Numa ampla entrevista que trata de juventude, religião, fé, cultura e política, pesquisadora chama atenção para as mudanças ocorridas no país e aponta que observar as novas gerações pode ser um caminho para auscultar os sinais do tempo
Houve uma vez em que o Brasil era um país majoritariamente católico, e depois essa hegemonia foi sendo quebrada pela capilaridade das religiões evangélicas neopentecostais. Porém, a quebra dessa dominância do catolicismo não significa uma nova força hegemônica protestante. Hoje, há quem viva sua fé nas igrejas, nos terreiros, dentro de religiões institucionalizadas e, também, em casa, entre amigos e até na “quebrada” com o pessoal do rap. “Em uma sociedade em que a religião não mais se reproduz apenas verticalmente (entre gerações), horizontalmente surgem várias maneiras de ter fé e declarar-se ‘sem religião’”, observa a socióloga Regina Novaes.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ela aponta que observar as movimentações das juventudes é significativo e pode nos dar pistas acerca das formas não mais de viver a religião, mas de professar sua fé no tempo que temos vivido. “Na sociedade globalizada e conectada, a juventude sofre diferentes influências culturais, e a ‘experimentação’ também inclui a dimensão religiosa. Sendo assim, entre os jovens ‘sem religião’ vamos encontrar diversas situações, arranjos, trajetórias, histórias”, analisa.
Dessa fluidez emergem, por exemplo, aqueles que vivem a religião dos pais, mas buscam quebrar com a tradição familiar e, ainda, aqueles que seguem a tradição e a ressignificam segundo suas percepções. “São jovens que cresceram em um momento histórico de significativa diminuição da transferência religiosa do catolicismo da geração dos pais para a geração dos filhos. Vivem em famílias que já são plurirreligiosas, o que aumenta sua possibilidade de buscar sua própria religião”, completa Regina. Segundo ela, é nessa busca que “surge forte disposição de experimentar diferentes possibilidades. É nesse cenário que uma parcela, sem aceitar um ‘pacote pronto’ oferecido pelas instituições religiosas, declara-se ‘sem religião’”.
É curioso observar outros dois movimentos apontados pela pesquisadora: um, o de pessoas que não se sentem mais compelidos a viver a “religião dos colonizadores” e assume a sua própria de matriz africana. Porém, nesse mesmo espectro, há aqueles que vivem a religião ancestral sem qualquer tipo de institucionalização. “Uma de minhas interlocutoras esclareceu: ‘Eu aprendo sobre racismo e religião em sites e postagens, mas tenho meu nicho de umbanda aqui em casa mesmo’. Segundo ela, entre a umbanda e o candomblé, preferiria a umbanda porque acha que essa vertente permite ‘mais independência, menos obrigações’”, conta Regina.
A socióloga ainda vai além: observa como o espaço antes reservado para religiões institucionais tem sido ocupado por aquilo que muitos sequer supunham. São as manifestações culturais como rap e hip-hop. “Ocupando um espaço que tradicionalmente era da religião, certamente neles há lugar para os jovens que se declaram ‘sem religião’, ou seja, para os que têm fé, mas não têm vínculos institucionais. Nas poesias, letras musicais e nos grafites aparecem livremente referências bíblicas e símbolos religiosos cristãos, afro, da cosmologia indígena, budistas, hinduístas etc. Nesse cenário, o uso de tais referências – separadas ou misturadas – não passa pelo crivo de autoridades religiosas. Possibilidades e limites se constroem entre pares”, analisa
Por fim, Regina ainda analisa intersecção entre religião e política. “No Brasil, demorou muito para que os cientistas políticos reconhecessem a religião como uma variável que influenciava o voto, que contava para o sistema eleitoral”, dispara. E provoca o que considera uma reflexão necessária: “fazer o cotejamento dessas intenções de voto com a conjuntura atual e – bem importante – trazer outros recortes (de classe, cor, local de moradia...) presentes nas juventudes para a análise. Com isso podemos evitar tanto a ideia um tanto iluminista de que a religião tem sempre efeitos conservadores quanto generalizações sobre a juventude evangélica que sempre tendem a nos fazer economizar reflexões”.
