Os pássaros nos ensinaram que se pode voar: um ensaio para entender como nos inspiramos nos animais. Artigo de Roberto Marchesini

Foto: Rebecca Scholz | Pixabay

08 Junho 2022

 

Se o céu para nós é um zodíaco, se o parque infantil parece um caravançarai, se nossos heróis assumem a aparência de quimeras e centauros, se até os sinais do alfabeto nada mais são do que remodelações de zoomorfias, talvez seja apropriado falar de um "amor especial pelos animais". E é justamente sobre esse aspecto que eu quis me focar no meu último ensaio.

 

O artigo é de Roberto Marchesini, etologista e filósofo italiano e fundador da zooantropologia, publicado em seu blog, 04-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Sem dúvida o ser humano é fascinado pelo universo zoológico e não é exagerado admitir uma verdadeira paixão que nos liga às outras espécies. Não poderia ser explicada de outra forma a nossa tendência de ver animais em constelações e nuvens, usar simbologias zoológicas na religião, na mitologia ou na heráldica, procurar analogias de caráter e semelhança na fisionomia, povoar os contos de fadas de nossas crianças com personagens teriomorfos, ou seja, humanos sob a aparência de animais.

 

É dessa relação entre seres humanos e outros animais que falo em meu último ensaio L'amore per gli animali (O amor pelos animais, em tradução livre), publicado por Lindau para a série I Delfini.

 

L'amore per gli animali. Come la relazione con le altre specie ci ha cambiato

 

Poderíamos pensar que se trata de uma herança cultural, surgida por acaso e depois mantida pela tradição, mas isso não explica o interesse espontâneo e a orientação entusiástica que qualquer forma animal evoca numa criança desde os primeiros meses de vida e também a pontualidade com que se encontra o ator animal em todas as culturas.

 

Claro que, como todos os amores, esse encanto também apresenta luzes e sombras e seria errado pensar que a paixão pelos animais tenha se baseado no respeito porque, ao lado de profissões indiscutíveis de empatia e atenções de cuidado e aliança, há também um lado obscuro dessa relação, muitas vezes constelada de contradições.

 

Na relação com os animais, para além das causas desencadeantes e das diferentes expressões em que se manifesta, a paixão e o interesse estão sempre presentes. Nessa relação o ser humano encontrou as inspirações para suas produções culturais:

 

- através das harmonias dos fringilídeos (canários) constrói seu silabário de música;

- nos rituais de acasalamento das garças, suas primeiras aulas de dança;

- no voo de uma águia o anúncio da dimensão do voo;

- nas telas das argiopes a arte de tecer;

- nos estilos de predação do lobo, os arquétipos dos esquemas de jogo;

- nos desenhos e nas máculas dos felinos, uma cosmética em síntese;

- nos superorganismos complexos dos himenópteros, as organizações em castas;

- nos retiros letárgicos dos ursos, sua paixão pelas catedrais;

- na arte de construção das vespas, os primeiros rudimentos de trabalho em madeira e pedra calcária.

 

E se a imitação se sustenta na grande capacidade humana de espelhamento, o mesmo acontece com o desejo de sustentar o esforço.

 

A biodiversidade é um imenso vocabulário de excelências performativas, aperfeiçoado pela mão infalível da seleção, fonte a que recorrer para expandir a própria dimensão existencial.

 

O animal é uma epifania, capaz de inspirar novas modalidades de estar no mundo, de sugerir ideias e produzir mudanças indentitárias antes mesmo de imaginar uma sua aplicação ou um fim.

 

 

Ver o voo de um pássaro não significa apenas ter um modelo que nos exemplifique como voar, mas saber que se pode voar. A dimensão ascendente do voo, tanto no anjo como no hiperurânio das ideias, precede a técnica de Leonardo da Vinci, ambas entretanto conjugadas no ímpeto do devir-animal.

 

Foto: PxHere

 

A epifania é uma revelação e uma inspiração, que vê o ser humano sonhando através do corpo de um heteroespecífico, sentindo o arrepio de outras dimensões existenciais, buscando uma identidade através da ajuda do espírito-guia animal.

 

Mas por que o homem sonha através dos animais?

 

Estou inclinado a responder dickianamente porque sonha animais. É assim que nosso mundo se povoa de harpias e centauros, lobisomens e vampiros, animais antropomorfizados e humanos teriomórficos... Em uma transfiguração xamânica onde o tornar-se animal é uma forma de apropriar-se de qualidades mágicas a serem levadas como dom à comunidade humana.

 

O ser humano se espelha no animal, ali pode encontrar semelhanças como contrapontos, usufruir do material útil para extrair símbolos e metonímias, alicerçar tanto os sonhos mais extremos quanto os medos mais básicos. Por isso, desde as primeiras experiências, nos encontramos cercados de referências zoomórficas: povoam os contos de fadas de uma criança, dão forma aos significados e às representações de si e do mundo, formalizam os conteúdos fugidios do inconsciente, encarnam os artefatos que nos cercam, substanciam nossas projeções desconhecidas, sejam anjos ou demônios, entram nas expressões idiomáticas e nos apelidos que usamos para caracterizar vícios e virtudes.

 

Pássaro nacional de Uganda, cinzento guindaste coroado. (Foto: Wikimedia Commons)

 

A biodiversidade torna-se então caleidoscópio de possibilidades que se revelam no exato momento em que deixam de ser meros fenômenos para aparecer, em virtude do amor, como verdadeiras revelações.

 

O animal é, portanto, a máscara por excelência que permite tirar do homem a persona, ou seja, dar-lhe contornos que podem ser usados para definir o seu perfil, para sancionar uma pertença.

 

O ator animal é facilmente revelado nas pinturas realistas que retratam cenas de caça ou rituais, mas também está presente em outras formas, embora mais crípticas, como na estilização de anatomias de animais nos pictogramas mais comuns.

 

O heteroespecífico é, portanto, o grande protagonista de toda narrativa, obviamente com tratamentos diferenciados nas diversas épocas. Do ameaçador teriomorfo, protetor e expressão de uma natureza indômita com a qual o homem era chamado ao confronto cotidiano, até a presença benévola, que neste momento se torna ela mesma protetora – basta pensar em Anúbis ou Bastet - o animal segue passo a passo o caminho do homem o informa e deixa seus rastros mais consistentes.

 

O heteroespecífico tornado máscara perde seu significado de estraneidade e torna-se alteridade, ou seja, um interlocutor acolhedor: é ponto de confronto, mas ao mesmo tempo entidade introjetada, pelo menos em parte. O animal é, portanto, outro, mas não é mais estranho: quanto mais fios invisíveis nos ligam a ele, nos reportam a ele.

 

Trata-se, portanto, uma máscara que ganha vida própria assim que é usada e, afinal, é o que candidamente chamamos de cultura.

 

 

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