05 Abril 2022
"Talvez um controle completo do discurso, ponto a ponto, poderia reservar muitas outras surpresas. Mas a verificação em uma única frase já é muito significativa por si só. E levanta uma questão que pode ser abordada não apenas com os instrumentos da filologia, mas também com aqueles da eclesiologia e da teologia", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 04-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há algum tempo venho apontando que no site oficial "Vatican.va" existem graves incongruências, que mereceriam maior atenção. Em outro caso documentei um gravíssimo erro de tradução no texto da Sacrosanctum Concilium, que algumas versões (inglês e português) chegam a apresentar em uma variante "não aprovada" pelo voto dos padres conciliares (sobre "como mal interpretar a participação ativa").
Hoje, porém, me deparei com outra surpresa que oferece o texto eletrônico da alocução com que João XXIII abriu o Concílio Vaticano II: Gaudet Mater Ecclesia. Tendo lido os estudos de Alberigo, Melloni e Ruggieri, eu sabia que o texto oficial do discurso recebeu diferentes edições e que o texto latino foi então assumido como "versão oficial", mas diferente da versão original escrita pessoalmente por João XXIII. Uma edição crítica do discurso, editada por A. Melloni está disponível no volume G. Alberigo -A. Melloni (org.) Fede tradizione profezia: Studi su Giovanii XXIII e sul Vaticano II (Testi e ricerche di Scienze religiose, 21), Brescia, Paideia, 1984.
Mas a surpresa foi uma consulta no site “vatican.va”. A consulta diz respeito a apenas uma passagem, uma única frase, que é, no entanto, um dos pontos-chave do discurso, ou seja, a definição do caráter pastoral que caracteriza o Concílio Vaticano II. Conhecendo as versões em latim e italiano, presumi que todas as outras versões em línguas faladas fossem traduções do latim oficial. Mas não é assim. Apenas 4 versões estão disponíveis no site (ES, IT, LA e PT). Se examinarmos a tradução de uma mesma frase, descobrimos que ela é traduzida de 3 maneiras substancialmente diferentes, que pressupõem a presença de um texto oculto, aqui ausente, mas que, no entanto, é o texto original. Aqui estão as 4 versões, apresentando primeiro a "versão original", retirada do texto de A. Melloni:
a) Versão original italiana:
“Altra è infatti la sostanza dell’antica dottrina del depositum fidei, altra la formulazione del suo rivestimento”.
b) Versão oficial em latim:
"Est enim aliud ipsum depositum Fidei, seu veritates, quae veneranda doctrina nostra continentur, aliud modus, quo eaedem enuntiantur, eodem tamen sensu edemque sententia".
c) Versão italiana traduzida do latim:
“Altro è infatti il deposito della Fede, cioè le verità che sono contenute nella nostra veneranda dottrina, altro è il modo con il quale esse sono annunziate, sempre però nello stesso senso e nella stessa accezione”.
d) Versão em espanhol:
“Una cosa es la substancia de la antigua doctrina, del ”depositum fidei”, y otra la manera de formular su expresión”.
e) versão em português:
“Uma coisa é a substância do ‘depositum fidei’, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance".
Esta consideração sinótica dos 5 textos impõe uma série de breves considerações:
a) É evidente que a versão “oficial” em latim não é a única fonte das traduções. O termo "substância", que parece ser um termo decisivo, usado por João XXIII no texto original em um significado não habitual, aparece claramente no texto português (no mais uma tradução literal do latim), enquanto a versão espanhola indica claramente uma fonte distinta do texto em latim.
b) A versão italiana é, paradoxalmente, a única literalmente traduzida do latim, sem traços do texto original, escrito em italiano pelo papa, que transparece claramente do espanhol e do português.
c) As três variantes indicam a falta de um critério uniforme para o tratamento do texto, que oscila entre versão oficial e versão original.
A história deste texto inaugural do Concílio, já complexa no momento de sua difusão na sala de imprensa no mesmo dia em que o discurso foi proferido, parece ser atestada de forma singular pelo ditado complexo do site vatican.va, no qual é possível encontrar em quatro línguas três versões diferentes do texto.
Talvez um controle completo do discurso, ponto a ponto, poderia reservar muitas outras surpresas. Mas a verificação em uma única frase já é muito significativa por si só. E levanta uma questão que pode ser abordada não apenas com os instrumentos da filologia, mas também com aqueles da eclesiologia e da teologia.
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A abertura do Vaticano II e o “discurso fantasma” de João XXIII. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU