A maioria dos trabalhadores brasileiros está na periferia do sistema. Entrevista especial com Marilane Teixeira

"A condição de acesso ao mercado de trabalho é determinada pelo perfil socioeconômico: quanto mais pobre, maior é a dificuldade para se inserir no mercado, principalmente no caso das mulheres", informa a economista

Foto: Ricardo Wolffenbuttel | Secom - Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 30 Abril 2022

 

Entre 2020 e 2021, durante a pandemia de Covid-19, o desemprego e a precarização do trabalho, que já eram acentuados, aumentaram. Embora os empregos gerados pelas plataformas digitais nesse contexto tenham garantido renda para alguns trabalhadores, não foram suficientes para absorver a mão de obra desempregada, que ultrapassa 13 milhões de pessoas que, mesmo buscando emprego, não conseguem uma vaga no mercado de trabalho.

 

Segundo Marilane Teixeira, hoje o desemprego é mais elevado entre as mulheres e pessoas mais velhas, que sofrem os impactos das mudanças tecnológicas, porque "as plataformas digitais e os aplicativos têm um perfil de trabalhadores fundamentalmente jovens".

 

Na entrevista a seguir, concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, a economista também comenta outra situação que já era recorrente e se aprofundou durante a pandemia: o percentual de pessoas que busca emprego por mais de dois anos e não consegue ingressar no mercado de trabalho. "O maior percentual da população que está há mais de dois anos em busca de trabalho é formado por mulheres negras, que representam 30%, e mulheres brancas, que representam 29%. O percentual cai para homens brancos, em torno de 20% ou 21%. Se associarmos a condição socioeconômica dos trabalhadores, esse percentual se eleva. Além disso, a faixa etária que vai até 19 anos, tanto para mulheres quanto para homens, é elevada: em torno de quase 50%, 48% para as mulheres e 35% para os homens. Uma parte dessa população, certamente, está na faixa dos 80% mais pobres e muitos deles estão à procura de trabalho por mais tempo", relata.

 

Marilane Oliveira Teixeira (Foto: Arquivo pessoal)

 

Marilane Oliveira Teixeira é graduada em Economia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutora em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Campinas – Unicamp. É pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – CESIT, da Unicamp.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Segundo dados de pesquisa realizada pela Tendências Consultoria Integrada, 81% dos desempregados há mais de dois anos são trabalhadores pobres. Como a senhora interpreta esse cenário?

 

Marilane Teixeira - Para compreender essa realidade, precisamos primeiro caracterizar o mercado de trabalho brasileiro. Ele é historicamente muito heterogêneo e pouco estruturado. Nesse cenário, os trabalhadores têm convivido lado a lado: aqueles que têm uma condição de maior proteção, direito e formalização, e um universo de pessoas – basicamente formado por mulheres, pessoas negras e pobres – que está gravitando à margem desse sistema. Alguns estão inseridos em formas de trabalho mais formalizadas, mas, às vezes, de forma muito frágil; a maior parte está na periferia do sistema. Estão, por exemplo, trabalhando para empresas que prestam serviços para grandes empresas, especialmente na área de prestação de serviço, que cresceu muito nos anos de 1990. Outros estão no trabalho por conta própria, de modo informal e autônomo.

O setor mais estruturado e organizado em termos de sindicalização é cada vez mais uma minoria diante da maioria que se encontra nos setores informais. Dependendo das instabilidades econômicas, dos impactos das crises, das políticas de austeridade que são adotadas pelo governo, os setores informais rapidamente se retraem, causando elevado número de desocupação. Por serem, justamente, setores pouco estruturados e pouco organizados do ponto de vista sindical, seu nível de rotatividade é muito alto. Esses setores têm em comum o fato de terem sido impactos pelas mudanças tecnológicas e pelos novos padrões de desenvolvimento econômico e social. Essas mudanças geraram um tipo de atividade produtiva e um tipo de ocupação cada vez mais fragilizado, pouco estruturado, na área de serviços. Não é à toa que quando se analisa as principais ocupações exercidas no Brasil hoje, observamos que elas estão muito associadas à prestação de serviço às famílias, seja no trabalho doméstico, seja na atividade de pedreiro, de vendedor a domicílio e todas as atividades que se expandiram no último período em decorrência do aumento do uso das tecnologias, via plataformas digitais.

