessa filósofa não está, exclusivamente, em Verdade e política. Precisamos fazer relação com outras coisas, como o livro Eichmann em Jerusalém (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), As origens do totalitarismo (São Paulo: Companhias das Letras, 2013), tudo isso conta. Há uma obra filosófica que nos dá um ponto de apoio para o pensamento.
Na crise da desinformação, autores como Hannah Arendt e George Orwell, entre outros, voltaram à cena, porque trouxeram contribuições que nos ajudam a lidar com dilemas, aflições e angústias da atualidade. O pensamento de Hannah Arendt é necessário não porque ela tenha interpretado o tempo dela, mas porque ela enxergou as conexões entre as conjunturas que se sucedem na democracia e uma reflexão de maior fôlego e mais perene. É mérito filosófico, mais do que o político, que marca essa valorização tardia de Hannah Arendt.
IHU – Qual a diferença entre verdade factual e verdade metafísica?
Eugênio Bucci – Para efeito de síntese e clareza, vamos fazer uma distinção entre a verdade discutida na filosofia e a verdade factual. Por verdade discutida na filosofia, entendo algo que é maior do que a chamada verdade metafísica, ou melhor, de um estatuto da verdade que seria próprio da metafísica. Vamos pensar como a filosofia discute a verdade. Ela, obrigatoriamente, discute a verdade a partir de noções de correspondência. Em Aristóteles e outros pensadores gregos, temos uma definição de verdade que passa pela verificação possível da fidedignidade de um relato naquilo que ele nos aporta da realidade. Ele é confiável à medida que ele corresponde a fragmentos da realidade. Para além disso, a filosofia precisa discutir se existe a verdade; se a verdade é algo ou não além de uma presunção; se a verdade é uma construção retórica; se a verdade pode ser universal; se podemos aceitar como verdade um anunciado independentemente das circunstâncias do agente que pensa, do interlocutor, os diversos pontos e contextos, levando em conta a tensão existente entre versão, interpretação e fato. Essa dimensão, aliás, aparece em uma frase de Nietzsche com muita explicitude quando ele questionava os fundamentos de uma filosofia positivista e enfatizava a afirmação de que “não existem fatos, mas as versões dos fatos”. Tudo isso, apesar de eu estar falando pouco, aparece na discussão da verdade na filosofia.
Hannah Arendt separa as coisas. Ela nos diz que a discussão da verdade que nos interessa é a factual. Um exemplo que podemos pensar hoje seria a invasão russa à Ucrânia. Podemos procurar todas as motivações do conflito entre Rússia e Ucrânia, mas nada muda o fato de que foram as tropas russas que invadiram o território nacional da Ucrânia. Podemos levar em consideração questionamentos sobre a legitimidade do estado nacional ucraniano, buscando as origens culturais e os fundamentos étnicos, e discutir esses pontos, mas há um fato, para ficar próximo do que Hannah Arendt defendia, que é: a Rússia invadiu a Ucrânia. Isso não muda.
A verdade factual diz respeito àqueles acontecimentos que podem ser tomados como fatos objetivos pelo conjunto da sociedade em questão, da sociedade que ergue uma democracia comum a todos. Por exemplo, no Brasil tivemos cerca de 700 mil mortes pela pandemia da Covid-19. Podemos discutir uma série de coisas, mas esses dados, com todas as imprecisões implicadas, podem ser tomados como fatos. Podemos dizer que houve subnotificação, podemos dizer que a pandemia matou pessoas que não contraíram a Covid-19 porque, ao provocar o colapso dos atendimentos de emergência nos hospitais, a pandemia deixa sem recursos pessoas que tiveram um infarto ou precisaram de outro tipo de emergência e, em decorrência do não atendimento, morreram. Tudo isso pode ser avaliado, levar certas questões em conta e relativizar, mas o fato é que tivemos, pela nossa capacidade de verificação, cerca de 700 mil pessoas vítimas da Covid-19 no Brasil. Isso não muda.
Podemos contatar também que o aquecimento global é um fato. As pessoas que procuram negar isso não apresentam elementos probatórios ou evidências suficientes. Um outro exemplo. Podemos dizer que a votação pelas urnas eletrônicas na democracia brasileira é uma votação segura. Não há nenhuma fraude comprovada nesse sistema. Claro que podemos considerar uma série de aspectos, aprofundar discussões. Não obstante, não vamos encontrar um acontecimento objetivo capaz de colocar sob uma dúvida grave essa forma de aferição da vontade popular. Bem sabemos que o modelo do bico de pena era muito mais vulnerável a fraudes do que o que acontece agora.
Indo um pouco mais adiante, podemos dizer que, pelas fórmulas e métodos de que dispomos hoje, na humanidade, todas as evidências indicam que o planeta Terra tem um formato mais ou menos esférico. Claro que, se relativizarmos as coisas, podemos dizer que a experiência daquele que anda sobre uma superfície esférica imprime uma sensação de andar sobre o plano. Isso e muitas outras coisas podem ser consideradas, mas a forma do objeto que é o planeta Terra, até onde temos capacidade consolidada de aferição do ambiente externo, é uma forma esférica. Uma pessoa pode dizer que a Terra é plana, mas, até hoje, não consegue apresentar nenhuma evidência disso.
Retomando o exemplo da guerra, o fato é que a Rússia invadiu a Ucrânia. Mesmo que as pessoas apoiem Putin, não podem mudar o fato. Outro fato é que o aquecimento global ocorre, os eventos climáticos estão aí, a contribuição do nosso modo de vida, de produção, de energia fóssil, está aí, não há muito o que fazer. Também é um fato que a urna eletrônica funciona a contento, o que não implica que sejam o suprassumo da perfeição, mas funcionam a contento. Há um monte de verificação, observação e isso é um fato.
Esses fatos vão sendo postos em contraste com a discussão metafísica da verdade, se a verdade existe ou não, a infinita investigação sobre a natureza da verdade na filosofia, mas esses debates não têm a ver com a verdade factual.
Pensemos num exemplo banal: choveu hoje à tarde; isso é um fato, não depende de opinião, não depende de versão, não depende de interpretação. Para se dar conta desses fatos, não requer que as pessoas sejam filósofas; qualquer pessoa, no exercício de suas habilidades e faculdades normais, tendo estudo ou não tendo estudo, é capaz de observar e comprovar esses fatos. São coisas simples de serem verificadas e não requerem um olhar especializado de nenhuma forma.
Esses fatos apreendidos em comum são a textura, no sentido proposto por Hannah Arendt, do domínio político. Se essa textura perde a conexão com os fatos ela escapa da própria política e, por consequência, escapamos da democracia. Se deixarmos o terreno da política, ingressamos no terreno do fanatismo. Se não há verdade factual, haverá um outro tipo de aglutinação de seres humanos que não é, exatamente, a política, e nesse sentido a democracia é impossível.
IHU – Em seu livro o senhor fala sobre duas estratégias de interdição dos fatos, a saber: “os apagões do real” e “o suicídio da consciência”. Poderia falar sobre cada de uma delas?
Eugênio Bucci – Eu procuro fazer uma relação de juízo de valor com uma e juízo de fato com outra. Esses juízos são interdependentes, pois para que eu faça um juízo de valor, que tenha validade na razão, preciso ter feito, também, um juízo de fato. É ele que me permite discernir os fatos.
Discernir fatos entre si das crendices. A partir daí eu crio um juízo de valor, o que, em relação aos fatos, vem trazer motivações ou fundamentações amparadas em valores. Por exemplo, um valor é a solidariedade. Eu posso adotar uma conduta ou formar uma convicção que me leva na direção da solidariedade. Isso nos conduz, por exemplo, a uma noção em que o direito à vida deve ser mais precioso para nós do que o princípio do direito à propriedade. A propriedade se subordina ao direito à vida em uma escolha de valor, em um juízo de valor. Para outra pessoa o direito à propriedade não pode ser arranhado em relação ao direito à vida, de modo que teremos uma configuração de valor diferente.
Exercer o juízo de valor e o juízo de fato é algo que devemos exercitar em uma existência racional. A razão envolve o conhecimento dos fatos, que tem a ver com a eleição de valores. Eu identifico várias estratégias de interdição dos fatos nos nossos dias e no livro eu agrego essas estratégias em duas grandes nomenclaturas: os apagões do real e o suicídio da consciência.
Os apagões do real ocorrem quando a leitura dos dados e a massa de dados recobrem a observação da vida diretamente. É o que me leva a dizer que nós estamos cativos dentro de uma nova caverna de Platão. Nesta nova caverna as paredes são feitas de telas eletrônicas. Nós enxergamos as imagens, mas não vemos a experiência da vida, não experimentamos a vida. Não estou falando apenas do contato com a natureza, mas este contato é uma das interdições nesta ordem.
Estou falando também do contato com outras pessoas. É incrível que um político falando se restrinja ao número de desabrigados – ainda que esses dados sejam importantes e não devam ser minimizados. Além do número existe a experiência humana da pessoa que vive na rua. Quando o número fica no lugar das pessoas e você lida com o número e não com a pessoa, é outra forma de interdição dos fatos. O médico que pede mil exames tem todos os indicadores de sangue, urina, temperatura, pressão, massa muscular etc., tem todos os dados que a tecnologia pode gerar daquele paciente, mas não tem o contato com o ser humano, que é outra forma, ainda, de interdição do real. A quantidade de dados não permite que o médico olhe no olho do paciente, converse, sinta o drama, a aflição, no máximo vai dizer que aquela pessoa precisa de um terapeuta. Os dados interditam o acesso ao real, que é insubstituível. Essa é uma estratégia de interdição dos fatos, muito própria desse mundo, em que o corpo é colocado em segundo plano. Estamos conversando nesta entrevista mediados por telas eletrônicas. É evidente que essa tecnologia é eficiente para os fins a que nos propomos, mas o contato humano seria muito rico e, no entanto, fica interditado. Essa interdição dos fatos vem do poder ou corrobora o poder. Acaba fortalecendo um poder que hoje, além de econômico e político, é também tecnológico.
A outra estratégia de interdição dos fatos, que é um enfeixamento de estratégias, é o suicídio da consciência. Esse é muito característico e nós podemos observá-lo em muitas agremiações, pois se traduz na recusa do sujeito que se nega a conhecer os fatos porque não admite a simples possibilidade de discussão e crenças fanáticas que ele carrega. Se alguém diz que Bolsonaro, o presidente da república, é responsável por parte das mortes na pandemia no Brasil pelas atitudes negacionistas que adotou ao longo de todo o tempo, pelas atitudes que acarretaram atraso na compra das vacinas, os seus seguidores se recusam a conhecer os fatos. Não é que eles discutam, mas se recusam, e ao recusar isso, escolhem o suicídio da consciência.
Essas pessoas assassinam a própria consciência, abrindo mão de olhar os fatos e decidir sobre os fatos com autonomia crítica e intelectual. Assim elas fecham os olhos para o que se passa no mundo e não aceitam a possibilidade de um contato. Isso encontra raízes em formas diversas de fanatismo ao longo da história e nós também podemos encontrar uma atitude parecida em outras aglutinações supostamente políticas, mas que são, na verdade, fanáticas e se recusam a conhecer os fatos.
A curiosidade, o apetite para saber o que se passa, que seria natural no agente político, tudo isso para questionar, para pôr em dúvida as certezas, pois na democracia o nosso motor é a dúvida, não a certeza, não acontece em certas aglutinações. Isso não está restrito às aglutinações bolsonaristas, mas agora é importante nos determos sobre esse grupo que é quem está no poder e por isso deve ser mais criticado.
IHU On-Line – Sem meias palavras. Muitos defensores e propagadores da mentira se arvoram em torno do que eles chamam de “liberdade de expressão”. Por que recorrer ao argumento da liberdade de expressão e opinião é uma armadilha que mina a democracia por dentro?
