"Jesus vive! No meio do povo, no meio das mulheres, no meio das crianças, na páscoa da vida, do cotidiano, das inúmeras passagens dolorosas que precisamos fazer diariamente nesse mundo."
A reflexão é de Perla Cabral Duarte Doneda. Ela é mestra em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, graduada em Teologia pelo Centro Universitário Claretiano-Batatais, bacharel em Ciências Religiosas pela PUC Campinas e, atualmente, doutoranda em Ciências da Religião na UMESP, bolsista Capes/Prosuc. É integrante do Grupo de Pesquisa Religião e Vida Cotidiana na UMESP e assosciada da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião - SOTER.
1ª Leitura - At 10,34a.37-43
Salmo - Sl 117,1-2.16ab-17.22-23 (R.24)
2ª Leitura - Cl 3,1-4
Evangelho - Jo 20,1-9
Estamos no final de semana mais importante da liturgia cristã católica, a Semana da Páscoa de Jesus Cristo. Os textos bíblicos de hoje referem-se à liturgia do Domingo de Páscoa. Irei conversar com vocês, mais especificamente sobre o Evangelho de João, com enfoque especial na presença das mulheres no movimento de Jesus.
É importante ressaltar aqui que, “no judaísmo, a mulher vivia numa posição de marginalidade que não dizia respeito somente a questão social e moral, mas atingia também o aspecto religioso. Alguns rabinos chegavam aos extremos de afirmar que as mulheres não tinham alma. Não era permitido que as mulheres estudassem a lei. Não tinham permissão de tomar parte ativa nos cultos religiosos dos judeus ” (Pinto & Artuso, 2013 p. 3-4), bem como estavam submetidas aos homens que delas tomavam posse. Essa posse sobre seus corpos era outorgada pela lei do decálogo, que dizia ter Deus proibido a cobiça em relação a casa, o servo e a serva, o boi, o jumento, ou qualquer coisa de seu próximo, o que incluía a mulher. A interpretação dessa passagem do decálogo recaiu sobre a mulher como sendo algo material, um bem de família, ou seja, uma propriedade do homem, primeiramente, do pai e depois do marido. Infelizmente, essa interpretação chega até os dias de hoje. Homens acham que são donos das mulheres ou que podem fazer delas o que quiserem.
Os cristãos joaninos são representados pelo Discípulo Amado e estes se consideram mais próximos de Jesus e mais perceptivos do que os cristãos da Igreja dos Apóstolos. Portanto, havia conflitos entre as comunidades de Lucas, Mateus e Marcos, além das disputas pelo espaço que as mulheres ganharam com a acolhida de Jesus no seu movimento. As mulheres participavam como discípulas e, assim como os homens, tinham uma missão de evangelizar. Faço essa introdução, justamente porque pretendo dar enfoque no valor das mulheres para Jesus. Ou seja, no valor das mulheres nesse tempo pascal, mas não só, e sim, no valor que Jesus confere a elas na sua passagem pessoal de ressuscitado, solicitando que comunicassem esse evento.
Nos evangelhos de Marcos, Matheus e Lucas a presença das mulheres é plural, não é só Maria Madalena que é relatada na visita ao sepulcro de Jesus, são as mulheres que vão ao sepulcro. Entretanto, Marcos garante que Jesus teria aparecido primeiro a Maria Madalena (Mc 16,9-11) – mas que os discípulos não creram nela. Apesar dos desfechos serem um pouco diferentes em cada evangelista, vale ressaltar que todos concordam que as mulheres estavam lá, pois todos os evangelistas atestam isso. Se estavam lá é porque tinham intimidade com Jesus, tinham uma responsabilidade com o movimento do nazareno, amavam o Mestre e se sentiam chamadas/comprometidas a irem ao encontro, mesmo na aparente derrota.
O que temos em João que diferencia significativamente dos demais não é somente o fato de ser só Maria Madalena que teria ido ao sepulcro, mas o fato que não teria entrado de imediato e sim que teria corrido para avisar os discípulos e então Pedro e um outro discípulo teriam saído correndo para conferir, porém esse outro discípulo teria sido mais rápido, o que fez com que chegasse primeiro na porta do sepulcro vazio. No entanto não entra. Quem entra primeiro é Pedro, segundo o evangelho de João. Notemos que há aqui, nessa narrativa, uma certa competição masculina para ver qual dos dois chegaria primeiro ao sepulcro vazio e qual seria então o primeiro a testemunhar esse episódio. Outro ponto interessante a destacar que não existe nos outros três evangelistas, refere-se a narrativa rigorosa joanina ao descrever como esses dois discípulos flagraram a cena do sepulcro vazio. A descrição de como estavam os tecidos, o linho, o sudário. Há um rigor ao dizer sobre o espaço (liturgia) em que Jesus estava.
Para uma Igreja nascente, talvez, a imagem simbólica a ser construir fosse importante para garantir a veracidade dos fatos. No entanto, hoje, nós mulheres teólogas, concordaríamos em repetir o trecho do versículo 9 para reafirmar: “pois ainda não tinham compreendido que, conforme a Escritura, ele devia ressuscitar dos mortos”. Ou seja, com a atitude dos dois homens, reafirmaríamos que ainda não tinham compreendido a mensagem, uma vez que parece valer ou garantir mais, as provas de quem viu primeiro e o que viu, do que dizer que ele não estava mais naquele lugar, crer e anunciar. Coisa que às mulheres é narrado diferente. Houve uma maior compreensão do que aquilo significou à Igreja nascente, parece ter feito mais sentido às mulheres, especialmente, à Maria Madalena. Por isso, a experiência particular dela, do ressuscitado e o convite para anunciar aos discípulos que estava vivo.
Interessa colocar aqui, que ao Discípulo Amado foi importante deixar essa narrativa da disputa masculina com Maria Madalena de quem viu primeiro ou não e, de quem poderia narrar os detalhes de como estava o ambiente. Ainda assim, o autor do evangelho de João, nos versículos de 11-18 retoma a importância de Maria Madalena na Igreja nascente e vai garantir que teria sido ela a ver anjos e depois reconhecer o Mestre (Rabbuni), tanto que, o Mestre lhe pede para que não toque nele, pois não teria subido ao Pai. Diante de uma leitura atenta do evangelho de hoje e de uma comparação com os demais evangelistas é possível dizer que há uma disputa na ordem ou grau de valores entre os discípulos e Maria Madalena (mulher). Esse valor determinaria o grau de participação no futuro do movimento de Jesus. Portanto, houve entre os discípulos, no caso mais específico, dos homens, uma disputa de qual discípulo ocuparia a posição de mais confiável ou apto para propagar a mensagem cristã.
Hoje, como podemos atualizar essa leitura? Se a Páscoa é a passagem de um modo de viver para uma nova proposta de pensar e viver a vida em comunidade e se, os cristãos creem que teria sido Jesus, com seu nascimento, vida, morte e ressurreição o autor dessa nova passagem/mensagem de vida e, vida em abundância (Jo, 10,10), nós mulheres, hoje, diante do sepulcro vazio, podemos dizer que a Igreja de Pedro ainda não entendeu o recado de Jesus. Ainda não entendeu que pedra ele quis realmente rolar.
As mulheres seguem dizendo que “rolaram a pedra”, que compreenderam isso e estão tentando, ainda hoje, escrever nas entrelinhas do que diz os clérigos da Igreja Católica, assim como foram postas no passado, nas entrelinhas dos textos bíblicos e que, hoje querem seguir anunciando que Jesus ressuscitou. Mesmo que o Papa Francisco tenha dado mostras de que as mulheres podem e devem ocupar alguns espaços que só homens ocupam, ou seja, que são capazes de remover “pedras” na história cristã e de realizarem mudanças importantes, há um grande desafio pela frente, pois o clericalismo é uma enorme barreira para que estas sejam vistas e consideradas. Há também um corporativismo político por parte dos clérigos mais conservadores da Igreja que, somados a teologia tradicional androcêntrica, insiste em se fecharem às mulheres.
O magistério da Igreja insiste em perpetrar tais visões fechadas, figuram, correlatamente, a mesma disputa da corrida de quem quer sempre chegar primeiro, estar no primeiro lugar, ter a razão total sobre tudo e todos, de quem é que vê ou mantém um sistema hierárquico de poderes. Se Maria Madalena, na leitura de hoje pudesse dizer algo novamente, insistiria: ele ressuscitou, não está aí nessa estrutura/sistema, dentro, preso, doutrinado, domesticado pelas interpretações de uns magistrados conservadores.
Jesus vive! No meio do povo, no meio das mulheres, no meio das crianças, na páscoa da vida, do cotidiano, das inúmeras passagens dolorosas que precisamos fazer diariamente nesse mundo. Não no mundo dos poderosos, que insistem em descrever a cena das suas verdades, dos seus objetos de poder, dos seus símbolos de dominação e subalternização dos outros e outras. Dos poderosos que insistem em governar Estados e Nações sob o slogan de serem do bem, de serem de Jesus, mas na verdade são da morte, das armas, das guerras, das violências contra mulheres e crianças. A imagem do sofrimento de Jesus na cruz e no sepulcro não quer ser uma cena fixa no sudário do sepulcro, mas uma lembrança de que, o sofrimento causado pelos poderosos, crucificam inocentes, deixam marcas e feridas nos corpos e na alma das pessoas não na superficialidade de “tecidos”. E ai dos padres e bispos que apoiam genocidas!
A disputa por poderes, posições de destaques e lugares de honra não são de Jesus. Logo: Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos! Diz o salmista. Dia que devemos passar de um estágio para o outro. Superar os equívocos, as fraquezas e os pecados cometidos com os injustiçados do mundo. A mensagem pascal de Jesus é para alegrar a todas e todos. Somos convidadas/os a celebrar a vida, a igualdade, o amor, o respeito, a compaixão e a diversidade de pessoas e dons. Esforcemo-nos para alcançar as coisas de baixo, parafraseando Colossenses, que é onde mora a simplicidade do amor de Jesus, nas coisas terrenas, nas situações concretas, ou seja, na vida vivida, onde há a fome dos irmãos e irmãs, onde há dor das vidas ceifadas, dos corpos violentados pelo abuso sexual, das mortes pelas guerras, pela exploração do trabalho e tantos outros mecanismos de marginalização e exploração da/o outra/o.
Esforcemo-nos para ouvir o grito da Natureza que geme, crucificada pelas mãos gananciosas dos homens do poder, cujo senhor é o sistema capitalista.
Por fim, se queremos celebrar a Páscoa do Senhor Jesus, devemos repensar as atitudes competitivas, o desprezo pelas mulheres, fora da Igreja e especialmente, dentro dela. Devemos rolar as “pedras” juntos, como iguais. Comungar de Jesus nesse domingo só fará sentido se nos esforçarmos para entender essa Páscoa do Senhor Jesus, como ela se apresentou e não a páscoa que a humanidade tem insistido em perpetuar pelos séculos e séculos. Um rito solene, mas repetitivo e quase nada concreto!