17 Mai 2022
Em entrevista, o professor Luciano Fedozzi avalia a ausência de debate democrático sobre o futuro da histórica área da Capital.
A entrevista é de Luciano Velleda, publicada por Sul21, 13-05-2022.
O Governo do Estado deve promover nova audiência pública sobre o projeto de revitalização do Cais Mauá até o final do mês de maio. A primeira audiência, realizada no final de abril, foi marcada pela contrariedade de boa parte do público presente com a proposta de conceder o Cais à iniciativa privada, por um prazo de 30 anos, em troca de investimentos na “modernização”, conservação e urbanização do espaço situado no centro da Capital.
O plano foi apresentado pelo secretário estadual de Parcerias, Leonardo Busatto, pelo chefe do departamento de ativos imobiliários do BNDES, Osmar Lima, e o coordenador do consórcio Revitaliza, João Lauro da Matta, empresa contratada pelo BNDES para fazer a modelagem do negócio.
Além da discordância do público em relação à proposta, o encontro foi marcado por fortes críticas direcionadas ao modo como o Governo do Estado tem conduzido o processo. Nessa entrevista ao Sul21, o professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luciano Fedozzi, diz que o governo estadual jamais teve o verdadeiro intuito de promover um debate sobre o futuro da histórica área de Porto Alegre.
“Me parece que é muito claro o fato de que o Governo do Estado já tinha uma política de privatização do Cais Mauá, isso já estava dado de antemão. E todo esse processo que eles acham que foi participativo, de workshops realizados pelo consórcio atual, contratado pelo BNDES, fica claro que foi muito mais pra cumprir um ritual pra aparentar abertura e participação, mas que de antemão havia a decisão de adotar a privatização do cais”, afirma.
Junto com outros professores da UFRGS e representantes do Coletivo Cais Cultural Já, Fedozzi apresentou em novembro de 2021 uma proposta para que a revitalização do Cais Mauá seja destinada à promoção de atividades culturais, sem a necessidade de privatizar o espaço. Batizado de “Diretrizes Gerais – Proposta de Ocupação Cultural do Cais do Porto de Porto Alegre”, o estudo prevê a exploração comercial da área por empreendimentos econômicos e de forma comercial, como restaurantes e bares, assim como também prevê que os espaços sejam ocupados por atividades e setores ligados à economia criativa. Os autores do projeto, ele conta, jamais foram recebidos por representantes do governo estadual.
O professor de Sociologia acredita que o governo, no fundo, tem receio de enfrentar um debate democrático sobre o futuro do Cais Mauá. Fedozzi destaca que o pensamento na “caixinha” neoliberal não consegue ver outras opções que não sejam a privatização e a transformação da cidade em mercadoria.
“Dentro da ‘caixinha’ neoliberal se entende que não há alternativa a não ser privatizar. Essa ideia de que “não há alternativa” nós desmanchamos, porque mostramos, tecnicamente, que no caso do Cais Mauá seria possível um projeto público, cultural, voltado à questão ambiental”, afirma.
Qual é a análise que o senhor faz da audiência pública realizada recentemente pelo Governo do Estado sobre o Cais Mauá?
Não haveria porque ter muita expectativa em relação à audiência específica porque essa modalidade de consulta da sociedade civil tem limites estruturais, porque é uma obrigação legal, mas ao mesmo tempo depende muito da vontade de quem está propondo a audiência, no sentido de estabelecer uma interação real, um debate, uma discussão com sentido mínimo de vínculo entre o que se faz ali e o projeto em questão. Então já sabia que esse limite, dado todo o procedimento do Governo do Estado, que demonstrou de forma reiterada uma indisponibilidade pro diálogo e pra negociação, também se apresentaria naquele momento.
Mesmo assim houve uma controvérsia grande entre alguns presentes e o representante do governo.
Apesar de toda a história anterior, de ausência de abertura democrática por parte do governo e os próprios limites estruturais de uma audiência pública, acho que se colocou outro elemento que foi o fato do representante do governo, do secretário de Parcerias, abordar o tema a partir de um pressuposto que não correspondia com a realidade. O pressuposto de um possível caráter democrático na relação do governo com todo esse processo do Cais Mauá.Isso não correspondeu, há mais de um ano, nas tentativas nossas e de organizações da sociedade civil de conversar com o Governo do Estado.
Então a postura do Governo do Estado de ter apresentado algo que nunca correspondeu com a realidade, acabou “coroando” uma posição que a gente refuta e atribui um caráter autoritário na condução que o governo deu até agora em relação ao Cais Mauá. Foi um sentimento de indignação porque ultrapassou aquilo que a gente já esperava, na medida em que o representante político do Governo do Estado quis impor uma situação que não correspondia com a realidade. Então isso criou um certo conflito, um confronto na audiência.
Vocês nunca conseguiram ter uma audiência com o governo pra apresentar o projeto do Cais Cultural?
Essa indignação foi muito no sentido de que nós tentamos. Um grupo grande de professores da UFRGS, de três departamentos e programas de pós-graduação de Sociologia, Urbanismo e escola de Administração que, junto com a comunidade cultural de Porto Alegre e o movimento em defesa do patrimônio cultural, passamos a elaborar um projeto alternativo no sentido de mostrar uma possibilidade real de implementar um projeto que não seja a da privatização dos armazéns.
Nós tentamos ainda em dezembro de 2020 uma audiência com o Governo do Estado, esse pedido foi registrado na Casa Civil, pra que a gente pudesse conversar. E a partir daquele momento houve várias outras tentativas e não houve nenhuma resposta por parte do Governo do Estado e nem da Prefeitura, que nós também solicitamos de maneira formal. Tanto o Estado como a Prefeitura nunca mostraram qualquer abertura, seja por meio da Casa Civil, do próprio gabinete do governador, ou da Secretaria Estadual da Cultura, com quem havia uma reunião marcada com a secretária de Cultura, que foi cancelada de maneira unilateral sem qualquer explicação razoável.
Detalhe do Cais Mauá com seus armazéns e guindastes (Fonte: Wikimedia Commons)
O governo também não compareceu numa audiência recente realizada pela Assembleia Legislativa…
Mais uma vez o Governo do Estado não se fez presente. O secretário de Planejamento enviou ofício dizendo que eles não se fariam presentes porque haveria uma outra audiência do próprio projeto. Uma coisa muito grave porque não se trata nem de respeito pelo nosso projeto alternativo, que mais uma vez explicamos por documentos as diferenças entre os dois projetos, o de privatização e o nosso. Esse episódio da Assembleia Legislativa acho que se tratou de um desrespeito até ao Parlamento. Então foi uma prática reiterada durante todo esse processo, desde o momento em que o Governo do Estado rompeu o contrato com o consórcio anterior, e o fez de maneira acertada, e diga-se de passagem já atrasada.
Desde aí temos iniciativas pra tentar discutir com o Governo um procedimento mais adequado pra que o conjunto da cidade estabelecesse um consenso sobre a melhor maneira de encaminhar esse processo, porque ele é importante pra Porto Alegre, diante inclusive do fracasso anterior que nos custou dez anos de atraso e de profunda deterioração dos armazéns, todo aquele grande equipamento que é histórico e importante pra cidade.
Por que o senhor acha que o governo não quer diálogo com a sociedade civil?
Me parece que é muito claro o fato de que o Governo do Estado já tinha uma política de privatização do Cais Mauá, isso já estava dado de antemão. E todo esse processo que eles acham que foi participativo, de workshops realizados pelo consórcio atual, contratado pelo BNDES, fica claro que foi muito mais pra cumprir um ritual pra aparentar abertura e participação, mas que de antemão havia a decisão de adotar a privatização do Cais. E durante esse ano se tratou de fazer os estudos do BNDES, e os workshops pra aparentar um simulacro de participação.
Diante disso, eles optaram por uma forma de condução autoritária, que é o seguinte: ‘Como nós já temos a escolha, não vamos discutir com setores que vão questionar este caminho’. Provavelmente existe receio de enfrentar o debate e dizer abertamente que o caminho é o da privatização. Por isso essa postura autoritária, de forma reiterada se negar a qualquer tipo de diálogo público. Acho que eles sabem que se for feito um debate razoável na cidade, e nós mostramos isso pelo projeto alternativo, é possível desenvolver um projeto para o Cais Mauá mantendo os armazéns e o setor do Gasômetro totalmente públicos e acessíveis.
Tivemos a intenção de apresentar um projeto que fosse viável, que não fosse só demarcar posição contra a privatização. E mostramos isso por meio de um estudo técnico, inclusive abrimos mão do terreno da docas supondo-se uma alienação, porque se a questão é orçamentária, nós provamos que sem utilizar recursos estaduais, é possível viabilizar esse projeto alienando as docas pra preservar totalmente o uso público e cultural dos armazéns e do setor do gasômetro. Não é como o Governo do Estado diz, que não há alternativa a não ser privatizar.
Conceder áreas públicas para a gestão privada tem sido o eixo central dos projetos na cidade. Qual o risco desse modelo?
Eles pensam numa ‘caixinha’, por meio desse projeto neoliberal de transformar cidades em mercadoria, numa máquina de crescimento onde a própria cidade tem que ser cada vez mais vendida. É isso que está em jogo na orla, na concessão dos espaços públicos, dos parques. Dentro da ‘caixinha’ neoliberal se entende que não há alternativa a não ser privatizar. Essa ideia de que “não há alternativa” nós desmanchamos, porque mostramos, tecnicamente, que no caso do Cais Mauá seria possível um projeto público, cultural, voltado à questão ambiental. Inclusive mostramos junto com o pessoal da arquitetura, do urbanismo, uma forma de ocupação dos armazéns.
Agora então ficou claro que se trata de uma opção ideológica, política, coerente com a ideia de urbanismo neoliberal que entende que só há saída privatizando. Essa é a questão de fundo, o governo já tinha de antemão a ideia de privatizar o Cais e isto está ocorrendo de maneira profundamente autoritária. Inclusive o governo municipal atual parece que descobriu que o mercado é a solução pra tudo. Abre o Plano Diretor para os projetos especiais, a flexibilização do Plano Diretor no projeto do Centro e do 4º Distrito, tudo baseado numa política central que é o benefício para o setor privado, como se só isso bastasse pra reformar a intervenção urbana. Algo que no mundo já é criticado, com muitas questões que demonstraram que esse tipo de projeto causa segregação sócio-espacial, concentração de renda e gentrificação.
O nosso projeto mostrou que a privatização não é a única alternativa, e que o Governo do Estado e Porto Alegre poderiam fazer um projeto que não só não iria causar segregação de público, como poderia integrar o Cais de forma muito melhor à cidade de Porto Alegre.
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‘O governo já tinha a ideia de privatizar o Cais Mauá e isto está ocorrendo de maneira autoritária’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU