O especialista lamenta: “particularmente, me sinto completamente incomodado de parar em um posto de gasolina e ser subsidiado pelo contribuinte brasileiro que não tem carro”
A semana começou quente em Brasília. Enquanto o agora ex-ministro da Educação Milton Ribeiro deixava o Planalto sob denúncias de corrupção, o governo atendia a uma ode e demitia também o presidente da Petrobras, o general Joaquim Silva e Luna. Mas este não por suspeitas de corrupção, e sim por não aceitar os subsídios que o governo planeja para amortecer o aumento do preço dos combustíveis. Em seu lugar entra o economista Adriano Pires, que se alinha com essa ideia.
Toda essa discussão acerca dos combustíveis e da Petrobras que aqueceu o noticiário não passa de uma cortina de fumaça, sem chegar nas questões estruturais. Ao menos é o que indica o especialista da área de energia David Zylbersztajn. Para ele, essa medida dos subsídios não só não resolve o problema do alto preço dos combustíveis como ainda cria outros. “Se fosse simples resolver essa questão, primeiro teríamos que estabelecer uma escala de prioridades. O que está acontecendo com os combustíveis está acontecendo também com os alimentos, com o gás de cozinha, de modo mais específico, há algum tempo, com as passagens dos ônibus urbanos, trens e metrôs”, contextualiza.
Na conversa que teve essa semana com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU através do Zoom, Zylbersztajn foi enfático: “particularmente, me sinto completamente incomodado de parar em um posto de gasolina e ser subsidiado pelo contribuinte brasileiro que não tem carro. Além de não terem carro, muitos não têm comida nem casa ou estão vivendo em uma situação péssima. Por que o contribuinte brasileiro tem que me subsidiar como consumidor?”.
Para o especialista do setor de energia, não se pode perder de vista que a Petrobras é uma empresa de economia mista e que deve se respeitar isso. “A Petrobras tem uma função social como qualquer empresa privada, conforme determina a Constituição. Essa função social pode ser realizada de muitas maneiras: apoio às comunidades onde a empresa está instalada, apoio à cultura, apoio à educação”, aponta, ao lembrar que isso é melhor do que usar seu lucro para benefício de alguns.
Ao longo da conversa, o professor aponta outras saídas para mudar a economia, mas não descolada do social e do desenvolvimento do Brasil como nação. “Para o país crescer, é preciso de outras coisas. Hoje, o atual governo dá pouca ou nenhuma importância à educação”, dispara. “A educação não tem sido a prioridade. Se não é prioridade, não tem saída. Não adianta a economia voltar a crescer sem criar os tipos de empregos que precisamos”, completa.
Zylbersztajn ainda avalia o papel do Estado no mundo de hoje, a emergência de uma transição energética e a forma como isso deve ser pensado dentro dessa visão de Estado que tem. “Não se trata de retirar o Estado. Pelo contrário, o Estado é muito mais forte quando ele, como poder concedente, tem poder de fiscalizar e penalizar quando necessário, do que quando ele tem conflitos de interesse quando ele mesmo faz algo e se fiscaliza. Um Estado forte não é um Estado que constrói barragens ou estradas, mas aquele que licita, impõe regras que sejam a favor do consumidor e do usuário, e as fiscaliza. Isso é o fortalecimento do Estado”, resume.
David Zylbersztajn (Foto: TV Cultura SP)
David Zylbersztajn é engenheiro mecânico, graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Especialista na área de energia, obteve o título de mestre pela mesma PUC-Rio e dirigiu um curso de doutorado sobre energia e relações internacionais na Universidade de São Paulo – USP. É doutor em Economia da Energia pelo Institut d'Economie et de Politique de L'Energie, de Grenoble, na França e também atuou como diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo – ANP por duas ocasiões.
IHU – O senhor tem dito que o subsídio proposto pelo governo para os combustíveis não é a solução para a crise que temos passado. Gostaria que recuperasse e detalhasse essa ideia.
David Zylbersztajn - Não só não é a solução, como é um grande problema. Se fosse simples resolver essa questão, primeiro, teríamos que estabelecer uma escala de prioridades. O que está acontecendo com os combustíveis está acontecendo também com os alimentos, com o gás de cozinha, de modo mais específico, há algum tempo, com as passagens dos ônibus urbanos, trens e metrôs. Então, chama a atenção a questão da prioridade. Em segundo lugar, o fato de que alguém paga a conta. Não é simples de resolver essa situação com decretos, leis, propostas de emendas constitucionais ou alterações de impostos porque alguém tem que pagar a conta.
Quando se reduz ou retira impostos, se tira igualmente o benefício de alguém que se beneficiaria desses impostos. Ou seja, não tem mágica. Por vezes, as pessoas acham bom o fato de não terem que pagar impostos, mas o impacto disso na bomba de gasolina, por exemplo, é muito pequeno. Se reduzir um real no preço da gasolina, isso significa, por ano, um subsídio de 50 bilhões de reais. Para se ter uma ideia, os gastos com educação neste ano foram de 600 milhões de reais.
Outro exemplo: um projeto sobre pobreza menstrual para adolescentes, que teria o custo de 120 milhões de reais, não poderia ser aprovado porque não se tinha dinheiro. Mas como achamos 50 bilhões de reais para subsidiar combustíveis fósseis? Por que não vemos quem realmente necessita, como no caso de quem necessita de botijão de gás?
Tem que subsidiar uma família que precisa de gás de cozinha para poder subsistir. Ou uma pessoa que vai pagar sete reais para ir até o destino e sete reais para voltar, no pagamento de duas passagens de trem no Rio de Janeiro. Essas pessoas precisam de um auxílio. Boa parte das nossas estradas está em um estado péssimo, mas se elas estivessem em um estado melhor, seria possível reduzir o gasto e o uso de combustível e o custo de manutenção de um caminhão, por exemplo. Mas não se discutem questões estruturais, e sim formas de distribuir dinheiro aleatoriamente.
Particularmente, me sinto completamente incomodado de parar em um posto de gasolina e ser subsidiado pelo contribuinte brasileiro que não tem carro. Além de não ter carro, muitos não têm comida nem casa ou estão vivendo em uma situação péssima. Por que o contribuinte brasileiro tem que me subsidiar como consumidor? Ou mesmo no caso do diesel, por que vamos subsidiar quem tem uma caminhonete caríssima, um carro de 300 mil reais? Isso faz algum sentido? Não faz.
Essas são medidas de curto prazo e serão inócuas se, por exemplo, o preço do petróleo continuar subindo ou se houver uma alteração do câmbio. Essas situações “apagam” qualquer subsídio, ou seja, se “queima dinheiro”. Trata-se de uma discussão rasa que tem impacto eleitoreiro, mas quem vai pagar a conta somos nós mesmos, quem tem carro e, principalmente, quem não tem. Ou seja, se faz um processo de transferência de renda de quem não tem para quem tem.
IHU – Segundo a sua perspectiva, o subsídio beneficia quem menos precisa. Mas a equipe econômica parece desconhecer quem são os que mais precisam de auxílio. O que está por trás dessas lógicas econômicas, como essa de subsidiar o combustível?
David Zylbersztajn - Sim, é isso. Por exemplo, quem anda na Av. Copacabana [no bairro de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro] hoje, na calçada à esquerda, onde há bancos e farmácias, vê famílias morando ali. Não se trata de um sem-teto que está por ali. Não. São famílias, com colchão, fogareiro, com crianças fazendo lições da escola. E, à direita, há pessoas andando de carro. Não se trata de ser contra quem tem carro, mas o fato é: vamos buscar ajuda pública para quem está à esquerda, sentado no chão, na rua, ou à direita, para quem está sozinho em um carro? Essa é a imagem do que está acontecendo hoje no Brasil.
As pessoas deveriam ter consciência e expectativa de que a situação não vai mudar muito. O estado vai ter que aumentar o ICMS e, quando baixar o preço do combustível, se baixar, vai se fixar o ICMS e vamos pagá-lo mais caro do que pagávamos antes. Então, é uma distorção absurda, uma mudança estrutural pela qual vamos pagar por muitos anos, difícil de reverter.