Regina Novaes (Foto: Reprodução | Youtube)
Regina Novaes possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional/ UFRJ e doutorado em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente integra o Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião – Lepar, coordenado pela professora Christina Vital da Universidade Federal Fluminense – UFF. Como pesquisadora do CNPq, continua desenvolvendo estudos sobre Juventude, ativismos políticos e cultura religiosa. Desde 2020 colabora com o Instituto de Estudos da Religião – ISER, faz parte do Conselho Fiscal da Associação Brasileira de Antropologia e compõe a Comissão Memória e Verdade da UFRJ. Também é pesquisadora visitante emérita junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ.
IHU – Números do IBGE vêm mostrando que a quantidade de pessoas que dizem não ter religião vem crescendo. Eram 0,5% em 1960, 1,6% em 1980, 4,8% em 1991, 7,3% em 2000. O Censo de 2010 registrou 7,65% de pessoas “sem religião” na população geral. Como compreender esse aumento?
Regina Novaes – No Brasil, quando se fala em religião, a referência aos Censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE é obrigatória. Desde 1872, o Brasil faz recenseamento da religiosidade dos brasileiros. Apesar de algumas irregularidades e mudanças metodológicas, desde então, de dez em dez anos, busca-se traçar um perfil oficial da religiosidade de nossa população. Poucos países contam com esse tipo de estatística. Mas, quando se fala nos números dos Censos, sempre surgem questionamentos.
Tanto autoridades religiosas quanto especialistas questionam os critérios que são usados para classificar as alternativas religiosas apresentadas no questionário. Fiéis e religiosos gostariam de números maiores para suas respectivas religiões. Especialistas gostariam que os números confirmassem suas hipóteses e/ou retratassem melhor diferenciações e nuances identificadas em suas pesquisas.
Algo similar ocorre com os “sem religião”? De início, com baixas percentagens e confundidos com ateus e agnósticos, os registros de “sem religião” não provocaram maiores reflexões. Porém, seu significativo crescimento entre o Censo de 1991 e o Censo de 2000 (de 4,8 para 7,4%) provocou reações e diversas interpretações. Alguns estudiosos – aproximando “sem religião”, ateus e agnósticos – saudaram os “ventos secularizantes” que estariam soprando pela sociedade brasileira, que estaria se tornando mais laica e menos religiosa. Outros – sem os juntar aos ateus e agnósticos – identificaram nos “sem religião” a chegada no Brasil da “religiosidade do eu”. Isto é, tratava-se de reconhecer a possibilidade das “buscas religiosas individuais” condizentes com a “pós-modernidade” marcada pelo processo de globalização que resultava em maior circulação de símbolos religiosos de diferentes tradições ocidentais e orientais.
Ao mesmo tempo, outras pesquisas quantitativas e qualitativas foram sendo feitas no Brasil e constatando que havia muitas crenças religiosas entre os entrevistados que se declaravam “sem religião” que não se consideravam ateus ou agnósticos.
Registravam-se respostas como estas: “tenho fé, mas não tenho religião”; “acredito em Deus, mas não tenho religião”; “não tenho religião, estou em busca”, “faço meu altar com meus deuses”, entre outras. Considerando novas expressões de religiosidade presentes na sociedade, no ano 2000, no Censo do IBGE o grupo “sem religião” foi aberto para três subgrupos: sem religião/sem religião, sem religião/agnósticos e sem religião/ateus.
Dessa maneira, foi possível estabelecer critérios: “sem religião-ateu” (que nega a existência de Deus ou deuses); “sem religião-agnóstico” (que abre mão de afirmar ou negar a existência de Deus) e os “sem religião” (que professam crenças em um ser ou energia superior, mas não se vinculam a uma tradição religiosa de modo sistemático).
Essa distinção não fez crescer o número de agnósticos e ateus, mas, por outro lado, evidenciou o crescimento de “sem religião/sem religião”, isto é, “com fé”. Em uma sociedade em que a religião não mais se reproduz apenas verticalmente (entre gerações), horizontalmente surgem várias maneiras de ter fé e declarar-se “sem religião”. Na sociedade globalizada e conectada, a juventude sofre diferentes influências culturais, e a “experimentação” também inclui a dimensão religiosa. Sendo assim, entre os jovens “sem religião” vamos encontrar diversas situações, arranjos, trajetórias, histórias.
IHU – Mas, não sendo ateus e agnósticos, o que a dimensão religiosa significa para esses jovens que se declaram “sem religião” e no último Censo somaram 9,61%?
Regina Novaes – Em 2013, três anos depois do último Censo – com uma amostragem nacional – a pesquisa Agenda Juventude Brasil (SNJ) confirmou as três tendências: os jovens católicos somaram 55%, os evangélicos chegaram a 29% e os que disseram “não ter religião, mas acreditar em Deus” chegaram a 15%. Essa última formulação já explicita uma primeira tradução do que significa não abrir mão da dimensão religiosa: “acreditar em Deus”.
Porém, o que precisa ser levado em conta para compreender como a dimensão religiosa está presente nas vidas de jovens brasileiros nascidos no limiar do século XXI? São jovens que cresceram em um momento histórico de significativa diminuição da transferência religiosa do catolicismo da geração dos pais para a geração dos filhos. Vivem em famílias que já são plurirreligiosas, o que aumenta sua possibilidade de buscar sua própria religião. Nessas buscas – em uma sociedade cheia de incertezas e virtualmente muito conectada – surge forte disposição de experimentar diferentes possibilidades. É nesse cenário que uma parcela, sem aceitar um “pacote pronto” oferecido pelas instituições religiosas, declara-se “sem religião”.
No entanto, mesmo para aquela parcela que se declara “sem religião” não há um percurso ou resultado único. Para uma parte, declarar-se como “sem religião” pode ser um ponto de chegada. Nesse grupo estariam jovens que assumem localmente o “espírito do tempo” que permite a adesão simultânea a sistemas diversos de crença, combinando práticas religiosas ocidentais e orientais (muitas vezes traduzidos em hábitos alimentares, recursos terapêuticos e medicinais). Fazem seu pacote pessoal e, assim, rejeitam definitivamente os pacotes prontos oferecidos pelas instituições religiosas.
Para outra parte, declarar-se “sem religião” pode representar percurso e não ponto de chegada. Isto é, apenas um interregno entre pertencimentos institucionais. Nesse grupo estão jovens socializados nas religiões de seus pais, mas que – por diferentes motivos – questionam esse pertencimento religioso e passam a buscar “sentido” e recursos simbólicos em outras alternativas religiosas que se localizam fora ou à margem de sua religião de origem.
Nesse caso, a declaração como “sem religião” expressaria apenas um momento de sua trajetória de vida, pois chegam a outro pertencimento institucional, podendo mesmo voltar à religião inicial. Pesquisas qualitativas com grupos jovens têm mostrado esse percurso entre mais velhos (entre 24 e 29) que depois de experimentações se ligam a instituições religiosas. No interior do catolicismo há casos de reescolha: jovens que dizem que não estão “por tradição familiar”, mas por escolha própria.
Em resumo, como ponto de chegada ou como momento de percurso, declarar-se “sem religião” significa questionar as instituições religiosas, autoridades, dogmas e rituais estabelecidos e ter disposição para buscar razões e emoções que ancorem sua fé, sua espiritualidade, suas crenças no sobrenatural.
IHU – Em termos de perfil social, quem são e onde estão os chamados “jovens sem religião”?
Regina Novaes – De início, justamente por não distinguir “sem religião” dos ateus e agnósticos, pensava-se que eles seriam os jovens com maior renda, mais escolaridade e com acesso a bens culturais. Geralmente, ateus e agnósticos pertencem a um grupo mais escolarizado e mais conectado com os chamados ventos secularizantes da urbanização modernizadora.
No entanto, a análise dos dados tanto no Censo de 2000 quanto no Censo de 2010 mostram que embora os classificados como “sem religião” estejam presentes em todos os níveis de renda e escolaridade, os seus maiores números nos remetem, principalmente, ao universo urbano, jovem, masculino, com baixa escolaridade, de cor parda. Entre os dois Censos, uma pesquisa que participei em 2005 (Retratos da Juventude Brasileira/Fundação Perseu Abramo) também confirmou mesmo perfil do Censo de 2010 entre os que declararam “acreditar em Deus, mas não ter religião”.
Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006)
O que mostraram outras pesquisas quantitativas? Também a pesquisa Agenda da Juventude Brasil, realizada em 2013 pela Secretaria Nacional da Juventude, destacou um número maior de “sem religião” entre os mais pobres e menos escolarizados presentes em diferentes regiões do país. O destaque é para áreas urbanas, mas os “sem religião” não estão ausentes na área rural (onde não se registra a presença de ateus ou agnósticos). Nessa mesma pesquisa, quando se perguntou aos entrevistados onde sofriam mais preconceitos, foram os “sem religião” que mais destacaram a alternativa pelo “lugar onde mora”, o que parece confirmar o espraiamento desta experiência por espaços e lugares usualmente classificados como “periferias”.
Certamente ainda há muito a se compreender sobre o perfil desses jovens que se declaram “sem religião”. Por hora, há poucas respostas conclusivas, mas são várias hipóteses sobre sua heterogeneidade, o que indica a impossibilidade de conclusões apressadas e generalizantes.
IHU – Então, entre os jovens que se declaram “sem religião” podem estar jovens evangélicos, tanto protestantes históricos como pentecostais?
Regina Novaes – Como se sabe, as centenas de denominações evangélicas que foram sendo criadas no Brasil não cabem na clássica diferenciação entre históricos/de missão (há muito tempo presentes em nosso país) e pentecostais (que cresceram mais significativamente nas últimas quatro décadas). Muitos esforços têm sido feitos para encontrar critérios de classificação que deem conta de novas características que aproximam ou afastam as denominações evangélicas.
Por exemplo: como classificar as Igrejas Evangélicas Inclusivas que reúnem fiéis de diferentes orientações sexuais ou identidades de gênero? Além disso, o que fazer com os “evangélicos não determinados” que se destacam principalmente no último Censo (4,9% entre jovens)? O fato de não declararem a denominação estaria indicando uma circulação de fiéis entre diferentes denominações ou uma negação do pertencimento denominacional? Seriam evangélicos “sem Igreja”?
Sobre as possíveis conexões entre os jovens do mundo evangélico e os “sem religião”, a socióloga Cecília Mariz levantou uma hipótese interessante.
Vejamos seu raciocínio:
1) os jovens “sem religião” e jovens pentecostais estão na base da pirâmide, são de cor parda e têm baixa escolaridade;
2) boa parte dos jovens das periferias foi criado aos cuidados de uma mulher evangélica e com elas teriam aprendido - com suas mães/avós/tias - que “ter religião” é sinônimo de “frequentar uma igreja”
3) então, por não estarem frequentando uma igreja na época da aplicação do Censo, esses jovens poderiam ter se autodeclarado “sem religião”.
É verdade que também poderiam ter se declarado apenas “evangélico”, sem citar denominação (nesse caso seriam somados aos “evangélicos não determinados”). Mas é interessante notar que - declarando-se “sem religião ou apenas evangélicos” – podem continuar partilhando de uma atmosfera cultural evangélica. É como se saíssem das igrejas evangélicas, mas certas concepções e práticas do mundo evangélico não saíssem de dentro deles. Podem continuar ouvindo músicas evangélicas e ter a Bíblia no celular, por exemplo.
Ainda no interior do mundo evangélico há outra situação que merece reflexão: o surgimento dos “desigrejados”. Essa expressão surgiu – como autodenominação – entre jovens que, por sofrerem constrangimentos em suas Igrejas ou por serem tão críticos aos comportamentos das autoridades religiosas, decidem sair de suas igrejas. Na tradição de segmentação evangélica, poderiam iniciar outra denominação. Hoje, até agora, estão preferindo a condição de “sem igreja”. Nesse sentido, estariam próximos dos “sem religião”?
Por outro lado, também temos registros de jovens que nunca pertenceram à membresia de uma Igreja evangélica, mas que hoje se definem como “evangélico sem denominação” e que também podem se autodefinir como quem “tem fé, mas não tem religião”. Sem se submeter à autoridade de pastores, circulam por redes evangélicas na internet; “baixam” cultos a qualquer hora do dia ou da noite; frequentam eventos que ocupam avenidas e praças públicas; consomem a vasta produção da indústria fonográfica de música gospel; seja porque procuram livros evangélicos que frequentam a lista dos “mais vendidos” do país.
Enfim, o Brasil – outrora hegemonicamente marcado pela cultura católica – convive hoje com uma certa “atmosfera cultural evangélica” que se faz presente não só nos territórios das Igrejas, mas na sociedade, ultrapassando o pertencimento institucional. Um levantamento feito por Leiva/Datafolha (2017), mostra a força do estilo gospel na sociedade. Uma das maneiras de explicar o lugar do gospel na área cultural é lembrar que – apesar de todas as mudanças – vivemos em um país formado sob a égide do cristianismo no qual a Bíblia goza de um prestígio incontestável. Ou seja, o gospel não se restringe aos evangélicos. Uma “cultura bíblica difusa” aproxima e tem favorecido a circulação de cantores e cantoras gospel para além do universo evangélico.
Nesse contexto, pergunta-se: com uma influência mais alargada dos evangélicos, estaria se expressando um novo sentido para a definição de “ter religião” ou ser “religioso sem religião”?
IHU – Até que ponto podemos afirmar que, anteriormente, era a Igreja Católica que vinha sofrendo um êxodo de jovens no Brasil para denominações pentecostais e neopentecostais e que, agora, são essas Igrejas que perdem jovens fiéis?
Regina Novaes – De certa forma, sim. Por décadas, o crescimento evangélico no Brasil se deu quase que totalmente alimentado pela conversão de católicos. Hoje, com menor ênfase na conversão, já há gerações de filhos e netos nessas igrejas evangélicas. Mas problemas sociais, novas maneiras de estar no mundo, distanciamentos geracionais também chegam nesse universo.
Os jovens evangélicos de hoje pertencem a uma geração para a qual as religiões não são mais as principais fontes distribuidoras de sentido, de concepções e de imagens estáveis sobre o mundo. Os jovens de hoje estão menos submetidos às tradicionais autoridades religiosas anteriormente legitimadas de geração em geração. Trata-se de uma geração virtualmente conectada que vive em territórios plurais em termos religiosos. Estão disponíveis nas redes muitos exemplos de como os jovens utilizam as novas tecnologias de comunicação para veicular mensagens religiosas. Na internet podemos encontrar os memes religiosos, sempre caracterizados com toques de humor, bem condizente com o universo cultural da atual geração juvenil.
Essas características contribuem para que parcelas de jovens evangélicos encontrem estratégias tanto para permanecer nas igrejas quanto motivos para sair para outras denominações evangélicas ou para outros espaços menos institucionais onde tenham mais liberdade para vivenciar sua religiosidade.
IHU – Como essas novas movimentações dos jovens chegam nos espaços das religiões de matriz africana? Estaria uma parcela deles “compreendendo-se” sem religião?
Regina Novaes – Para falar de religiões afro-brasileiras é preciso lembrar de uma conhecida discussão que diz respeito aos números dos Censos relativos às religiões “afro-brasileiras”. Em nosso país, cuja formação se fez sob a hegemonia da Igreja Católica, produziu-se o fenômeno de “dupla pertença religiosa” no qual se combina o catolicismo dominante com adesões à umbanda, ao candomblé e outras alternativas de matriz africana. Nesse contexto, seja por crença, seja por estratégia para fugir do preconceito (religioso e racial) que existe em relação a essas religiões, via de regra, os entrevistados se declaram em primeiro lugar “católicos”. Assim sendo, as estatísticas sobre religiões afro sempre estão longe de retratar a realidade.
Mas, em tempos em que o mundo das religiões afro-brasileiras tem sido alvo de violentos ataques de intolerância evangélica, surgem novos percursos (da religião afro para a política e da política para a religião afro). Em um dos percursos (da política para a religião) estão jovens que se definiam como católicos, evangélicos ou mesmo como ateus, agnósticos ou “sem religião” que – como contam em entrevistas – ao assumirem politicamente sua “identidade racial” e, reconhecendo a existência do “racismo estrutural”, passaram também a reconhecer sua “ancestralidade” e a construir elos com as religiões de matriz africana.
Entretanto, entre os percursos possíveis, nem sempre o pertencimento a um terreiro torna-se um ponto de chegada. Também há a possibilidade de “afirmar a ancestralidade” sem pertencer a um coletivo religioso específico. Uma de minhas interlocutoras esclareceu: “Eu aprendo sobre racismo e religião em sites e postagens, mas tenho meu nicho de umbanda aqui em casa mesmo”. Segundo ela, entre a umbanda e o candomblé, preferiria a umbanda porque acha que essa vertente permite “mais independência, menos obrigações”. Mas sua escolha pessoal foi seu altar doméstico. Nutrindo-se de informações nas redes sociais, diz que busca vivenciar a religiosidade afro de maneira autônoma.