É nesse tipo de emprego que os desligamentos ocorrem de forma mais frequente porque é fácil substituir esse perfil de força de trabalho, que exige pouca qualificação, em um setor de baixa produtividade do ponto de vista econômico e que não tem investimentos em treinamento e qualificação profissional. Evidentemente, quem está nessas condições são justamente as pessoas pobres que tiveram pouca ou nenhuma possibilidade de acesso à qualificação ou à escolaridade que pudessem lhe dar alguma perspectiva de ascensão econômica e social.

A forma como a nossa sociedade se industrializou e se urbanizou, com um deslocamento migratório gigantesco, sem planejamento, evidentemente iria produzir um excedente estrutural enorme. Esse excedente estrutural é formado em boa parte por mulheres que, por sua vez, têm dificuldades de acessar o mercado de trabalho, e pela população negra, que foi historicamente alijada do acesso ao mercado de trabalho e emprego digno. Nós carregamos essa herança até os dias atuais. Mesmo em períodos de maior crescimento econômico, como foram os anos 2000, não se conseguiu reverter essa realidade.

 

 

IHU – A senhora faz um recorte histórico da precarização do trabalho e de como essas forças produtivas foram parar na prestação de serviços e nos trabalhos por aplicativos. Mas quem são essas pessoas que estão há dois anos sem trabalho? Não são os mesmos que formam as formas de subemprego?

 

Marilane Teixeira - Mesmo os empregos que foram gerados no processo de lenta recuperação econômica, como é o caso das plataformas, não dão conta [de absorver a mão de obra]. Do contrário, não teríamos 13 milhões de desempregados e mais um tanto de desalentados, sem falar naqueles que conseguiram trabalho, mas estão em condições de subocupação. Em geral, as pessoas desempregadas são mais velhas. Veja que, por exemplo, as plataformas digitais e os aplicativos têm um perfil de trabalhadores fundamentalmente jovens. Aliás, são jovens e homens. É importante considerar que o desemprego mais elevado se dá entre as mulheres. O número de mulheres negras desempregadas é maior do que o dobro do desemprego de um homem branco.

Como esse perfil de trabalhador está associado à baixa produtividade, as pessoas também têm mais dificuldade em conseguir se integrar em empregos que exigem um mínimo de qualificação e, ao mesmo tempo, uma conexão com as novas tecnologias. Para uma parcela da população, isso é absolutamente inviável porque não detém esse conhecimento nem tem acesso a um computador em casa ou a um aparelho de telefone celular.

 

 

Acesso ao mercado de trabalho

 

Houve uma queda mais acentuada em ocupações tradicionais, como é o caso do trabalho doméstico, por exemplo, em que se registrou uma queda de mais de um milhão entre 2019 e 2021. Em contrapartida, o que cresceu foi o trabalho por conta própria. Nessa conjuntura, outro aspecto também precisa ser compatibilizado, isto é, por qual motivo uma pessoa que está fora do mercado de trabalho há dois anos não está procurando, não está disposta a procurar ou não tem condições de procurar emprego. Entre as pessoas pobres, a condição de acesso ao mercado de trabalho é determinada pelo perfil socioeconômico: quanto mais pobre, maior é a dificuldade para se inserir no mercado, principalmente no caso das mulheres. Os dados indicam que cerca de 30% delas justificam a dificuldade de procurar emprego à ausência de políticas de cuidado, ou seja, de ter alguém que possa fazer as tarefas de trabalho doméstico. Outro percentual alto se refere ao acesso ao trabalho próximo da moradia. Em torno de 40% dos homens alegam que o problema é a ausência de trabalho na região onde residem. Dependendo do local de moradia, a pessoa não tem condições de buscar trabalho em outras localidades.

