11 Abril 2022
A jornada é exaustiva; o descanso proibido. Salário baixo e sindicato suspeito. No primeiro emprego, muitos desses jovens não conhecem seus direitos e acabam enredados em contratos abusivos e ilegais. Questionadas, corporações culpam as franquias.
A reportagem é de Marcos Hermanson Pomar, publicada por O Joio e o Trigo, 01-04-2022.
Trabalhadores do ramo de fast food na cidade de São Paulo realizam jornadas de até quatorze horas, são proibidos de sentar durante o expediente e passam até seis horas no transporte público diariamente.
Eles trabalham no regime “6×1” – ou seja, folgam um dia da semana e ganham um domingo de descanso por mês – e se revezam em todas as funções dentro das lojas. A imensa maioria desses trabalhadores é jovem, mora na periferia e está no emprego há poucos meses. Muitos estão nos seus primeiros trabalhos e têm pouco conhecimento sobre direitos trabalhistas. Alguns relatam relações difíceis com as chefias e com clientes “ignorantes”. Abundam reclamações sobre os salários e a exaustão provocada pelo trabalho.
Foi o que O Joio e o Trigo descobriu depois de duas semanas visitando unidades do McDonald’s, do Ragazzo e do Subway – três das maiores redes de fast food presentes na capital paulista e no país. Nesse período, entrevistamos duas dezenas de funcionários e ex-funcionários do setor.
Procurado, o Grupo Habib’s, dono da rede Ragazzo, afirmou que atua dentro da legislação trabalhista vigente e que está apurando internamente as denúncias realizadas pela reportagem. Já a Arcos Dorados, operadora do McDonald’s no Brasil, afirmou que os casos publicados na reportagem não condizem com as políticas e valores da companhia e que iniciou uma rigorosa apuração para esclarecê-los. A assessoria de imprensa do Subway foi procurada, mas não respondeu os questionamentos até o fechamento da reportagem.
“Fast food é escravidão, não tem jeito”, resume Alice*, gerente do Ragazzo que está há 10 anos no ramo, com passagens por McDonald’s e Giraffas.
Ela trabalha de dez a onze horas por dia, transitando entre o quiosque apertado de uma estação de Metrô, onde frita coxinhas e prepara sorvetes de casquinha, e sua casa, onde realiza funções administrativas para a empresa. “É muito exaustivo. Eu mesmo tenho dois esporões nos pés de tanto ficar em pé”, diz ela, explicando que os funcionários não podem sentar durante o expediente. “Às vezes o funcionário se encosta em algum lugar ou senta na lixeira escondido, mas é proibido.”
As histórias se repetem em outras redes. A funcionária de um quiosque do McDonald’s na Zona Sul de São Paulo aponta para uma lixeira branca dentro do seu quiosque e diz que às vezes senta ali, escondida: “O problema é que uma vez pegaram na câmera e me deram bronca.”
Não muito distante dali, Luisa, funcionária de uma lanchonete do Subway, diz que os funcionários são expressamente proibidos de sentar durante o expediente: “Se sentar é só quando for escrever nas embalagens [que saem para entrega]”, explica.
A prática corrente nas redes de fast food é o revezamento total de funções, o que também dificulta qualquer momento de descanso. Mesmo quando não há clientes na loja, os trabalhadores são alocados em funções de bastidores, como estocagem ou limpeza. “A gente lava o banheiro, limpa o chão, entrega bandeja, fica na chapa, na batata frita”, explica Karina, funcionária de um McDonald’s da Zona Sul ouvida pela reportagem. “É muito trabalho pra pouco salário.”
O advogado trabalhista Fábio Melman entende a proibição de sentar durante o expediente como um abuso de poder da empresa: “Não atrapalharia em nada a jornada de trabalho do trabalhador”, diz ele. “É uma norma que não faz sentido.” Ele comenta que a rotação de funções também causa problemas de insalubridade, que geralmente não são reconhecidos ou remunerados pelas empresas.
“O funcionário faz desde a limpeza do banheiro e remoção do lixo da loja até o trabalho de adentrar a câmara fria pra fazer estoque, mexer na fritadeira, mexer no forno”, argumenta. “Isso expõe ele ao contato com produtos químicos e agentes biológicos e variações muito bruscas de temperatura.”
Em nota, a Arcos Dorados afirmou que respeita a legislação vigente e que todos os seus funcionários “usufruem de seus momentos de descanso de forma organizada, de acordo com suas posições e escala de trabalho”.
“Eu gosto, mas a gente trabalha muito e é pouco valorizado em todos os sentidos, começando pelo salário”, diz Vitória, 19, atendente em um McDonald’s próximo ao Parque Ibirapuera. É o primeiro emprego. Pelo trabalho de 160 horas mensais, ela firmou um contrato com a Arcos Dorados que prevê o pagamento de R$ 800. No final do mês, após os descontos, sobram de R$ 650 a 700.
No intervalo do trabalho, do lado de fora do restaurante, os colegas de Vitória confirmam remuneração parecida, entre R$ 600 e 700, algo repetido por funcionários de outras unidades da rede.
Procurada, a Arcos Dorados afirmou que respeita e cumpre a legislação trabalhista e Convenções Coletivas de Trabalho, honrando com todas as cargas tributárias de sua folha de pagamento.
Camila, 18 anos, está treinando para ser “líder” no Ragazzo. Ela diz que roda várias unidades da sua região cobrindo faltas de outros funcionários. A jornada de trabalho vai das 8h às 22h. “Na carteira são R$ 900, mas chego a tirar R$ 1.600 com as horas extras”, conta ela, que diz ter sido contratada como funcionária de meio período. “É um trabalho muito bom”.
Outras duas funcionárias da rede ouvidas pela reportagem confirmaram já ter praticado jornadas igualmente longas. No dia da entrevista, uma delas ficaria de plantão por 13 horas para cobrir a falta de um colega.
O Artigo 59 da CLT define que os empregados não poderão realizar mais de duas horas extras de trabalho por dia, ao passo que a Convenção Coletiva da categoria traz regra semelhante, vetando jornadas diárias maiores do que dez horas.
“Elas teriam direito a uma indenização por danos morais pelo caráter exaustivo da jornada”, comenta Melman. “Essa pessoa fica 14 horas no trabalho, mais uma ou duas horas no transporte coletivo para chegar em casa, e acaba perdendo todo o convívio social e familiar.”
Em um contrato de trabalho obtido pela reportagem, os trabalhadores do McDonald’s se comprometem a nunca recusar a realização de horas extras.
A última convenção coletiva assinada entre o Sindifast, entidade que representa os empregados de redes de fast food na cidade de São Paulo, e o sindicato patronal, o Sindresbar, em dezembro de 2021, traz uma série de vantagens às empresas do ramo.
O contrato permite que as empresas paguem 75% do piso salarial da categoria, cortem pela metade a duração dos horários de descanso, o valor do adicional noturno e as horas extras – desde que forneçam ajuda-alimentação de 130 reais aos seus funcionários.
A convenção traz ainda duas cláusulas irregulares. Uma primeira estipula que os trabalhadores só poderão cancelar a contribuição sindical em até dez dias após o início da vigência da norma – o que vai de encontro ao Artigo 611-B, da CLT, que determina que o trabalhador deve dar consentimento prévio à dedução do valor.
Já a segunda entende que não é fraudulenta a demissão e a recontratação de funcionários, por salário menor, em menos de 90 dias, ferindo o Artigo 468, que veda a diminuição salarial.
“É uma cláusula abusiva”, opina o advogado Fábio Melmam. “Você está se utilizando da norma coletiva para praticar um ato inconstitucional, que é a redução do salário.”
Em 2008, a revista Época publicou uma longa reportagem mostrando o aumento do patrimônio do fundador do Sindifast, entidade que representa a categoria na capital paulista. O sindicalista Ataíde Francisco de Morais teria amealhado imóveis de luxo e até uma pousada avaliada, na época, em R$ 1,5 milhão, na cidade de Fortaleza.
Os repórteres Ricardo Mendonça e Beto Almeida mostraram ainda que Ataíde fundou uma série de outros sindicatos de representação da mesma categoria pelo Brasil, sempre colocando parentes nos cargos de presidência. Desde a época da publicação da matéria, o presidente do sindicato é o filho dele, Ataíde Morais Júnior, apresentado no site da entidade como funcionário licenciado do McDonald’s.
O Sindifast foi procurado por e-mail e telefone pela reportagem, mas não respondeu aos nossos pedidos de entrevista.
Todos os trabalhadores ouvidos pela reportagem são moradores da periferia da capital. Além do trabalho exaustivo, eles têm que encarar longas jornadas para chegar no centro expandido da cidade, onde se concentra a maior parte das unidades de redes de fast food.
Quando conversamos com Robson, garoto de 17 anos morador de Parelheiros, ele e a colega Raíssa, um ano mais velha, cuidavam sozinhos de uma unidade do Subway na Zona Sul. Ambos cursam o Ensino Médio.
Robson e Raíssa dizem ter firmado um contrato de estágio diretamente com o Subway, sem mediação de terceiros, pelo qual recebem R$ 700 mensais. Eles trabalham sete horas por dia e têm direito a uma folga por semana.
De acordo com a Lei do Estágio, os contratos de estágio podem ser feitos diretamente com o tomador do serviços, mas têm que contar com uma parte interveniente – no caso, a escola de Robson e Raíssa, que seria responsável por fiscalizar a realização do estágio. “Se foi feito apenas com o Subway esse contrato é nulo”, explica Fábio Melman. “Porque aí na verdade ele seria um empregado mascarado de estagiário. O contrato é para aprender, não só para trabalhar.”
Robson e Larissa gastam cinco horas no trânsito todos os dias, entre idas e vindas do trabalho. Conciliam a posição no Subway com os estudos, feitos durante a noite. Não sobra tempo pra quase nada. Já Alice, a gerente do Ragazzo, é moradora da região de Embu das Artes. São três horas de transporte público diariamente, além das dez que ela passa trabalhando.
Beatriz, a empregada do McDonald’s que senta escondida na lixeira da cabine de sobremesas para descansar, diz que leva mais de seis horas por dia em deslocamento indo e vindo do trabalho.
O tempo, claro, não é remunerado. E o vale-transporte não está sendo pago há dois meses por problemas burocráticos.
Os nomes foram trocados para preservar as fontes da matéria. Veja aqui a íntegra das respostas da Arcos Dorados e do Grupo Habib’s.
A Subway enviou hoje, 4 de abril, três dias após a publicação desta reportagem, a seguinte nota:
“A Subway informa que tomou conhecimento dos relatos apontados na reportagem de O Joio e O Trigo no dia primeiro de abril de 2022. Nós gostaríamos de esclarecer que os casos denunciados não estão em acordo com as políticas e valores da companhia. A Subway acredita que cada empregado deve ser tratado com dignidade e respeito, e isso inclui um equilíbrio apropriado entre vida pessoal e profissional. Nós nos orgulhamos de promover um ambiente de trabalho seguro, acolhedor e positivo e encorajamos nossos franqueados a seguirem as melhores práticas do segmento na contratação e gerenciamento dos seus empregados.
É importante ressaltar que nenhum contrato de trabalho entre os restaurantes e os colaboradores é assinado diretamente pela Subway, mas sim pelos franqueados proprietários de cada restaurante. Além disso, nós sempre sugerimos aos nossos franqueados que as contratações sejam feitas de acordo com as leis trabalhistas e sigam todas as regras impostas pela legislação vigente, como o trabalho em escalas 6×1 e 12×36.
Se a reportagem puder nos fornecer a localização dos restaurantes mencionados no texto, nós conduziremos uma investigação interna para garantir que as melhores práticas citadas acima sejam implementadas também nos restaurantes em questão.”
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Uma folga por semana, proibição de descansar e jornadas de até quatorze horas: a vida dos trabalhadores de fast food na cidade de SP - Instituto Humanitas Unisinos - IHU