No mundo das religiões afro-brasileiras, como se sabe, não é novidade a existência de um pequeno núcleo constantemente ativo que sustenta em torno de si – como se fossem círculos concêntricos – diferentes graus de frequência. Mas, o que parece ser mais recente é que a maior conexão entre a causa racial e a adesão religiosa provoque três movimentos:
1) adesão exclusiva às religiões afro-brasileiras e, assim, maior questionamento ao pertencimento simultâneo ao catolicismo;
2) o trânsito de jovens socializados de igrejas cristãs (evangélicas e católicos) para espaços de “religiosidade afro” por motivação identitária-político-religiosa;
3) a possibilidade de vivências religiosas afro individuais identificáveis pelo uso de certas palavras, penteados, adornos e indumentárias. Por se caracterizar por uma maior autonomia em relação às hierarquias dos terreiros, essa terceira alternativa pode abrigar jovens que se considerem “sem religião”, mas em grande conexão com o sagrado de sua ancestralidade.
É bom lembrar ainda que a ampliação do reconhecimento da existência do racismo estrutural na sociedade brasileira incentivou também a criação de pastorais voltadas para o combate ao racismo no interior da igreja católica, bem como alguns movimentos negros no interior de algumas igrejas evangélicas. Não por acaso, acontecimentos racistas (que envolvem jovens negros) têm motivado reações e articulações entre jovens de diferentes religiões e, também, jovens sem vínculos institucionais, com fé e “sem religião”. Gestam-se aí novos modos de aproximação institucional, de diálogo inter-religioso prático ou mesmo experiências ecumênicas de urgência frente situações de discriminação e de morte.
IHU – Em que medida podemos considerar que outras práticas e “tribos” da juventude, como o rap, o funk e mesmo o grafite, têm ocupado esse espaço que tradicionalmente era da religião?
Regina Novaes – Sem dúvida o funk, o rap, as danças de rua, o grafite, os encontros de poesia (slams) são expressões culturais que foram ganhando espaços na vida das últimas gerações de jovens no Brasil. Marcaram particularmente as juventudes que vivem em áreas urbanas onde pobreza e violência se interligam profundamente. Daí nasceu e se disseminou a ideia de “cultura de periferia”, que se transformou em um emblema e alimentou a criação e o desenvolvimento de inúmeros coletivos juvenis.
Nesse sentido, não podemos deixar de refletir sobre o papel desses coletivos que agregam e fornecem sentido para a vida de jovens que deles participam. Ocupando um espaço que tradicionalmente era da religião, certamente neles há lugar para os jovens que se declaram “sem religião”, ou seja, para os que têm fé mas não têm vínculos institucionais. Nas poesias, letras musicais e nos grafites aparecem livremente referências bíblicas e símbolos religiosos cristãos, afro, da cosmologia indígena, budistas, hinduístas etc. Nesse cenário, o uso de tais referências – separadas ou misturadas – não passa pelo crivo de autoridades religiosas. Possibilidades e limites se constroem entre pares.
No entanto, é preciso considerar ainda que a chamada “cultura de periferia” também se relaciona com espaços religiosos mais formais. Por exemplo, em entrevistas que tenho feito com jovens moradores de favelas e periferias no Rio de Janeiro – e também em Belo Horizonte e São Paulo – tenho ouvido relatos que demonstram o quanto certas igrejas têm funcionado como espaço de lazer nesses territórios marcados pela ausência de equipamentos culturais. Ali, encontram amigos, têm acesso a filmes e a games, aprendem a cantar, fazem parte de corais, formam conjuntos musicais, improvisam longas letras de hip-hop gospel etc.
Em muitas ocasiões, essas igrejas se constituem em espaço de formação artística. Muitos jovens vindos das favelas e periferias, quando se tornam artistas reconhecidos, contam que começaram “cantando na igreja”. Também são os evangélicos pentecostais que mais utilizam a internet para compartilhar conteúdos religiosos. Uma pesquisa realizada em 2017, pela parceria Leiva/Datafolha, mostrou que 9% da população pesquisada tem preferência pelo rap; entre os evangélicos pentecostais e não pentecostais, a proporção chega a 11%.
Outros exemplos poderiam ser dados sobre a presença dessas expressões culturais entre jovens católicos, afro e espíritas. O que mostraria o quanto as religiões são porosas às permanências e mudanças da sociedade. Por esse ângulo, é importante salientar que os atuais coletivos de produção cultural (que estão fora dos espaços institucionais religiosos) podem sim ter um papel de agregação e de fonte fornecedora de sentido para a vida e apresentar afinidades com os “sem religião” que para lá carregam e fazem livre uso de suas experiências e referências religiosas. Mas isso não pode ser visto como um processo linear e cumulativo que desembocaria progressivamente no afastamento de toda a juventude dos espaços institucionais. Acho que diferentes religiões e formas de expressar religiosidade vão conviver entre jovens.
