25 Fevereiro 2022
Se o ataque viesse de um incansável anticlerical, soaria algo óbvio. Mas, quando é um dos biblistas mais populares e apreciados na Itália quem declara que “a Bíblia é perigosa e faz perder a fé em vez de despertá-la pelo modo como já estamos acostumados a lê-la”, então a denúncia deve ser levada a sério, e o efeito surtido é perturbador.
A reportagem é de Giovanni Panettiere, publicada em Quotidiano Nazionale, 24-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O padre Alberto Maggi, 76 anos, rosto conhecido pelos seus comentários sobre os Evangelhos aos telespectadores da Tv2000 – a emissora de televisão da Conferência Episcopal Italiana (CEI) –, não tem medo de enfatizar que “o inferno como lugar de condenação eterna não existe” e de esclarecer que “Jesus realizou sinais, não milagres”.
Quem pensa e diz isso é um religioso da Ordem dos Servos de Maria, que conta com estudos na École Biblique de Jerusalém, o instituto mais prestigiado do mundo para quem quer abordar as Escrituras com rigor científico, e uma experiência de quase 30 anos à frente do Centro de Estudos Bíblicos de Montefano, na zona de Macerata.
Digamos que é preciso uma certa franqueza para definir a Bíblia como perigosa.
Ou talvez basta a experiência dolorosa de alguém como eu, que se formou em um ambiente familiar racionalista e que se defrontou com esse livro complexo que, entendido de forma literal, é absurdo.
Mesmo?
Pensemos em um episódio como o narrado em Marcos 11, no qual Jesus amaldiçoa uma figueira sem fruto, embora não fosse a época. Ou ele era um tolo, ou o evangelista fez com que ele passasse vergonha, ou há outra coisa.
O que, Pe. Maggi?
O fato de que não é possível interpretar os Evangelhos e, de maneira mais geral, todo o corpus bíblico sem levar em conta o contexto histórico em que foram escritos, os gêneros literários utilizados e o alcance simbólico de muitas passagens. Sem essas premissas, aqueles que deveriam ser textos destinados a fazer crer se tornam instrumentos idôneos para nos afastar da fé ou para fazer com que a percamos.
Então Martinho Lutero estava enganado ao sugerir que se entregasse a Bíblia na mão dos leigos?
As pessoas devem ser colocadas em condições de poder interagir com aquela que é a Palavra de Deus, mas é preciso um acompanhamento. Os Evangelhos não são crônicas e não foram escritos para serem lidos por todos. Eles tinham de ser transmitidos oralmente pelos leitores à comunidade, por sujeitos preparados para os reportar de forma adequada.
Hoje, quase em todas as casas há uma cópia da Bíblia, mas poucos a folheiam.
Deve-se compreender isso, é uma história pouco convincente cujo final já conhecemos e sobre a qual pesam condicionamentos externos que acabam nos fazendo pensar no absurdo do seu relato.
Quais, por exemplo?
O conceito de inferno como lugar de condenação eterna. Na Bíblia, essa palavra não aparece. Em seu lugar, há a dicção de submundo como o reino dos mortos. Há poucos anos, a última edição das Escrituras editada pela CEI também foi corrigida, mas, como prevalece a lógica do “sempre se pensou e sempre se fez assim”, há pouco esforço para mudar a mentalidade comum.
Então, ninguém está condenado para a eternidade no fim dos seus dias, em meio ao choro e ao ranger de dentes?
Ninguém. Nos Evangelhos, no máximo se fala de uma vida biológica que se encerra com a morte, à qual se segue ou uma existência sem fim no espírito por quem, fiel ou não, amou, ou uma morte segunda, definitiva. Essa escuridão eterna cabe a quem rejeita a oferta de vida em plenitude por parte do Senhor, que não pode ser e nunca é imposta. Não sabemos quem e quantas pessoas rejeitaram a proposta divina, rejeitando a sua luz. Paulo nos fala da misericórdia de Deus que nunca deixa de nos procurar até ao nosso último suspiro.
E como lidamos com os milagres?
Essa palavra também é estranha aos Evangelhos. Jesus realizou sinais para favorecer a fé, não extrapolou as leis da física. A ressurreição de Lázaro, por exemplo, tem um significado teológico, não histórico. Naquele “deixem-no ir” de Cristo aos presentes em frente ao sepulcro do seu amigo está o sinal/convite do Mestre a deixar de chorar pelo morto, como se se quisesse mantê-lo ainda conosco. Ele deve ser libertado, deve-se deixá-lo ir para a vida verdadeira, a eterna.
É possível objetar que, removendo o inferno e os milagres, dilui-se o discurso cristão?
Muito pelo contrário, ele é purificado de uma exegese literalista incapaz de captar a real mensagem libertadora de Deus.
O que você aconselharia a quem quer se aproximar dos Evangelhos?
Leia-os palavra por palavra, servindo-se de um bom comentário. Deixe de lado aquilo que lhe foi ensinado quando éramos pequenos, seja maduro e sacie a fome de Deus que há em cada um de nós.
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“O inferno não existe, e Jesus não fez milagres.” Entrevista com Alberto Maggi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU