Como destruir o rentismo que nos aniquila

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06 Junho 2022

 

"Livro disseca atual estágio do capitalismo: os que controlam a economia se entopem de lucros sem nada produzir. Como sua especulação voraz leva a sociedade à beira da autodestruição. Quais os quatro caminhos para enfrentá-los", escreve Trevor Jackson, professor na Universidade George Washington, em artigo publicado por The Baffler e reproduzido por Outras Palavras, 02-06-2022. A tradução é de Vitor Costa.

 

Eis o artigo. 

 

Como muitos de nós, Karl Marx passou um verão depois da faculdade tentando descobrir por que alguém tem que pagar aluguel. Ele anotou duas citações em seus cadernos de 1844 com questões sobre o problema. Uma era de Adam Smith: “Os proprietários de terra, como todos os outros homens, gostam de colher onde nunca semearam e exigem uma renda até mesmo para os produtos naturais da terra”. A outra era do economista francês Jean-Baptiste Say e era mais direta: “O direito do proprietário tem origem no roubo”. Marx, Smith e Say e todos os seus contemporâneos clássicos concordaram: auferir renda era imerecido, ineficiente e extrativo e, por essas razões, era uma relíquia de um passado pré-capitalista. Então, por que a renda domina as economias mais ricas do capitalismo do século XXI?

 

Desde a publicação, em 2014, de O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, a figura do rentista emergiu nas críticas ao capitalismo contemporâneo a partir de diferentes pontos do espectro político. Piketty mostrou que a desigualdade foi predominantemente impulsionada pelas rendas de capital do 1% mais rico (ou de um décimo ou centésimo desse 1%), o que levou até Bill Gates a concordar que “o excesso de concentração de riqueza pode ter um efeito de bola de neve se não for controlado”. Liberais como Paul Krugman e Joseph Stiglitz lamentaram lucros anormais ou excessivos recebidos acima das taxas de mercado competitivas. Os trabalhos de críticos acadêmicos de esquerda como Andrew Sayer, Guy Standing e Mariana Mazzucato aguçaram ainda mais a questão: ganhos de renda são rendimentos imerecidos, auferidos por pessoas que possuem as coisas em vez de fazê-las ou fabricá-las.

 

 

A história da ascensão do rentista é uma nova versão do que se tornou uma narrativa obsoleta sobre a ascensão do neoliberalismo. Seguindo a cronologia de Piketty, a história é assim: houve um período anterior de domínio rentista que coincide com a “Era Dourada” de capitalismo irrestrito no século XIX. Esse mundo desabou com a destruição do capital físico e financeiro entre 1914 e 1945, levando a cerca de 30 bons anos em que o trabalho organizado era forte, os impostos eram altos, os governos eram intervencionistas e a renda mediana aumentava. Tudo isso mudou na longa crise da década de 1970 e nas respostas políticas da década de 1980. A desigualdade começou a aumentar novamente, as finanças foram desregulamentadas e governos neoliberais chegaram ao poder, interrompendo prontamente as greves com violência policial e privatizando tudo o que podiam. Após 30 anos de crise de 1914 a 1945 e 30 anos de disciplinamento dos anos 1940 aos anos 1970, o rentista retornou ao domínio político e econômico a partir dos anos 1980.

 

A preponderância da riqueza rentista e as correspondentes distorções nas economias nacionais, nas políticas democráticas e nas instituições internacionais contribuíram para uma discussão paralela sobre até que ponto a financeirização, a automação, a informação e a superacumulação de capital nos levaram a uma nova fase do capitalismo, ou mesmo a extrapolar o capitalismo em direção algo pior.

 

Em um livro detalhado e estimulante, Rentier Capitalism (publicado pela primeira vez no final de 2020), o economista político e geógrafo econômico Brett Christophers oferece uma interpretação unificadora de como o rentismo funciona, fornecendo uma análise sintética da economia britânica contemporânea como estudo de caso. A economia do Reino Unido é atualmente dominada por finanças, extração de combustíveis fósseis, propriedade intelectual, plataformas digitais e pelos beneficiários das privatizações, especialmente no setor imobiliário. Christophers procura mostrar, primeiramente, como cada um desses setores apresenta sintomas da mesma doença subjacente, o modelo rentista; e também como, coletivamente, o domínio da aliança rentista intersetorial produziu uma economia esclerosada, desigualdade escancarada e política virulenta: aspectos que caracterizam o capitalismo global hoje.

 

 

Rentier Capitalism baseia-se em pesquisas que Christophers vem fazendo há pelo menos meia década. Em The Great Leveler (2016), ele mostrou como a lei de propriedade intelectual funcionou para minar as leis antimonopólio. Em The New Enclosure (2018), ele acompanhou a privatização de terras públicas que constituíam cerca de 10% da área da Grã-Bretanha e suas consequências sociais e políticas. Cada um desses assuntos retorna nesse novo livro com um capítulo próprio. Mais importante, ele agora oferece uma estrutura interpretativa unificada, desenvolvida em 112 páginas de prefácio, introdução e posfácio, além de sete capítulos substantivos e minuciosamente detalhados, cada um discutindo a estrutura rentista de um setor diferente da economia britânica.

 

O que é a renda, então? “Em essência”, escreve Christophers, “renda, pelo menos como entendido neste livro, é o pagamento a um ator econômico (o rentista) que recebe esse valor – e esse é o fator-chave – puramente em virtude de controlar algo valioso”. Ele continua esclarecendo: “a renda é derivada da propriedade, posse ou controle de bens escassos sob condições de concorrência limitada ou inexistente”. Ambos os elementos são importantes: controle e competição limitada. Ele afirma que essas são as características fundamentais do capitalismo neoliberal em geral, e da economia britânica em particular, abrangendo setores, fronteiras e escalas. Assim: “O capitalismo rentista é um sistema econômico não apenas dominado por rendas e rentistas, mas, em um sentido muito mais profundo, substancialmente sustentado e organizado em torno dos ativos que geram essas rendas e sustentam esses rentistas”.

 

Os capítulos centrais são de leitura envolvente. Christophers se aprofundou nos relatórios de empresas e nas demonstrações contábeis, e investigou como as coisas funcionam, desde as brechas fiscais até a computação em nuvem e o terror nos contratos de Veículos de Propósito Específico (Special Purpose Vehicle). Ele mostra que o Subway é um dos rentistas mais prolíficos do capitalismo moderno (porque eles não operam nenhum restaurante, todo o seu negócio é licenciar sua marca, imagens e receitas), ele também ensina como funcionam os leilões de privatização e ele explicará por que a Universidade de Oxford está logo atrás da British American Tobacco no depósito de pedidos de patente. O núcleo do livro é uma síntese essencial de quem ganha dinheiro na Grã-Bretanha e como. O panorama é sombrio.

 

Veja a Arqiva, uma empresa privada de telecomunicações de propriedade de um consórcio de instituições internacionais de investimento, que controla a maior parte da infraestrutura de TV, rádio e telefones celulares na Grã-Bretanha. “A Arqiva não extrai, fabrica ou fornece nada”, escreve Christophers. “Na verdade, o cerne de seu modelo de negócios não é fazer (extrair/fazer/fornecer); ao contrário, é ter.” O site da Arqiva discorda. Alega que a empresa “fornece dados críticos, serviços de rede e comunicações”. Os defensores dos muitos rentistas discutidos por Christophers fariam o mesmo apelo: eles fornecem serviços aos clientes que precisam. O Barclays forneceria serviços financeiros, o Amazon Web Services forneceria uma variedade de serviços de computação remota e seu proprietário faria o “serviço” de deixá-lo morar em um apartamento. Christophers reconhece que as plataformas “criam” mercados, que o Google e o Facebook “fornecem serviços tangíveis” e que os intermediários existem porque seus clientes querem. Muitos desses serviços são ridículos ou perniciosos, mas não são nada.

 

O problema é mais agudo nos capítulos sobre propriedade intelectual e terceirização. Cada um desses fenômenos está estruturado em torno de profundas injustiças, mas as empresas que receberam contratos terceirizados definitivamente extraem/fazem/fornecem, ao passo que os detentores de direitos de propriedade intelectual em nenhum momento fizeram algo, seja uma vacina ou um livro sobre capitalismo. Então, por que todos esses players merecem suas recompensas?

 

 

A resposta esclarece por que a definição de renda de Christophers é uma mistura da versão clássica (a renda não é ganho de trabalho) com a versão econômica moderna (a renda é o lucro excedente acima das taxas competitivas). Barclays, Arqiva e Amazon são monopólios absolutos ou próximos o suficiente para funcionar como monopólios. Assim, “ativos rentáveis”, escreve Christophers, “são aqueles caracterizados pelo poder de monopólio não apenas em propriedade ou controle – ênfase heterodoxa –, mas também em termos de sua comercialização no mercado”.

 

A compreensão econômica padrão dos monopólios é que eles são ruins porque fornecem muito pouco a um preço muito alto. Qualquer um que já tenha tentado fazer qualquer coisa na Grã-Bretanha verá a aplicabilidade imediata desta definição. Ao expandir a partir dessa concepção mais estreita para incluir coisas como propriedade intelectual, habitação privada e plataformas digitais, Christophers apresenta um argumento persuasivo de que o rentismo é coincidente com o próprio capitalismo. O ponto pode, e deve, ir mais longe. O que os monopolistas controlam é o acesso. Eles podem cobrar os altos preços que cobram porque as pessoas têm que pagá-los, ou o monopolista pode excluir essas pessoas do acesso a tudo o que ele controla.

 

Essa crítica é comum em todo o espectro político. O que lhe confere um conteúdo radical é o reconhecimento de que a propriedade privada é ela mesma, em todas as suas formas, inerentemente uma espécie de monopólio. O que dá valor à propriedade é a capacidade de invocar o poder coercitivo do Estado para excluir violentamente todos os outros humanos de alguma parte do mundo. Ao contrário do que afirmam seus ideólogos, a essência do capitalismo é a exclusão. As trocas mercantis baseiam-se na exclusão de quem não pode pagar; os lucros baseiam-se na exclusão de quem não é proprietário; o investimento baseia-se na exclusão dos não-investidores dos dividendos. Parte da profunda animosidade capitalista em relação à tributação e redistribuição, muito menos à propriedade coletiva, se deve exatamente a que essas políticas não excluem as pessoas de benefícios que elas não “ganharam”.

 

Então, o que há de novo nesse livro? Já tivemos teorias sobre o capitalismo monopolista antes: o livro de Paul Baran e Paul Sweezy sobre o assunto em 1966; O Capital Financeiro de Rudolf Hilferding em 1910. O retorno do rentista inaugurou uma nova fase do capitalismo? É uma reação a uma longa crise do capitalismo, mais uma forma de “comprar tempo”? Como conceito, o “capitalismo rentista” tem uma amplitude que falta à “financeirização” e uma clareza que falta muito ao “neoliberalismo”. Também fala de continuidades profundas na história do capitalismo, sugerindo não uma transcendência para novas relações de produção, mas uma reafirmação destrutiva de um antigo padrão.

 

Monopólios e rendas não são apenas a base da propriedade privada, são também a forma básica das instituições capitalistas. As sociedades anônimas foram a primeira forma de capital permanente, durando mais do que uma única parceria para um único empreendimento, ou mesmo o tempo de vida de investidores individuais. Eles também detinham cartas do governo que lhes davam direitos de monopólio sobre coisas como a exploração colonial nas Índias Orientais, ou as taxas agrículas na França do Antigo Regime ou o comércio de escravos no Atlântico. Da mesma forma, uma versão anterior da palavra inglesa “rent” era a francesa rente (rima com “want”), que eram contratos de empréstimo sob o Antigo Regime. As pessoas emprestavam à Coroa (ou a um de seus clientes) uma quantia e recebiam de volta uma porcentagem em um pagamento semestral enquanto algum indivíduo estipulado no contrato permanecesse vivo. O contrato de aluguel, por sua vez, podia ser comprado ou vendido: era um direito a um fluxo de renda futura. As vidas especificadas eram muitas vezes de figuras públicas (para que todos soubessem quando morriam e o aluguel expirava), mas eventualmente um consórcio de financistas percebeu que, por exemplo, as meninas genebrinas que haviam sobrevivido à varíola provavelmente viveriam mais, então criaram rendas em “pacotes” a partir de suas expectativas de vida. Os primeiros rentistas eram pessoas que viviam dos rendimentos destes vários “rentes”.

 

Cartas de ações e “rentes” têm algo em comum entre si e com os rentistas da história de Christophers: cada um deles é uma maneira de transformar um instante de desigualdade de riqueza em um futuro de dominação estrutural. Em cada caso, o poder de monopólio foi inicialmente adquirido com um montante fixo. Esse montante fixo foi convertido em um fluxo futuro de renda exclusiva, participação de mercado exclusiva ou lucros exclusivos. A dívida é uma versão ainda mais clara dessa relação: um desequilíbrio inicial se converte em um futuro de serviço de pagamento. Essa dimensão temporal do poder de monopólio está em todo o capitalismo rentista. Os monopólios já foram construídos, então eles podem usar seu poder para bloquear rivais iniciantes e se proteger de suas próprias práticas em negócios de má qualidade. A privatização já aconteceu, os contratos sem licitação já foram concedidos e as plataformas digitais já estão online. O momento crítico já passou; vivemos agora no futuro de controle e exclusão que as negociações anteriores compraram.

 

Na mesma passagem de seus cadernos de 1844, Marx escreveu o seguinte:

 

Agora, porém, vamos considerar a renda da terra tal como ela é formada na vida real. A renda da terra é estabelecida como resultado da luta entre inquilino e proprietário. Constatamos que o antagonismo hostil de interesses, a luta, a guerra é reconhecido em toda a economia política como a base da organização social.

 

 

Lido com esta passagem em mente, Rentier Capitalism mostra o que há de novo: não apenas a existência de monopólios e rendas, mas o fato de que sua onipresença e preços elevados (em todos os sentidos da palavra) são o resultado de uma luta que foi perdida 40 anos atrás e continua a ser perdida a cada vez. Christophers conclui apontando para quatro áreas que precisariam mudar para desfazer a rentização da economia: um retorno da lei antimonopólio, um sistema tributário reestruturado, o retorno do investimento do governo e redistribuição de propriedade em larga escala. Ele não tem ilusões sobre o que está em jogo ou os desafios: “A menos que a esquerda retorne ao poder no Reino Unido num prazo relativamente curto e seja capaz de avançar com as transformações necessárias para remover o rentista de seu pedestal, é inteiramente possível que mais uma vez sejam necessárias turbulências socioeconômicos devastadoras para impor os limites ao rentismo que ele não contém em si mesmo”. Ele invoca não apenas as possibilidades apocalípticas da mudança climática, mas também o precedente de 1914 a 1945. Ao fazê-lo, ele se soma a Piketty e outros analistas da desigualdade histórica que descobriram que reduções substanciais da desigualdade tendem a acontecer apenas na sequência de catástrofes.

 

O que há de novo nos rentistas de hoje, então, não é sua prevalência, seu domínio, ou que eles enfrentem uma oposição menos intensa do que no passado. O que mais distingue nossos rentistas contemporâneos é que se tornou difícil discernir se suas manobras representam estratégias racionais de defesa da riqueza da elite em condições de produtividade em declínio e mudança tecnológica ou, em vez disso, o impulso implacável de um culto niilista à morte.

 

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