IHU – Atualmente, quando olhamos as prévias da campanha eleitoral, vemos que a religião está no centro da disputa por votos. Como a senhora compreende esse cenário? O quanto a religião e a religiosidade importam para as escolhas eleitorais dos jovens de hoje?
Regina Novaes – No Brasil, demorou muito para que os cientistas políticos reconhecessem a religião como uma variável que influenciava o voto, que contava para o sistema eleitoral. Certamente foi o crescimento evangélico – sobretudo pentecostal – que chamou a atenção de estudiosos e dos políticos em geral para a existência de um “celeiro de votos” nas Igrejas evangélicas, sempre cheias de fiéis assíduos.
Também líderes religiosos perceberam essa oportunidade e lançaram seus candidatos. O “voto evangélico” passou então a ser um objeto de disputa e de explicações para o fortalecimento/enfraquecimento de pautas conservadoras e/ou democráticas. Nas últimas eleições presidenciais, o “voto evangélico” ganhou status de “variável independente”, determinante para a vitória do atual presidente da República.
Não nego que tenha sido uma variável importante. Mas creio que, para compreender o que houve, é preciso tanto trazer o contexto geral, a conjuntura brasileira de 2018, para refletir sobre aquela específica conjugação de fatores, quanto é importante localizar a religião entre os outros recortes sociais que definem quem são e onde estão os evangélicos no Brasil de hoje.
Voltando para a juventude, sabemos que – ao lado dos recortes de classe, de gênero, de raça, de local de moradia, de orientação sexual, de estilo ou gosto musical – a religião também faz parte do mosaico da grande diversidade presente entre jovens desse país. Acho que a religião faz diferença no voto, mas – de novo – é preciso cuidado para concluir.
Explico melhor: pesquisa recente do Datafolha chamou a atenção para o fato dos “sem religião” serem em torno de 30% entre jovens de 16 e 24 anos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Bem como o mesmo Datafolha indica que esses mesmos jovens “sem religião” representariam a parcela do eleitorado que mais indica a intenção de voto no ex-presidente Lula. É uma boa notícia. Mas pode levar a uma conclusão apressada: se jovens “sem religião” votariam em Lula, os jovens “com religião” (católicos e sobretudo evangélicos) votariam no outro candidato com o qual Lula está polarizado.
Reflexão necessária: fazer o cotejamento dessas intenções de voto com a conjuntura atual e – bem importante – trazer outros recortes (de classe, cor, local de moradia...) presentes nas juventudes para a análise. Com isso podemos evitar tanto a ideia um tanto iluminista de que a religião tem sempre efeitos conservadores quanto generalizações sobre juventude evangélica que sempre tendem a nos fazer economizar reflexões.
IHU – Qual o sentido da fé para a sociabilidade dessas juventudes? Até que ponto o aumento do número de jovens que declaram não pertencer a nenhuma religião seria um sinal de que a religião, enquanto institucionalidade, não é mais capaz de oferecer chaves de leitura para a realidade de nosso tempo?
Regina Novaes – Em pesquisa recente (2019/Observatório da Juventude na Ibero- América), ao serem indagados sobre como sua crença religiosa influencia no seu cotidiano, jovens de todas as religiões e de religiosidades sem instituições deram ênfase à “paz interior” e a “sentir-se protegido/a”. O que parece compreensível nessa fase da vida em que cessa a proteção da infância e nessa geração em que é grande a insegurança em relação ao futuro.
Do ponto de vista antropológico, a religião é uma importante dimensão da vida social. Faz parte da socialização de novas gerações oferecendo um conjunto de significados, símbolos, rituais a partir dos quais os indivíduos organizam e dão sentido às suas experiências de vida. Além disso, as religiões têm grande importância na sociabilidade dos jovens que, de maneira geral, combinam frequência às obrigações religiosas e lazer entre pares. Lembrem-se que a maioria dos jovens brasileiros declara pertencimento a uma religião. Claro que esse pertencimento pode ser mais orgânico ou mais frouxo. Por exemplo, no catolicismo existem católicos classificados como praticantes e como não praticantes. Mas os rituais de passagem – como batismo, primeira comunhão, casamento, cerimônias fúnebres – são a um só tempo religiosos e sociais. Já os evangélicos tradicionalmente são caracterizados como mais participativos e os “grupos de jovens” oferecem reuniões, passeios e – muito recorrentemente – aprendizado de instrumentos musicais (importantes sobretudo para jovens mais pobres sem acesso aos bens culturais).
No entanto, é verdade que para essa parcela que se autodenomina “sem religião” pode haver um sentimento de que as instituições religiosas não estão sendo capazes de “oferecer chaves de leitura para a realidade de nosso tempo”. Mas, para levar adiante esta reflexão, é preciso lembrar que apenas para uma parcela dos jovens de hoje a condição de ter fé, crer em Deus, mas não ter vínculos institucionais representa um “ponto de chegada”; para outra parcela pode ser apenas um intervalo entre dois pertencimentos institucionais. Ou seja, as instituições religiosas continuam tendo seu lugar justamente porque elas oferecem a participação em comunidades de fé.
A novidade nessa geração é a ampliação da possibilidade de experimentação, isto é, a possibilidade de buscar alternativas religiosas que atendam suas interrogações de fé e, também, ofereçam “chaves de leitura para as incertezas presentes entre os jovens de nosso tempo”. Ou seja, eu, pessoalmente, não aposto no fim das instituições religiosas, mas acho que os jovens de hoje podem se tornar um fator importante para sua renovação. A juventude é portadora dos “sinais dos tempos”. Ao mesmo tempo, os religiosos “sem religião” continuarão existindo.
IHU – E, nesse sentido, o cristianismo ainda é capaz de oferecer caminhos e respostas à realidade de nosso tempo, atravessada por pandemias e guerras?
Regina Novaes – A história do cristianismo é repleta de disputas e segmentações. É uma história em que sempre há uma tensão entre a instituição e utopia. Na Igreja Católica – centralizada e hierárquica – sempre conviveram correntes internas mais propensas para a reprodução da instituição Igreja e outras mais preocupadas em atualizar a utopia cristã que envolve valores de justiça e fraternidade.
Hoje, nesse nosso tempo de pandemias e guerras, o Papa Francisco tem assumido o papel de atualizar e renovar a utopia. Sua voz tem repercussão nos meios de comunicação e no mundo da política. Mas o conservadorismo católico existe e tem sido muito pouco estudado. Ou seja, a possibilidade de oferecer “caminhos e respostas” para os problemas de nosso tempo depende de “correlações de forças” internas à Igreja. Nesse sentido é muito importante o papel dos jovens nas Igrejas de hoje. As pastorais e movimentos de juventude ainda exercem papel importante ao introduzir temas e tensões que podem contribuir para a renovação da Igreja/instituição.
Por outro lado, no Brasil, no mundo protestante - segmentado em muitas denominações - as vozes que vêm a público, sobretudo na última década, são negacionistas e conservadoras. O que se ouve são certos coronéis/empresários da fé que pretendem falar pelo “povo evangélico”. É verdade que tais vozes encontram ressonância e realimentam valores e medos presentes em parte da sociedade. Para velhas dúvidas morais e temores, oferecem novas expressões como “ideologia de gênero”, “cristofobia”, entre outras.
Porém, há outra parcela de evangélicos que – por indiferença ou por convicção – não se sente representada por essas lideranças religiosas que disputam abertamente espaço na fisiológica cultura política brasileira. E, ainda ao mesmo tempo, existem movimentos evangélicos (como, por exemplo, os Evangélicos pelo Estado de Direito) e articulações juvenis (como, por exemplo, a Rede FALE) que buscam caminhos e respostas para a realidade – desigual e racista – de nosso tempo. Dar visibilidade para esses grupos minoritários é obrigação de quem se compromete com a repercussão da democracia no Brasil.
IHU – Gostaria de acrescentar algo?
Regina Novaes – Enfim, a religião dos jovens precisa ser compreendida no intercruzamento entre territórios, redes de comunicação e novos tipos de adesão e pertencimentos. Se é verdade que os jovens de hoje ampliaram suas possibilidades de escolha e experimentação das alternativas que se apresentam no campo religioso, é importante também pensar o que trazem de novo em termos de relações com a política.