Há, portanto, uma combinação de fatores que explica o desemprego e a precarização do trabalho. De um lado, há a desestruturação das ocupações tradicionais e o crescimento de outras formas de trabalho associadas ao que alguns chamam de “era digital”, que se torna cada vez mais inacessível para uma parcela da população, principalmente a mais velha. De outro lado, há um conjunto de fatores que está ligado aos cuidados e à reprodução na vida das mulheres que não têm nem condições de buscar trabalho porque não têm acesso a políticas públicas como creches, por exemplo. Segundo dados de 2021, 70% das crianças brasileiras de zero a três anos estão fora das creches. Houve uma redução de acesso às creches de forma muito acentuada.

Ainda sobre a busca por trabalho, os dados indicam que o maior percentual da população que está há mais de dois anos em busca de trabalho é formado por mulheres negras, que representam 30%, e mulheres brancas, que representam 29%. O percentual cai para homens brancos, em torno de 20% ou 21%. Se associarmos a condição socioeconômica dos trabalhadores, esse percentual se eleva. Além disso, a faixa etária que vai até 19 anos, tanto para mulheres quanto para homens, é elevada: em torno de quase 50%, 48% para as mulheres e 35% para os homens. Uma parte dessa população, certamente, está na faixa dos 80% mais pobres e muitos deles estão à procura de trabalho por mais tempo.

 

 

IHU – O que parece mais dramático nesse dado é que muitas famílias são chefiadas por mulheres.

Marilane Teixeira – Existem dois milhões de domicílios no Brasil, segundo dados de 2019, chefiados por um único membro da família – e quase 90% desses domicílios são chefiados por mulheres que têm filhos com menos de 14 anos de idade. Dentro desse universo, 70% ou 80% delas são mulheres negras.

 

 

IHU – O quanto dessa realidade é efeito da pandemia e o quanto é fruto de uma degradação que já vinha ocorrendo?

 

Marilane Teixeira – Esses dados dizem respeito ao período da pandemia, entre 2020 e 2021. A pandemia piorou um quadro que já estava ruim. Desde 2016, o número de pessoas que está em busca de trabalho por dois anos ou mais só aumentou. É o caso, por exemplo, dos homens: o percentual de homens que está procurando emprego saltou de 16% para 21% ente 2016 e 2021. Houve um salto de 2019 a 2020 justamente por conta da pandemia, mas a taxa é crescente.

Em relação à raça, houve um salto geral de 16% para 22%: em relação às mulheres brancas, o salto foi de 22% para 28% e em relação às negras, de 26% para 30%.

 

Crises passadas

 

Quando comparamos as crises anteriores, observamos que o Brasil se recuperou de forma mais rápida e diferente de alguma delas em comparação com a de 2016, 2017. O Brasil nunca teve uma recuperação tão lenta quanto a dos últimos anos, de 2017, 2018 e 2019 em relação à crise de 2016. O crescimento naquele período foi um pouco maior de 1,2%, 1,5%. Considerando que o tombo em 2015 foi de 7,5%, a lenta recuperação de 2015 a 2017 é insuficiente para recuperar os patamares anteriores a 2015.

 

 

IHU - Por que a economia não consegue se recuperar nos patamares de 2015 diferentemente dos ciclos recessivos dos períodos anteriores?

 

Marilane Teixeira – Em parte por causa das políticas fiscais de austeridade que foram adotadas. A EC 95 foi aprovada no final de 2016 para ser implementada em 2017. A recuperação da atividade econômica dependia fundamentalmente da capacidade de o Estado investir na economia para que o investimento pudesse ser retomado. O nível de insegurança de investimento privado é muito grande porque as empresas evidentemente não investem se não têm demanda de seus bens e serviços. É o Estado que tem capacidade de retomar o nível de atividade econômica por meio da ampliação dos gastos públicos. O problema é que desde 2017 os gastos públicos estão limitados pelos próximos 20 anos. Portanto, os investimentos públicos e privados só reduziram e o investimento privado depende da ampliação dos gastos públicos de infraestrutura.

Outra possibilidade para garantir a recuperação econômica seria ter um salto tecnológico – que também não aconteceu – que motivasse as empresas privadas a investirem, mas este não é o caso. Muito pelo contrário, cada vez mais o Brasil vai se configurando como um país com um nível de insegurança muito grande em relação aos investimentos, mesmo com a aprovação da reforma trabalhista e da reforma da previdência. Além disso, cada vez mais, por conta de um ambiente internacional mais favorável, o país está ampliando a exportação de commodities agrícolas que geram pouquíssimos empregos, embora possa gerar divisas na forma de exportações e reservas cambiais, mas não tem implicações mais substantivas no nível de emprego.

 

 

Desindustrialização

 

O que acontece é que temos uma sociedade que não se recupera rapidamente, que não se recupera por meio da indústria, que seria o meio de ter mais capacidade e potencial de recuperação. Pelo contrário, a indústria recua, perde densidade industrial – ela hoje representa pouco mais de 10% do PIB, mas já representou mais de 30% nos anos 1970. Hoje, há em torno de 11 milhões de empregos na indústria e 6 milhões de empregos domésticos, ou seja, o emprego doméstico representa 50% de todo o emprego da indústria no Brasil. Essa situação gera trabalho na informalidade e trabalho precário em setores que têm baixa capacidade de multiplicação. Quando se investe nos setores industriais e se gera emprego, o aumento da produção gera renda e emprego porque tem um efeito multiplicador para o conjunto dos setores. Mas quando boa parte do emprego está voltada para o setor de serviços e para os serviços mais precários, isso não tem um efeito multiplicador sobre a economia. Tem um impacto importante, claro, sobre a renda das pessoas, até para que elas possam sobreviver, mas esta renda basicamente é canalizada e se concentra na comunidade em que as pessoas vivem. Quem ganha um salário mínimo gasta tudo com consumo na venda da esquina.

 

 

IHU – Temos que olhar com mais criticidade os dados sobre a recuperação econômica?

 

Marilane Teixeira - Exatamente. Se a economia só está gerando emprego precário e vulnerável, o trabalho por conta própria é um emprego que está inserido em uma estrutura produtiva que tem pouca capacidade de gerar um efeito multiplicador que arraste o conjunto de outros segmentos para retomar o nível da atividade econômica e do emprego de uma forma geral. Nesse contexto, crescem os setores ligados ao consumo das famílias. Uma das ocupações que mais cresceram é a de pedreiro e o trabalho na agricultura. Há aqueles pedreiros que estão associados à construção civil, que está passando por um boom, mas boa parte deles trabalha por conta própria, em pequenas obras e reparos.

 

IHU - Quais caminhos podem ser constituídos para reverter esse quadro de desemprego?

 

Marilane Teixeira - Primeiro, não é qualquer crescimento econômico de 1%, 2% ou 3% que vai nos colocar em outro patamar de emprego. Não vai ser fácil. Temos uma taxa anual de ingresso no mercado de trabalho que é relativamente alta, de 1,5 milhão de novas pessoas que entram no mercado de trabalho logo depois de completarem 15, 16, 17, 18 anos. Essas pessoas se deparam com o desemprego, que não é conjuntural, mas estrutural. Então, as taxas de crescimento econômico, dependendo do setor para onde se direcionam, necessariamente não implicam em geração de emprego. O que nós temos debatido bastante é uma ação do Estado como empregador de última instância. Não se trata de o Estado atuar de forma emergencial por meio de políticas como foi na pandemia com o Auxílio Emergencial; é mais do que isto. Temos discutido a possibilidade de criar empregos úteis e essenciais para a existência da sociedade na área da saúde, da educação, da assistência, de cuidados etc. O Estado, evidentemente, em articulação com os estados e municípios, com todos os entes federativos, atuaria no sentido de reduzir o volume de pessoas que compõem esse excedente estrutural de força de trabalho. Como temos esse excedente, as empresas podem pagar qualquer salário e contratar muitos trabalhadores informalmente, como autônomos, como terceirizados, PJs, porque as pessoas se submetem, assim como se submetem a receber qualquer renda porque se deparam com o problema da sobrevivência.

 

 

IHU – Neste particular, há espaço para a discussão sobre uma renda básica universal?

 

Marilane Teixeira - Sim, mas não é somente de uma renda básica que necessitamos. Não podemos criar ou estimular uma sociedade cindida entre quem vai ter emprego e quem nunca vai ter acesso ao emprego e, portanto, está condenado a viver de um auxílio do governo ou de uma renda básica para o resto da vida. Não é este o modelo de sociedade que queremos.

Claro que tem uma certa preocupação em relação a assegurar que todas as pessoas tenham acesso a uma renda e isso é muito digno e correto, mas temos que ir além disso. Temos que promover uma sociedade em que as pessoas tenham acesso ao trabalho. As pessoas têm o direito e a oportunidade de desenvolver uma habilidade, um conhecimento, uma técnica, uma vocação que elas têm. Não tem sentido elas terem que abrir mão disso porque elas nunca vão ter chances de acessar o mercado de trabalho. O que propomos é ir além.

Propomos primeiramente que o Estado faça parcerias com a sociedade civil e gere empregos em setores que são úteis para a sociedade. Tem uma série de trabalhos que estão relacionados com o bem-estar da comunidade, desde a poda de árvores até serviços de cuidados, com salário, com jornada de trabalho, com direito à proteção social, que tem de ser assegurada para todos, independentemente da sua condição. Essa dinâmica cria renda, cria emprego e produz uma economia de demanda efetiva. Ou seja, as pessoas vão poder adquirir bens e serviços que serão ofertados pelas empresas, que terão que ampliar sua capacidade de produção para oferecer os bens e serviços. Essas empresas vão passar a gerar emprego e as pessoas vão poder se deslocar dos trabalhos informais para o mercado de trabalho, em condições mais favoráveis. Essa deveria ser uma política permanente e não para períodos cíclicos.

 

Debate social

 

A pergunta é a seguinte: de onde tirar dinheiro para essa política? A receita e a capacidade de conseguir ampliar a arrecadação para estimular esse tipo de política passa pelo debate que precisamos fazer em relação à reforma tributária e ao que consideramos como essencial. Por exemplo, para onde devem ser destinados os recursos em termos de políticas públicas? O Estado gasta bilhões por ano em subvenções, incentivos, estímulos, isenções fiscais, desonerações para as empresas. Esse recurso poderia ser mais útil se fosse direcionado para sustentar uma política pública de forma permanente.

Como vai se dar esses arranjos? Por meio das comunidades, com iniciativas da própria sociedade civil e das empresas. Pode ser. Esse é um desenho que precisa ser concluído, mas ele precisa ser lançado em áreas importantes. Dei alguns exemplos, que são os mais triviais, mas temos uma infinidade de possibilidades na agroecologia, em relação às energias renováveis etc. Temos um campo de possibilidades para explorar formas de trabalho que a iniciativa privada não faz porque não interessa, porque não lhe assegura rentabilidade suficiente sobre o investimento. Então, não se trata de criar empregos úteis e desqualificados, mas empregos com elevado nível de potencial de desenvolvimento e de alternativas de sobrevivência.

 

Novas possibilidades de trabalho

 

Então, não se trata apenas de instituir uma renda mínima. Adotar a renda mínima é condenar uma parte das pessoas à ideia de que elas nunca vão poder desenvolver habilidades suficientes para poder atuar em um trabalho que seja útil para a sociedade e para elas próprias, porque não se trata apenas de desenvolver um trabalho útil para a sociedade como se as pessoas não tivessem sonhos, desejos e vontade própria. Esses trabalhos podem ser úteis para a sociedade, mas também podem ter um potencial criativo.

Hoje, os jovens que estão saindo do ensino médio vão direto para o mercado de trabalho trabalhar para empresas de aplicativos, para o comércio. Muitos não têm sequer o sonho de entrar em uma universidade porque acham que nunca vão conseguir se aprovados. Temos de ter possibilidade de atuar sobre esses jovens e sobre aqueles que estão saindo das universidades. Os dados mostram que a maior parte dos jovens que está saindo da universidade hoje não está conseguindo ingressar em ocupações compatíveis com as que desenvolveu ao longo de quatro ou cinco anos dentro das universidades. Várias áreas têm capacidade de incorporar esses jovens, mas isso depende de iniciativas do Estado e de políticas públicas.

Não é uma tarefa fácil e não se trata de retomar o nível de atividade econômica e gerar empregos. Não é simples. Isso vai exigir um esforço grande de associar iniciativas com as universidades, os centros de pesquisa, com a iniciativa privada, com o Estado, com todos os entes federativos, para que seja possível reverter esse quadro. Mais: é preciso de um processo de convencimento político, porque para os setores empregadores é fácil manter a situação como está, por exemplo, porque há mão de obra abundante.

 

 

IHU – Na conjuntura atual, a sociedade está disposta a abrir mão de uma redução de Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI e de uma grande oferta de mão de obra para pensar a longo prazo? Como convencer a sociedade?

 

Marilane Teixeira - Trata-se de convencimento. É preciso criar uma coesão de vários setores. Hoje, uma parcela dos empresários tem mais clareza sobre os erros políticos cometidos nos anos anteriores. A ilusão de que as medidas de austeridade e de que um perfil de governo mais liberal criaria um ambiente para a iniciativa privada poder se movimentar mais livremente, passou. Isso pode funcionar para a empresa individualmente, no nível micro, no sentido de pagar salários menores para os trabalhadores e, portanto, garantir flexibilizações de trabalho, aumentando a taxa de lucro. O problema é que do ponto de vista da economia de forma mais geral, agregada e macroeconômica, não é assim que funciona porque a economia se movimenta somando um conjunto de fatores: emprego, produção, renda, consumo. Se não tem renda, não tem consumo e não tem produção, e se não tem produção, não tem investimento. Por isso as entidades nacionais e empregadoras, que consideram o conjunto da dinâmica econômica, têm um papel importante.

A realidade hoje é que as empresas estão indo para o exterior depois de fazer cálculos concretos, porque permanecer no país nas atuais condições não compensa. Elas preferem produzir em outro país e exportar para o nosso e, nesse sentido, o Brasil se torna um país importador, porque o consumo e a renda estão estagnados. Por conta disso, não tem mercado para ampliar determinados produtos e serviços e, evidentemente, só é possível romper com essa dinâmica se for realizado um processo de ampliação da capacidade de produção da renda e do emprego. Isso terá um impacto no consumo e na demanda agregada.

As empresas sabem que as pessoas precisam de renda e de crédito para consumir bens e serviços – e de preferência um crédito barato para que elas possam financiar as suas compras assim como as empresas financiam os seus investimentos. Então, para as empresas, interessa uma economia de taxas de juros baixas, um Estado indutor do crescimento econômico, que seja capaz de organizar a demanda em relação a bens e serviços na área de infraestrutura, na compra de máquinas e equipamentos, a fim de ampliar a formação de capital. É um processo de convencimento que depende da sociedade civil organizada e da sua capacidade de fazer pressão social. Para isso, evidentemente, precisamos de outro governo.

 

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