Eugênio Bucci – [Longo silêncio]. Vamos lá. Deixe-me ver por onde eu começo. [Silêncio]. Na democracia não há propriamente um limite para liberdade de expressão e para liberdade de imprensa. Há limites para outras coisas, por exemplo, eu tenho toda a liberdade para discutir o nazismo, mas, no caso da democracia alemã, eu não tenho liberdade para organizar um partido nazista. O fato de haver um impedimento para a fundação da sede do partido nazista em Berlim significa que o ambiente seja menos livre? Não. Ao contrário, significa que o ambiente é mais livre. Por quê? A democracia alemã, já que escolhemos esse exemplo, brota de um pacto mínimo na sociedade que é um pacto de rejeição ao nazismo, ao holocausto e ao antissemitismo. A democracia alemã só se tornou possível porque houve a rejeição destas três vertentes anti-humanistas, anticivilizatórias e totalitárias, típicas de um fanatismo da morte. Há uma incompatibilidade entre a vigência da democracia e a construção de um partido que precisou ser negado para que a democracia fosse possível. Não há nenhum arranhão no regime de liberdade plena no fato de que é proibida a organização ou pleito de um regime nazista na democracia alemã. Há, ao contrário, um fortalecimento da democracia.
No Brasil nós temos uma democracia que é muito frágil, mas muito frágil mesmo, gostaria de sublinhar. Além de tudo, é uma democracia de alcance restrito porque a maioria do povo brasileiro não foi alcançada seus pelos benefícios, porque não foi alcançada pelos direitos fundamentais. Uma pessoa que morre de frio na rua não foi alcançada pela democracia. Uma pessoa que não tem direito à vida não foi alcançada na democracia. Uma pessoa tiranizada por um bando de policiais que fazem de uma área da cidade a sua tirania particular não foi alcançada pela democracia. Democracia no Brasil é de alcance limitado, mas é a democracia que temos e dela só podemos esperar que cresça e trabalhar para isto, e não matá-la, como querem os autoritários.
Essa democracia que nós temos nasce de um pacto de rejeição da ditadura, da tortura e da censura. Não existe no Brasil liberdade para um partido que defenda a ditadura e a tortura, não pode existir. Isso não torna menor a nossa liberdade, mas, ao contrário, a amplia. Mesmo assim as pessoas têm direito de falar sobre o que houve na ditadura, o que consideram acertos na ditadura, que a gestão econômica foi boa, que houve fortalecimento da Petrobras etc. Tudo isso faz parte da liberdade de expressão e é exercido. Uma análise que podemos fazer, por exemplo, da ditadura militar vai identificar que havia uma ala pró-democracia, com Geisel, por exemplo.
Não há problema de exercermos nossa liberdade de expressão, de investigação e de livre circulação das ideias quando discutimos os aspectos da ditadura, mas não está incluído aí o direito de organizar um partido que defenda a ditadura. Ou, por exemplo, o direito de organizar um partido escravocrata. Seria pensável que em nome da liberdade uma pessoa instalasse a sede do partido escravocrata em Brasília? Alguém poderia dizer “é a minha liberdade” e que as pessoas teriam a liberdade de criar o partido escravocrata. Ora, claro que não têm e claro que não podem ter, pois esta simples proposta viola a dignidade humana, repito, a simples proposta viola a dignidade humana. Isso não é, portanto, um limite da liberdade, mas um limite de outra natureza, um limite de agressão da dignidade humana. Isso é intolerável e não podemos aceitar.
Vários filósofos já mostraram que não há como ser tolerante com a intolerância e o primeiro deles talvez tenha sido John Locke. Ainda nos primórdios do liberalismo e do iluminismo. Não há como ser tolerante com os intolerantes. Não há como admitir que, em nome da liberdade, uma força de poder se constitua para minar a liberdade dos outros. Isso não é liberdade. Eu não posso ter a liberdade de destruir a liberdade dos demais. Não posso ter a liberdade de matar pessoas e alegar que essa é a minha liberdade de escolha e que a minha expressão só se faz por meio de um fuzil e dar tiros. O fuzil não é um canal para a liberdade de expressão, isso não faz o menor cabimento. Entretanto, estamos sob um governo que facilita a distribuição de armas e dificulta a circulação de livros. Um poder que abriga pessoas que são a favor da censura de livros, de ideias, de artistas e incensa pessoas que falam a favor da livre circulação de armas e dizem que isso é uma extensão da liberdade. Não, não é. Nós não podemos conferir liberdade para aqueles que pretendem agir para destruir a vida e a liberdade dos demais; isso não é liberdade, é negação da liberdade. Em muitos sentidos a liberdade é o que começa a partir do limite do poder. Isso é clássico e entende que eu sou livre exatamente onde o poder não me alcança. Trata-se de uma formulação negativa da liberdade, pois ela parte da negação do poder que me oprimiria.
Existe uma liberdade que começa quando inicia a liberdade do outro, de modo que ela só é liberdade quando fortalece a de todos os demais. Nesse plano eu não posso dizer que a “sua” liberdade termina onde começa a minha, pois essa é uma visão de primeira página da liberdade – que tem o seu lugar – e é válida quando outro é o poder e não quando o outro é o semelhante. Entre os semelhantes, a liberdade que nos interessa é uma liberdade positiva, que tem laços com a ação política e ela só existe quando há a liberdade do outro. Isso é mais difícil de entender, especialmente para as mentalidades autoritárias, mas é disso que se trata. Não é verdade que essas pessoas que se organizam para atacar a liberdade dos demais estão agindo em nome da liberdade. Eles são portadores de ações destrutivas da liberdade de todos. Isso não é liberdade. Para isso nós teríamos toda a filosofia política a nosso favor.
IHU On-Line – Ainda sobre as interdições dos fatos, em um ano eleitoral, como tais negações à verdade factual impactam na democracia?
Eugênio Bucci – Nós já tocamos nesse tema, mas é preciso acrescentar uma coisa. Existe uma indústria ou uma superindústria da desinformação. É uma indústria cara, muito complexa e que tem uma divisão do trabalho sofisticada, envolvendo muita gente e muitos financiadores. Essa indústria, que era algo que não existia, intercepta e obstrui o laço do conhecimento com os fatos. Ela mata de inanição a razão, porque bloqueia as vias pelas quais esta se alimenta de ideias, contradições e verdades factuais. Com isso, ela provoca uma espécie de colapso no funcionamento da democracia ou uma obstrução, se quisermos uma metáfora orgânica, dos vasos sanguíneos da democracia, que a leva para uma espécie de necrose, de apodrecimento em vida. Então, nós temos um problema porque precisamos preservar o livre fluxo da informação. Ao mesmo tempo, esperar que o Estado ou o poder político resolva o que é informação válida e o que não é informação válida é uma armadilha. Essa condição seria o paraíso da ditadura; a verdade seria o que a ditadura diz que é verdade, o resto viraria mentira. Isso é muito perigoso. A maneira de preservar o livre fluxo da informação não é uma filtragem estatal capaz de definir o que se pode destacar e o que não pode. É antes um regime em que a liberdade de expressão é exercida sem manipulação industrial para construir fanatismo e desinformação. Nesse sentido um critério importantíssimo é que os órgãos jornalísticos têm endereço certo e sabido e as pessoas têm nome e sobrenome.
A indústria da desinformação não tem essas referências, não se sabe de onde os relatos vieram e, se há o desejo de responsabilizar alguém, as pessoas não são encontradas. Uma pessoa comum não tem para onde se dirigir para pedir uma reparação ou correção do que está errado. É uma indústria fraudulenta, clandestina e, portanto, inapreensível nas suas origens. Isso pode ser e deve ser desestimulado. O critério de método não é um critério de verificação da verdade, o poder não pode fazer isso, mesmo o poder democrático. Isso significa que mesmo que os jornais publiquem notícias imprecisas ou inverídicas, eles têm garantia legítima de existirem pois podem ser corrigidos, desmentidos e chamados à responsabilidade. Mesmo que as máquinas da desinformação digam, ocasionalmente, uma verdade factual, elas devem ser inibidas porque não podem ser localizadas e responsabilizadas. Esse tipo de critério é mais adequado.
Por exemplo, pode-se impedir a propagação artificial por meio de robôs, empregos de potencializadores e formas de anabolizar a propagação de notícias, não importa se o que está sendo beneficiado por essa técnica artificial desleal seja verdade ou mentira. Importa que esse procedimento distorce o livre debate das ideias. Ele pode ser identificado e inibido. É assim que eu reflito sobre a desinformação e a democracia.
IHU On-Line – De que maneira se ater aos fatos, em termos de democracia, está diretamente relacionado à justiça enquanto uma ideia republicana, mas também de justiça social?
Eugênio Bucci – Quando estamos falando em justiça social, estamos falando de uma sociedade justa. É interessante porque Aristóteles, em A política (São Paulo: Editora Ícone, 2017), já falava que a finalidade da política é a justiça. Precisamente, ele dizia que a política se ocupa da felicidade geral com justiça, no sentido de que a vida em sociedade seja regulada por parâmetros justos. É importante que a rotina de uma sociedade não venha ferir ou alterar o senso de justiça e nossa dignidade.
Nós também podemos usar a palavra justiça como um sinônimo mais amplo e menos formalista de poder judiciário. A “justiça” designa os organismos do poder judiciário. Visto de forma menos estrita, a justiça é operada também por advogados e promotores, que não participam como juízes dessa esfera. Essa justiça, no sentido de poder judiciário, com seus aparatos e dispositivos que fazem com que a justiça prevaleça nas lides e nos processos em curso, é o que o autoritarismo procura bombardear sem tréguas.
Não é por acaso que o atual presidente da república ataca tantas vezes os representantes do poder judiciário. É claro que existem falhas no poder judiciário no Brasil, é claro que existem falhas nos tribunais brasileiros e é claro que vamos nos beneficiar de uma crítica permanente e implacável com relação aos problemas de justiça no Brasil como forma democrática de localização de problemas, busca de solução e superação dessas mazelas. A justiça no Brasil é cheia de problemas, mas o ataque que o autoritarismo dirige à justiça é à própria existência da justiça; tem como alvo a independência da justiça em relação ao poder executivo. Portanto o autoritarismo combate o poder judiciário no Brasil, não pelos erros, mas pelos acertos.
Diante deste cenário, podemos nos perguntar por que isso acontece. Uma resposta que também se beneficia de Hannah Arendt é que há uma particularidade do poder político, ou seja, o poder executivo no Brasil, em relação ao poder judiciário, é que este último, para ser eficiente, precisa ser independente. O poder judiciário precisa fazer um juízo não subserviente ao executivo ou ele não cumprirá a sua função. Porque, entre outras coisas, o poder judiciário verifica a legalidade dos atos do poder executivo. Essa tensão, inclusive, é desejável. Se houvesse uma perfeita sintonia, como um casal de bailarinos, nós teríamos um problema grave no estado democrático de direito.
O autoritarismo combate o poder judiciário porque não aceita essa independência. Se fôssemos um pouco mais fundo na questão, o autoritarismo instalado no executivo combate o judiciário porque não sabe conviver com a verificação dos fatos e a aplicação impessoal da lei. Nesse sentido, o núcleo das razões que levam o autoritarismo a combater o poder judiciário é o mesmo que leva a combater a imprensa, a ciência, as universidades. Por quê? Na ciência, nas universidades, na imprensa, na justiça há um conjunto de métodos de verificação da verdade factual e da produção de conhecimento, elaboração, formulação que escapa aos desígnios do autoritarismo e traz desconforto para ele. O máximo de conforto para o autoritarismo é alcançado quando a maneira de definir e alcançar o que é verdade e mentira vem diretamente da conveniência do tirano. É ele que quer dizer o que é verdade e o que é mentira. Se ele não tem o poder de separar o que é verdade e o que é mentira de acordo com as suas convicções, ele entra em modo de fúria. É isso que se passa hoje no Brasil, uma fúria tresloucada porque o representante do executivo não pode dar a palavra final sobre o que é verdade e mentira.