IHU - Além de falta de sensibilidade, o que parece estar por trás dessa questão?
David Zylbersztajn - Acho que tem a ver com grupos de pressão – não posso dizer isso em relação aos caminhoneiros ou empresas de caminhões –, uma pressão difusa de uma classe média que forma opinião, vota, que é minimamente mais informada em relação a um suposto benefício – porque o benefício vai ser uma grande frustração.
De outro lado, não conseguimos ver uma mobilização nas famílias que estão comprando botijão de gás em parcelas. As pessoas estão comprando botijão de gás em três prestações. No mês seguinte, a família já está devendo duas prestações anteriores e se endivida para mais duas e aí fica devendo cinco. É uma situação inaceitável e não vemos ninguém falando dessas pessoas.
Então, atribuo isso, por exemplo, aos nossos deputados e às suas bases. Elas provavelmente não são aquelas que precisam [do botijão]. O taxista tem, sim, que reclamar do preço da gasolina e tem que se pensar em alguma medida para amenizar o impacto para quem precisa dela para trabalhar, para quem é entregador, mas essas são situações focadas. O problema é a generalização do debate para supostamente agradar ao proprietário do automóvel.
Lamento, mas temos que buscar soluções de adaptação. As pessoas não estão tendo que se adaptar em relação à carne? Não vão ter que se adaptar em relação ao aumento do preço do trigo, que vai impactar não só diretamente no preço do pão e do macarrão, mas no preço da ração para o animal, que vai impactar no preço do frango, do porco e da carne? Vão. As pessoas vão ter que se adaptar. Então, por que o dono do automóvel não pode se adaptar também?
A discussão é simplesmente esta: temos uma situação em que há uma diversidade. Aliás, crescemos na diversidade, ela nos ajuda a criar soluções que, se forem adotadas, podem gerar um benefício para nós e para as gerações futuras. Temos que nos acostumar a isto: existem certas adversidades que vão exigir adaptações, como ocorre em muitos países, por exemplo, que não têm petróleo. Muitos países enfrentarão situações mais sérias do que as nossas em relação à alimentação e vão ter que se adaptar. É claro que quem precisa mais, vai precisar de ajuda, sim. A sociedade tem que ser solidária, mas solidária para quem precisa. Essa é a questão.
IHU – Não seria o momento de colocar na mesa uma discussão séria sobre renda básica universal?
David Zylbersztajn - O próprio Auxílio Emergencial, ou o Auxílio Brasil, que era o Bolsa Família, não deixa de ser uma renda básica. Mas pensa o seguinte: alguém que gasta 14 reais para se deslocar em duas viagens de trem vai acabar gastando quase um auxílio emergencial só pagando as passagens. Nesse contexto, o Brasil cresceu somente 3% em dez anos. Ou seja, é um país que não cresce e temos uma perda real da renda per capita.
Para piorar, não perdemos a renda na média, mas a perdemos de uma maneira desigual: o mais pobre perdeu mais renda do que o mais rico. Quem tem menos ficou mais pobre ainda. Dados do IBGE mostram que as classes mais baixas perderam quase 20 bilhões em renda durante a pandemia. A classe média também perdeu renda, mas, quanto mais pobre, maior é essa perda. A situação ficou pior para quem mora de aluguel, para quem usa transporte público. Claro que não estou tirando da lista pessoas que tinham uma vida melhor e também perderam renda.
Agora, qual é o limite de capacidade do governo de ajudar as pessoas com uma renda mínima? Trata-se de uma questão de políticas públicas e de saber qual é o limite em termos de taxação. Temos uma taxação injusta no país. Mas essa é outra discussão, que parte da discussão sobre a capacidade do Estado e da decisão política de quem estiver no governo de efetivamente reduzir a desigualdade, que é o nosso grande problema. Essa é a grande questão a ser resolvida no país, a qual vai impactar em todos os segmentos de consumo da sociedade e não somente na questão dos combustíveis.
IHU - Que outras medidas econômicas, na sua opinião, poderiam ser adotadas para proteger aqueles que mais têm sofrido com a perda de renda e a alta de preços de itens básicos, como os alimentos, custos com moradia, transporte público etc.?
David Zylbersztajn - O país tem que crescer. O país não cresce. Não é questão de ter políticas específicas. Podemos ter, emergencialmente, auxílios pontuais, mas se o país não crescer, não vai adiantar nada. Para o país crescer, é preciso de outras coisas. Hoje, o atual governo dá pouca ou nenhuma importância à educação. Vejo, no Rio de Janeiro, a praia cheia de jovens na faixa de 15 a 30 anos, que são pessoas absolutamente capazes, mas sem oportunidades. São pessoas que deveriam estar na escola, mas não têm oportunidade.
A questão econômica por si só não vai resolver [a situação]. A distribuição de dinheiro é necessária, mas de forma excepcional e emergencial. Acho muito triste comemorar o número de pessoas beneficiadas no Bolsa Família. Deveríamos comemorar o fato de ter menos famílias precisando desse tipo de auxílio. O Brasil é um país que não está dando oportunidade para os jovens.
Nós perdemos o bônus demográfico: hoje, temos muito mais gente que vai precisar ser sustentada por menos gente que contribui. É uma tragédia que se anuncia no país. Não estou nem falando sobre o que está acontecendo no Ministério da Educação, mas o fato é que a educação claramente não é uma prioridade do governo. Não estou fazendo proselitismo político contra ou favor de ninguém, mas não vi o presidente da República fazer um discurso em prol da educação, como se falou em armas, em garimpos em terras indígenas. As pessoas votaram nele e isso é legítimo, mas a educação não tem sido a prioridade. Se não é prioridade, não tem saída. Não adianta a economia voltar a crescer sem criar os tipos de empregos que precisamos.
Esse tempo todo que estamos passando sem formar pessoas faz com que elas percam o “bonde da vida”, ou seja, já não terão a formação necessária, que tem que iniciar na creche. Não temos creches, não temos crianças sendo alimentadas na sua primeira infância, tendo socialização e conhecimentos na primeira infância. Muitos governos estaduais dão prioridade para a educação, mas o governo federal, não. Se o país crescer, vai crescer com uma economia distorcida de exportação de commodities e não em cima da economia moderna, das tecnologias. A importância da indústria no PIB caiu drasticamente nos últimos dez anos, 20 anos e continua caindo. Mas é através dela que se cria tecnologia, conhecimento, sem falar nos ativos humanos associados a ela. O grande ativo de um país são as pessoas e não estamos cuidando delas. Então, a questão não é só econômica. A situação econômica é uma consequência.
Não crescemos porque o Brasil é cada vez menos competitivo, cada vez menos integrado ao mundo e tem cada vez menos capacidade de se integrar ao mundo. A ciência é contestada no país. Chega a ser surreal. Eu sempre fui muito otimista, mas estou em um ponto em que já não sou tão otimista quanto fui no passado em relação às expectativas do país. Se em algum momento dissermos que a educação é para valer, vamos em frente, vamos ter que passar por mais umas duas gerações até melhorar a situação, porque esse não é um processo feito da noite para o dia, mas um processo que leva 30 anos.
O Brasil será um dos grandes exportadores de petróleo do mundo. Nós vamos viver como um país dependente da exportação de petróleo, minérios e dos produtos da agricultura? Mesmo na agricultura, os produtores não estão muito preocupados com a Amazônia, bioma que permite as chuvas para o Centro-Oeste, onde está o maior celeiro produtivo do país. Se continuarmos nesse ritmo, a agricultura vai começar a sofrer.
O agro moderno está preocupado com isso. O agro brasileiro entende a importância que tem graças à Amazônia. O Centro-Oeste já perdeu quase 20% da capacidade de produção de água nos últimos 30 anos. Não se vê uma comoção para resolver essa situação, mas todo mundo está muito mobilizado para saber sobre o preço da gasolina. O debate está completamente torto e desvirtuado.
IHU – Também não se discute como preparar as pessoas para trabalhar na indústria de tecnologia. Por exemplo, não se pensa em uma transição que faça com que o jovem cobrador de ônibus possa ser alguém que vai trabalhar na construção de chips para a indústria de transporte.
David Zylbersztajn - Isso aconteceu com os ascensoristas no Brasil e com os frentistas em vários países. No Brasil, é proibido não ter frentista, mas ele já está extinto na maior parte dos países da Europa e nos EUA. O consumidor paga mais caro se não quiser sujar a mão, mas em 99% dos casos são as próprias pessoas que abastecem seus carros.
É preciso pensar em uma transição, porque o cobrador de ônibus em geral não é um jovem, mas alguém que trabalha naquela função há 30 anos, uma vida inteira. Tem que ter um tempo de transição, mas as coisas não são planejadas dessa maneira. No caso dos ascensoristas, a partir do momento em que não foi mais necessário ter manivelas nos elevadores, a função de ascensorista perdeu o sentido.
No caso dos pedágios, por exemplo, em locais com dez cabines, somente uma é automática. Nas demais, há pessoas trabalhando, recebendo os pagamentos e dando o troco. Esse é outro caso de transição do emprego, mas, para fazer a transição, é preciso ter alguém capaz de assumir o emprego novo e as necessidades novas. E é isso que está difícil de ver no país.
IHU – Como ocorre nas agências bancárias, em que quase não existem mais funcionários. Correto?
David Zylbersztajn - O banco é um bom exemplo. Eu não entro em uma agência bancária há anos. Entramos, às vezes, para tirar dinheiro, mas cada vez menos se usa dinheiro. Pago tudo com cartão ou pix. Em São Paulo já automatizaram os estacionamentos de rua. No Rio de Janeiro, não, porque tem uma legião de guardadores que preenchem talões. Se automatizar essa atividade, isso terá uma implicação na vida dessas pessoas. É uma discussão complexa. Para o usuário, é muito pior, mas vamos tirar da rua milhares de pessoas que trabalham com isso? É uma discussão a ser feita.
IHU – Discutimos tantos temas complexos com uma visão rasa. O debate sobre o preço do combustível, sem fazer uma discussão estrutural, revela o que? Que não aprendemos a fazer uma discussão democrática e que realmente toque as questões de fundo?
David Zylbersztajn - Nessa altura, será que não caberia também discutir, por exemplo, melhorar a questão da circulação urbana ou discutir que estamos subsidiando combustíveis fósseis e esquecemos do aquecimento global?
Saímos de uma pandemia em que todo mundo sentiu seus efeitos na pele: muitas pessoas perderam familiares, outras ficaram doentes e outras estão com sequelas. Estamos em um momento muito difícil de vida. Só que estamos vivendo uma pandemia mais silenciosa, duradoura e de longo prazo, que é o aquecimento global. No Sul, ocorreram secas completamente atípicas. No Rio de Janeiro, ocorreram chuvas que destruíram cidades no Sudeste. A mesma coisa está acontecendo no Norte. Quer dizer, isso é uma realidade. Uma cidade como Petrópolis foi destruída pela chuva em uma tarde. As secas que ocorreram no Sul foram fora do padrão e estão se tornando o padrão. Ninguém vai discutir isso? Falei da questão da Amazônia, mas vamos ter problemas sérios porque o Pantanal perdeu sua capacidade de produção de água. Ele é o maior estuário de água e está perdendo sua capacidade com os incêndios que estão acontecendo.
Estamos vivendo uma outra pandemia, que está associada aos combustíveis fósseis. É claro que é um problema global, mas será que não temos que conscientizar as pessoas em relação a isso? É uma boa oportunidade de discutir o problema dos preços dos combustíveis e mostrar como o uso deles está associado às emissões de gases de efeito estufa de forma muito intensa. Se perdem essas oportunidades de discussões que impactam nas políticas de uma maneira geral. Isso se dá em outras áreas também.
Ou seja, as nossas políticas públicas estão muito rasas, superficiais, e quando se discute combustível, se discute somente o ICMS, mas este não é o problema – embora seja uma parcela dele. As pessoas têm que entender por que o preço é alto, ou seja, o que está acontecendo e que fez com que o preço do barril subisse. Não é por causa da guerra. O preço do barril está no mesmo patamar de antes da guerra. Aí fica se justificando a guerra. Ela vai afetar o preço dos alimentos e os alimentos em si, mas não a questão dos combustíveis.
O que vai aumentar o preço da comida na mesa vai ser o fato de que os grãos não virão ou ficarão mais caros. O nosso grão ficará mais caro porque vai faltar grão em outros países e nós vamos exportá-lo. É assim que funciona. Então, não tem uma clarificação para a sociedade sobre essas questões. Aí se discute o ICMS, se culpa os governadores.
Aliás, esta é a discussão que pauta a nossa conversa: como é rasa e pouco efetiva não a comunicação, mas o que se comunica para a sociedade. Esse é um problema muito sério que temos.
IHU – Toda essa crise global de petróleo, a guerra e preço dos combustíveis fósseis não revela que já passamos da hora de uma transição energética, então? Como analisa o lugar e os movimentos do Brasil nesse debate?
David Zylbersztajn - A transição energética já vinha acontecendo. A guerra não vai mudar isso. Vai mudar a situação em alguns lugares onde os países são mais dependentes do gás da Rússia, como no caso da Alemanha, que vai reduzir a dependência dos russos, mas vai continuar usando gás durante um bom tempo. A transição energética já vinha acontecendo e temos que ter clareza de que ainda vamos conviver com o petróleo durante um bom tempo.
No Sul há parques eólicos, mas os mais importantes estão no Nordeste. Hoje, se atende o Nordeste - 100%, se precisar - com energia eólica. A energia solar está crescendo enormemente. Somos o quarto país do mundo em instalações solares, com potencial de crescimento enorme. O Brasil tem muitos projetos, mas um problema de transmissão no sentido de como conseguir trazer a energia do Nordeste para o Sudeste. Uma linha de transmissão é como se fosse uma autopista: chega uma hora em que ela engarrafa. Então, vamos ter mais energia do que precisamos para poder distribui-la.
O Brasil é bem aquinhoado: produz o petróleo que precisa, refina praticamente 80% do que precisa e tem uma independência energética muito grande e está evoluindo bem. Estamos construindo centros de produção de hidrogênio verde, ou seja, produção de energia com utilização de energia renovável para fazer eletrólise da água. Nesse ponto, sou muito otimista. O setor privado é bastante atuante e vai dar conta – e já estando dando conta – do recado. Temos uma carteira de investimento no país muito expressiva.
No setor de hidroeletricidade, chegamos no limite. Não acredito mais no crescimento do setor, mas, sim, no crescimento dos setores de energias eólica e solar. Deveríamos investir mais em biocombustíveis, em que o país é a ponta no mundo. Se pensarmos no etanol misturado na gasolina, cerca de 25%, mais os carros movidos somente a etanol, temos uma frota de automóvel movida quase que a 50% a etanol. O que é muito expressivo no mundo.
Não há outro país com a dimensão do Brasil próximo dessa utilização de energia renovável para combustíveis. Nesse ponto, o mundo está em uma transição energética interessante, que não será feita da noite para o dia, mas é um caminho inevitável. A questão da guerra pode causar algum distúrbio, mas não será isso que irá acelerar ou atrasar esse desenvolvimento.
IHU – O investimento estatal na área energética, que no passado foi grande, é necessário para o desenvolvimento e implementação de energias renováveis ou não?
David Zylbersztajn – Isso passou e nem sei se é tão necessário. As energias renováveis são de menor porte. A geração distribuída, produzida próxima do centro de consumo, pode ser a gás natural, eólica ou solar. Ou seja, trata-se de projetos de menor dimensão e com “cara” de setor privado porque são muito pulverizados.
O Estado teve um papel relevante nos projetos estruturantes, de grande porte, para fazer uma usina como Itaipu. Fazia muito sentido naquele momento, em um processo de implementação de grandes projetos no Brasil, ter aquele tipo de investimento estatal. Hoje, com a tecnologia e com o tipo de evolução da demanda, não é preciso do investimento do Estado. Ele pode, sim, incentivar em termos de impostos, de benefícios fiscais transitórios para determinadas fontes serem implementadas, mas mesmo isso gera grandes distorções, favorecendo grupos que não precisariam. Então, não é preciso do Estado.
Trabalhei muito tempo em governos e tenho clareza sobre isso – e não se trata de algo ideológico: o governo é um péssimo empresário. Ele é péssimo naturalmente porque os compromissos das pessoas são diferentes – e falo de pessoas sérias. Diria que 99% do quadro público funcional é formado de pessoas corretas, mas se trata de outra “pegada”: o Estado não trabalha com metas que atraem o investimento mais eficiente, tem sistemas de controle que emperram a eficiência do processo.
O papel do Estado seria mais o de estimular onde é possível e fiscalizar sempre, conceder e verificar a qualidade da prestação de serviço, do que ele próprio fazer algo ou prestar o serviço. Não vejo por que o Estado tem que colocar dinheiro onde o setor privado pode colocar. O Estado está com tão pouca possibilidade de investimento próprio em áreas muito mais carentes.
A atuação do setor privado está funcionando na transição energética: hoje, a expansão do setor eólico e solar é 100% privada. A expansão do setor de petróleo mistura a Petrobras, que é uma empresa estatal que trabalha como empresa privada, felizmente, e outras empresas privadas. Mesmo as últimas hidrelétricas, como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, foram feitas com investimento privado. Não tem por que o Estado bancar concreto, fazer barragens, se ele pode fazer estradas.
Mesmo as estradas, podemos perceber que as melhores, com maior segurança e trafegabilidade, são as concedidas. Claro que o pessoal reclama do pedágio, mas ao longo do tempo, com a depreciação, a tarifa dos pedágios cai. As pessoas se sentem muito melhor pagando pedágio e andando em estradas seguras, de qualidade e que tenham apoio, do que não pagando e andando nas estradas como eram as de antigamente. Vão relicitar a Dutra, entre Rio e São Paulo. O pedágio seguramente vai baixar, como aconteceu na Ponte Rio-Niterói, e a qualidade do serviço deve aumentar porque já há uma série de investimentos feitos, pagos e depreciados. Então, é um caminho natural colocar o Estado como poder concedente, regulador e fiscalizador. Isso é perfeito para que o Estado funcione de maneira mais eficiente.
IHU – Não significa retirar o Estado, mas colocá-lo em um lugar de articulação?
David Zylbersztajn - Não se trata de retirar o Estado. Pelo contrário, o Estado é muito mais forte quando ele, como poder concedente, tem poder de fiscalizar e penalizar quando necessário, do que quando ele tem conflitos de interesse quando ele mesmo faz algo e se fiscaliza. Um Estado forte não é um Estado que constrói barragens ou estradas, mas aquele que licita, impõe regras que sejam a favor do consumidor e do usuário, e as fiscaliza. Isso é o fortalecimento do Estado.
Vou dar um exemplo sobre o saneamento no Rio de Janeiro. A Cedae, que é a empresa de água, é um dos maiores desastres que temos no estado, e gera problemas de saúde pública. A Baixada Fluminense é um desastre em termos de poluição, assim como a Baía de Guanabara. Agora, se for feita uma concessão, quem pegá-la terá que cumprir metas e pagará uma fortuna pela outorga de distribuição. Se não as cumprir, perderá a outorga e também os investimentos feitos.
Quando é o Estado que faz tudo, não há meta nem cobrança. É o Estado cobrando do Estado, gerando enormes “cabides de empregos”, com uma ineficiência absurda, e boa parte da população sequer tem água tratada. Eu sou otimista, porque quem pagou alguns bilhões para entrar e já está pagando bilhões para investir, não vai correr o risco de não ter retorno dos investimentos se não cumprir as metas estabelecidas.
IHU – Voltando à Petrobrás e relacionando com o que falávamos sobre o Estado: qual é o lugar da Petrobras e de uma empresa estatal na produção de petróleo e como esse lugar vem sendo ocupado no país?
David Zylbersztajn – Primeiro, uma precisão: a Petrobras não é estatal; é uma empresa de economia mista que tem dois tipos de ações, as ações de controle e as preferenciais. O governo controla as ações de controle, ou seja, tem maioria na gestão, mas esta não é exclusiva dele porque existe um conselho administrativo. Mas ela é uma empresa de economia mista sujeita às regras de uma empresa privada.
Então, a Petrobras, para efeitos de mercado, é uma empresa privada. Ela tem 800 mil acionistas dos quais, estimativamente, mais de 300 mil estão usando o fundo de garantia – o fundo de poupança do trabalhador – para investir, acreditando que ela renderá algo no futuro. Mas se eu sou acionista de uma empresa, mesmo sendo governo, o que eu quero é que a Petrobras seja a empresa mais eficiente do mundo para me dar o máximo de dividendos – que foi o que aconteceu agora, quando a empresa deu quase 40 bilhões de dividendos para o governo –, que pague o máximo de impostos e pague, no caso de uma empresa de petróleo, as participações governamentais, que são os royalties. Então, ao invés de se usar a empresa, o que se deseja é que ela dê muito dinheiro.
Se eu sou um investidor, eu não quero que ela ajude a consertar a minha casa, mas que me dê muito dinheiro para que, se eu quiser, eu conserte a minha casa. Se eu quiser fazer outra coisa com o dinheiro, faço outra coisa. Nesse sentido, o governo perde a oportunidade de, com esse dinheiro da Petrobras, fazer políticas públicas mais eficientes, como não a usar para baixar o preço dos combustíveis.
A Petrobras tem uma função social como qualquer empresa privada, conforme determina a Constituição. Essa função social pode ser realizada de muitas maneiras: apoio às comunidades onde a empresa está instalada, apoio à cultura, apoio à educação. Assim como as demais empresas privadas têm ações sociais importantes de inserção comunitária, a Petrobras também tem que ter.
É um equívoco dizer que a Petrobras é do governo. Ela não é do governo. Alguns dizem que ela sendo em parte do governo, em parte também é nossa. Sim, em parte, se ela é nossa, o que queremos é que ela seja muito eficiente, que ganhe muito dinheiro e distribua esse dinheiro em prol da sociedade.
A Petrobras quase quebrou, teve a maior dívida corporativa do mundo em 2015, por ser usada para “segurar” o preço do combustível – inclusive, é ilegal fazer isso. A empresa perdeu 40 bilhões de dólares. O que temos que desejar é que, se a Petrobras é nossa, ela tenha que ter os melhores executivos, ser a empresa mais eficiente para gerar os maiores dividendos do mundo – e esse é o dinheiro do Tesouro. Esse é o melhor resultado.
Não quero que ela tenha 20 bilhões de reais e 30 desapareçam subsidiando combustível, porque isso não serve para nada no final das contas, quando esse dinheiro desaparece. Para o consumidor, baixar 30 ou 40 centavos o preço do litro do combustível é uma diferença pequena no tanque, mas, para a sociedade como um todo, são dezenas de bilhões de reais se multiplicarmos isso pelo número de consumidores. Então, ao invés de criticar a Petrobras porque deu 106 bilhões de reais de lucros, deveríamos bater palmas porque ela está transferindo 40 bilhões de reais para o Estado fazer políticas públicas.
Ou seja, eu, que tenho carro e usei a Petrobras e que sou de uma classe mais favorecida em termos econômicos, estou transferindo dinheiro para quem precisa mais, e não o contrário. Essa é a justiça social e o papel social de uma empresa no caso da Petrobras. Normalmente, quem tem automóvel é uma classe de renda mais alta. Então, quando dou lucro para a Petrobras como consumidor de combustível, estou dando lucro para a sociedade como um todo. Essa é a lógica. As pessoas precisariam ter clareza em como lidar com isso.
Se em parte a Petrobras é nossa, ela precisa ganhar dinheiro para a sociedade. Você acha justo alguém comprar ações da Petrobras para fazer um pecúlio para os netos e o governo usar esse dinheiro para fazer caridade para melhorar a vida de quem tem carro, subsidiando o combustível? Vamos combinar que não é muito justo. Mas foi isso que aconteceu. A Petrobras quase quebrou e quase um milhão de acionistas quebraram juntos. Claro que há estrangeiros investindo na Petrobras, mas da mesma forma há brasileiros investindo em empresas internacionais. Mas a maioria dos investidores são pessoas físicas, brasileiros, que precisam ser preservados.