05 Mai 2022
Em abril, ocorreu a primeira plenária LGBTQIA+ nos 18 anos da história do Acampamento Terra Livre, quando indígenas defenderam o direito a assumirem seus corpos-territórios contra a violência, a transfobia e o racismo.
A reportagem é de Maria Alves, publicada por Amazônia Real, 03-05-2022.
“Tire seu preconceito do meu caminho que eu quero passar com o meu cocar, que é esse cocar da sabedoria, da resistência, da paz e do amor que apenas quer lutar junto pelos nossos direitos, com as lideranças, com as nossas organizações.” A frase de Erisvan Guajajara, um dos criadores do Coletivo Tibira, uma organização LGBTQIA+ indígena, é repleta de significados e recados, mas o que ela invoca, acima de tudo, é uma força ancestral para poder quebrar a violência, a transfobia e o racismo presente dentro e fora das aldeias.
No dia 11 de abril, ocorreu a primeira plenária LGBTQIA+ nos 18 anos da história Acampamento Terra Livre, em Brasília. Erisvan Guajajara e duas dezenas de indígenas estavam lá. Sob uma vistosa bandeira LGBTQIA+ projetada ao fundo do telão, os indígenas leram o manifesto “Colorindo a vida em defesa do território”. Empunhavam, ainda, cartazes de cartolina escritos à mão com dizeres como “Os indígenas LGBTQIA+ estão nas ruas para fazer revolução”. Estavam orgulhosos de estarem lá e serem ouvidos.
O manifesto coletivo, lido durante a plenária LGBTQIA+, explicitou a importância do corpo dissidente dessa minoria, assim como a necessidade da incorporação de pautas e ampliação de iniciativas contra a transfobia e LGBTfobia nas ações e agendas do movimento indígena nacional. “O racismo é um obstáculo enfrentado pelos indígenas, isso é fato. Quando os indígenas pertencem à comunidade LGBTI+, outro marcador social, a estigmatização aumenta. O suicídio, por exemplo, é uma realidade presente entre muitos povos indígenas e entre a comunidade LGBTI+. Quando esses dois marcadores se entrelaçam, esse índice pode ser ainda maior”, enfatiza o documento “Colorindo a vida em defesa do território”.
O ATL ocorreu entre 4 a 14 de abril de 2022 e, como em edições passadas, incorporou diversas pautas do movimento indígena, desde o combate ao governo Bolsonaro, às pautas-bomba no Congresso e o lançamento de candidaturas indígenas. Ter uma plenária exclusiva para a luta dos indígenas LGBTQIA+ foi um marco e uma abertura de diálogo com as lideranças dos povos. O evento contou com a presença de Sônia Guajajara, coordenadora-geral da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), entidade organizadora do ATL.
Na plenária e no manifesto foram apresentadas ideias que clamam pela diversidade de interpretação e entendimento sobre a temática LGBTQIA+ indígena, levando em consideração as culturas e cosmovisões de cada etnia. Esse movimento evidencia a necessidade de ações de formação e diálogo dentro das próprias comunidades indígenas, permitindo que essas minorias possuam liberdade de expressão e tenham protagonismo.
“Nós, enquanto movimento social, precisamos lidar de forma ética e justa com a diversidade existente em nossos corpos-territórios. Não podemos reproduzir a lógica de deslegitimação e violência dos não indígenas com a pluralidade de nosso povo”, afirma um outro trecho do manifesto.
Historicamente, os indígenas LGBTQIA+ sofreram violências e estereótipos causados pelo projeto colonial no País do qual incide, direta e indiretamente, na reprodução das posturas e violações contemporâneas sobre as suas existências. A disposição dos movimentos indígenas em combater e discutir sexualidade colabora com esse revisionismo histórico, ou seja, potencializa as narrativas indígenas para documentar e reformular o olhar sobre a história.
O nome do Coletivo Tibira, criado em 2018, remete ao primeiro registro de caso de LGBTfobia no Brasil, documentado em estudos. Em 1614, um indígena Tupinambá, Tibira, foi “amarrado na boca de um canhão, que, com o estourar do pelouro, espalhou seu corpo pela Baía de São Marcos”, registrou o pesquisador Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia. Tibira foi assassinado e considerado o “primeiro mártir gay registrado na história do Brasil”, escreveu Mott, citando Yves D’Évreux, frade capuchinho, que produziu relatos, em seu diário Viagem ao Norte do Brasil, sobre os comportamentos dos tupinambá.
Segundo Erisvan, o movimento dos indígenas LGBTQIA+ procurou, efetivamente, estudar, trocar saberes e repensar sobre as complexidades do sistema de dominação colonial pela própria comunidade indígena. As propostas para amenizar os sintomas das violências históricas, que afetam na permanência de preconceitos, foram pensadas com o objetivo de desenvolver políticas públicas, rodas de conversa, encontros e discussões que transcendem o 18° Acampamento Terra Livre.
“Nós sempre estivemos aqui, sempre ocupamos as ruas, os territórios, as aldeias, as cidades, os movimentos. A gente nunca teve esse espaço e agora a gente está conseguindo. Com essa luta e com essa força coletiva de trazer para o movimento essas ideias novas e esse colorido que quer fortalecer cada vez mais a luta do movimento indígena”, enfatizou em entrevista à Amazônia Real.
Essa luta passa pelo reforço da importância da retomada dos espaços políticos e intelectuais. E também pelo respeito à diversidade, a fim de unificar e ampliar a discussão dentro e fora das comunidades indígenas. Para Erisvan Guajajara, a luta pela visibilidade LGBTQI+ fortalece o movimento indígena como um todo.
Essa plenária no último ATL também foi uma importante oportunidade de evidenciar a considerável participação dos indígenas LGBTQIA+ na linha de frente do movimento indígena em pautas que atingem a todos, como a demarcação de terras indígenas, a oposição ao garimpo em terras indígenas, a participação e integração dos indígenas na política e na universidade.
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“Eu quero passar com meu cocar”, defendem indígenas LGBTQIA+ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU