Segundo pesquisadora, o atual cenário é fruto de desmontes de políticas públicas que ocorrem há várias gestões, mas que agudizam nesse governo
Etimologicamente, as palavras “pobreza” e “fome” não podem ser consideradas sinônimos. Mas nem é preciso ir tão longe, pois no cotidiano da vida se sabia que no Brasil havia muitos pobres, embora nem todos chegassem a passar pelo flagelo da fome. O problema é que, na atual conjuntura, quem já estava na linha da pobreza cai à miséria e quem havia ascendido tem visto sua realidade piorar tendo, pelo menos, a fome como um fantasma muito presente. “Não há dúvidas de que as políticas sociais de combate à pobreza e à extrema pobreza brasileiras foram desmontadas ao ponto em que hoje, no Brasil, a condição de pobreza voltou a significar fome”, dispara a historiadora Denise De Sordi em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Muito mais do que uma questão linguística, ela explica que é preciso ter clareza de que “estabelecer a equivalência entre pobreza e fome é uma das formas de caracterizar a conjuntura do país e alertar não só para o crescimento acelerado dos níveis de insegurança alimentar e fome, mas também para a corrosão dos mecanismos que existiam para medir o crescimento, ou não, desta condição entre a população”. Em outras palavras, é encarar a realidade de que o empobrecimento das pessoas leva à fome, apoiando-se em indicadores sólidos, e que essa já é a realidade no Brasil. “Ao voltar a ser caracterizada por sua expressão mais dura da condição de fome, a pobreza deixa de ser lida como um fenômeno multifacetado, a partir de características que expressam uma série de fatores que permitem a correlação entre diferentes políticas sociais”, completa.
Para Denise, o exemplo mais claro disso – e que também tem um caráter institucional – é o sepultamento do Bolsa Família e a criação do Auxílio Brasil, considerado por ela um “programa tampão”. “Chamo a atenção para o desmanche das políticas e programas sociais porque este retrocesso não pode ser naturalizado ao ser associado tão somente a medidas de corte de gastos sociais, à crise gerada pela pandemia ou – como se tem feito com o Auxílio Brasil – à esfera das ações individuais”, observa. E por isso considera que “o retorno do país ao Mapa da Fome é uma escolha política, feita ativamente pelo governo brasileiro nos últimos anos”.
Na entrevista, a historiadora ainda fala sobre a criação de uma renda básica universal que, para ela, também não sai do papel por questão política, numa espécie de “acordão de elites”. “A não implementação de uma renda básica ocorre por diversos motivos, porém, podemos citar a necessidade de rompimento de certo pacto social conciliatório promovido entre trabalhadores e elite por meio do Estado com os programas sociais, dentre os quais, o Bolsa Família. A moralização conservadora da condição de pobreza como elemento que forja a aceitação da existência de programas sociais no Brasil não pode ser desconsiderada”, ilustra. “Assim, como a previsão de instituição de uma Renda Básica, a existência da lei 10.835/2004 demarca a possibilidade de sua implementação, mas não a sua efetivação e corrobora a ideia de implementação por etapas”, conclui.
Denise De Sordi (Foto: Arquivo pessoal)
Denise De Sordi é historiadora, doutora em história social e pesquisadora do programa de pós-doutorado dos Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH-USP e do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa Oswaldo Cruz – COC/FIOCRUZ.
IHU – Houve um tempo em que pobreza e fome, no Brasil, eram sinônimos. Que tempo foi esse? Corremos o risco de voltar a esse quadro?
Denise De Sordi – O retorno do país ao Mapa da Fome não é mais um risco, é uma realidade concreta. Há famílias inteiras de trabalhadores vivendo nas ruas, as políticas de soberania alimentar estão paralisadas ou completamente inativas, há circuitos de garimpo dos ossos se formando nas cidades. Programas sociais que mobilizam a rede de proteção social para o combate à fome, antes de caráter nacional, agora estão esfacelados e sendo assumidos de forma fragmentada por estados e municípios. ONGs reativaram campanhas em massa de arrecadação de alimentos e cozinhas solidárias se espalham pelo país pelas mãos dos movimentos sociais e de organizações religiosas.
Vivemos um retrocesso que até 2016 era inimaginável, no sentido de que a saída do país do Mapa da Fome em 2014 parecia então ser uma conquista consolidada por uma série de políticas sociais que são fruto da democratização do país. Trata-se, em contexto neoliberal, de um processo de aceleração da reprodução da condição de pobreza em seus níveis mais extremos para, em resumo, baixar o valor da força de trabalho, regular o mercado de trabalho e direcionar o gasto público.
Não há dúvidas de que as políticas sociais de combate à pobreza e à extrema pobreza brasileiras foram desmontadas ao ponto em que hoje, no Brasil, a condição de pobreza voltou a significar fome. Estabelecer a equivalência entre pobreza e fome é uma das formas de caracterizar a conjuntura do país e alertar não só para o crescimento acelerado dos níveis de insegurança alimentar e fome, mas também para a corrosão dos mecanismos que existiam para medir o crescimento, ou não, desta condição entre a população.
Ao voltar a ser caracterizada por sua expressão mais dura da condição de fome, a pobreza deixa de ser lida como um fenômeno multifacetado, a partir de características que expressam uma série de fatores que permitem a correlação entre diferentes políticas sociais. O exemplo mais claro deste retrocesso, que também é institucional, está selado no fim do programa Bolsa Família e no arranjo chamado Auxílio Brasil.
No início dos anos de 1990, fome e pobreza foram termos utilizados como sinônimo para provocar formas de mobilização social. Como ainda não existiam programas sociais nacionalmente estruturados, havia uma disputa política entre diferentes projetos de sociedade que encaminhariam formas de lidar com a fome e de caracterizar a pobreza no Brasil.
Este foi um processo que se intensificou a partir da divulgação do Mapa da Fome no governo de Itamar Franco, com o lançamento do Plano de Segurança Alimentar e Nutricional – SAN pelo Partido dos Trabalhadores – PT e a instalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea. Entretanto, com o fechamento do Consea, em 1994, e a instalação do Programa Comunidade Solidária – PCS, “fome” é um termo que irá ser varrido da cena pública institucional, permanecendo no campo da oposição e em ações localizadas de distribuição de alimentos. O termo volta à cena pública com a campanha de Lula em 2002, com a caracterização da proposta do Fome Zero e, em seguida, do Programa Bolsa Família, que passa a ler “pobreza” em suas múltiplas expressões, sendo a fome uma delas.
Entre os anos de implementação e existência do Programa Bolsa Família (2003-2021), por sua característica de programa focalizado, foi preciso definir, identificar e selecionar quem seriam os trabalhadores empobrecidos a serem atendidos por programas sociais de transferência de dinheiro, e a partir daí tivemos a construção do que entendemos como “pobres” e “pobreza” em um nível que é institucional, mas principalmente social. A formulação destes parâmetros foi o que gerou certa coesão social na forma como entendíamos a condição de pobreza e seus motivos para que os programas de transferência de dinheiro pudessem ser socialmente aceitos. Este é um entendimento que não existe mais.
IHU – Como a senhora compreende o Bolsa Família e que distinções há entre ele e o Auxílio Brasil, criado no atual governo?
Denise De Sordi – O Auxílio Brasil não tem nenhuma relação ou similaridade com o Bolsa Família. Não é um “novo Bolsa Família” e nem sinaliza a intenção de ser um programa de longo prazo. Não à toa é veiculado e apresentado pelo governo federal como “ajuda” e não como um direito. É um programa tampão para os efeitos do desmanche da rede de proteção social brasileira e, consequentemente, dos instrumentos de gestão social que caracterizam nossa democracia. É um retrocesso em todos os sentidos.
O Auxílio Brasil é uma das peças na construção de um projeto de sociedade que aprofunda as políticas neoliberais e impulsiona um tipo de cidadania restrita e financeirizada, sustentada no desemprego, na pobreza e na fome. Assim, o Auxílio Brasil complementa o desmanche das políticas sociais somando-se, dentre outros, à reforma trabalhista, da previdência, à aprovação do teto de gastos, a descontinuidade dos programas de agricultura familiar, a desvalorização do salário mínimo e a não geração de empregos formais.
Este programa, em especial, desarticula a rede de proteção social que havia sido legitimada pelo Programa Bolsa Família, desvincula as ações do Sistema Único de Assistência Social – SUAS e legitima a percepção moral de que o empobrecimento é condição material ligada tão somente à gestão de – já parcos – orçamentos domésticos. É a expressão da desresponsabilização do Estado por suas ações que produzem e reproduzem a pobreza e a autorresponsabilização dos trabalhadores empobrecidos que, como ressalta o texto da MP do Auxílio Brasil, devem ser alvo do “incentivo ao esforço individual” e da “emancipação cidadã”.
O Programa Bolsa Família, apesar das críticas que recebeu por seu caráter neoliberal e focalizado, portanto, contrário às políticas de universalização dos direitos sociais, possibilitou conquistas e avanços reais para a melhoria das condições de vida das famílias atendidas. Não se tratava unicamente da transferência de renda, mas da articulação de uma série de políticas e programas sociais que tinham por objetivo atender diversos fatores que perpassam a condição de pobreza, sendo os mais básicos educação e saúde, ambos articulados na ideia de condicionalidades que existiam no programa.
As condicionalidades foram já suficientemente criticadas pelos pesquisadores da temática dos programas sociais no Brasil, e é possível indicar que no Bolsa Família, de certa forma, elas também continham a ideia de promoção da superação de “vulnerabilidades” sociais que apareciam na forma de desenvolvimento pessoal, por exemplo, através do acesso ao ensino formal. Porém, ainda assim, há certo consenso de que este preceito estava conectado a uma leitura da pobreza como uma questão coletiva e social.
As condicionalidades do Bolsa Família se articulavam a ações e políticas públicas promovidas pelo Estado e, ao serem conectadas à rede de proteção socioassistencial, acabavam por configurar um horizonte de expectativas por mobilidade social. Se no Bolsa Família havia o mote do “estamos juntos, dando o peixe e ensinando a pescar”, com o Auxílio Brasil isto não existe mais, é um programa que leva ao pé da letra o “cada um por si”.
O funcionamento do programa Bolsa Família havia permitido a organização de bases informacionais sobre as condições de vida da população através da reformulação do CadÚnico, ampliado a rede de atendimento socioassistencial e eliminado práticas de transferência indireta de dinheiro através de vouchers. Tudo isso foi revertido pelo Auxílio Brasil.
O Auxílio gera ainda algo que, a meu ver, é mais sutil e danoso: desmoraliza e deslegitima o consenso social impulsionado pelos méritos do Bolsa Família de que transferir dinheiro é algo aceitável e necessário em uma sociedade tão desigual – ou, com tanta concentração de renda – como a brasileira. Por isso, também tenho afirmado que a manobra política feita com o Auxílio Brasil pode ser considerada eleitoreira, mas é preciso ter cuidado com esta afirmação, pois embutida nela está a ideia de que programas de transferência condicionada de renda não devem ser aceitáveis como opção para a minoração da desigualdade social. A manobra pode ser assim definida, mas os programas de transferência de renda não.
IHU – Em entrevista recente, concedida à Revista Poli – Fiocruz a senhora diz que “o Bolsa Família vai ser colocado como a síntese de todos esses processos de mobilização social”. Gostaria que recuperasse essa ideia e detalhasse brevemente.
Denise De Sordi – Esta afirmação é derivada do debate que realizei em minha tese de doutorado “Reformas nos Programas Sociais brasileiros: Solidariedade, pobreza e controle social (1990-2014)”, na qual analisei o processo histórico de desenvolvimento dos programas sociais brasileiros a partir de 1990. Adotei o Programa Bolsa Família como veículo de observação para compreender como foi possível avançarmos socialmente, com melhoria efetiva das condições materiais de vida da população atendida por este programa, sem alterar concepções sobre os motivos que reproduzem a condição de pobreza.
Ou seja, como foi possível que o Bolsa Família, enquanto um programa que está alinhado às políticas neoliberais de alívio e gestão – e não de transformação - da condição de pobreza, fosse legitimado politicamente e aceito socialmente frente a outras opções que estavam disponíveis quando de sua criação. A partir daí pude explicar como a concepção de “pobreza” que orienta os programas sociais foi formulada a partir dos embates travados pelo modelo de programas sociais anteriores ao Bolsa Família, e quais foram os impactos sociais da criação de um horizonte de expectativas por mobilidade social sem que se alterasse questões estruturais de nossa formação histórica e econômica.
Quando da conclusão da pesquisa, em fins de 2018 e início de 2019, era possível notar que as mudanças que poderiam ser realizadas nos programas sociais não diriam respeito, necessariamente, ao mecanismo de transferência de dinheiro, mas sim, que mobilizariam concepções e valores morais em torno da concepção de pobreza que orienta os programas e, principalmente, na ponte com os serviços socioassistenciais que era estabelecida pelas condicionalidades em articulação com o SUAS.
Dizer, portanto, que o Bolsa Família é a síntese dos processos de mobilização social que marcaram o campo das políticas sociais ao longo dos anos de 1990 tem relação com o processo histórico de lutas sociais que caracterizam a Nova República e do qual o programa emergiu. Houve uma confluência de interesses políticos e econômicos que caracterizam o processo de conciliação social característico dos governos petistas, para o qual os programas sociais são chave de leitura importante.
Sigo neste campo de pesquisa, mas agora para observar o rearranjar do perfil dos trabalhadores atendidos por estes programas e como os movimentos sociais têm mobilizado e construído respostas para este cenário pela via das cozinhas solidárias. A proposta é contribuir para as explicações sobre como a reprodução da condição de pobreza tem modificado nosso tecido social nos últimos anos e quais tipos de relações de oposição a este processo têm sido estabelecidas.
IHU – Como a senhora compreende os retrocessos em assistência social nos dois últimos governos? O que está por trás dessa concepção de que “programas sociais são gastos”?
Denise De Sordi – O discurso de que programas sociais são gastos sempre esteve presente na cena pública brasileira. No contexto da Nova República, a maioria dos embates políticos ao longo dos anos de 1990, no campo da implementação dos Direitos Sociais, ocorrerá devido à ideia de que era precisa reduzir o papel e as ações do Estado. Esse é um discurso que foi colocado em prática pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado – MARE dirigido por Bresser Pereira - em resumo - sob a orientação de que a Constituição recém conquistada seria um empecilho ao desenvolvimento econômico do país.
Não foi de modo despropositado que o chamado “terceiro setor” foi priorizado e incentivado com ares de parceiro do Estado ao longo daquele período. Desmobilizar iniciativas populares de reivindicações por melhores condições de vida foi parte da estratégia de reorientação do Estado que confluiu no fechamento do CONSEA em 1994 e sua substituição pelo Programa Comunidade Solidária (PCS). Em geral, o discurso de necessidade de “redução de gastos” aparece acompanhado da alegada necessidade de eficiência de gestão dos recursos, qualidade de serviços e de uma imagem de cidadão que é cliente do Estado. Apontar a implementação de Direitos Sociais como “gasto” é nada mais, nada menos que argumento para mobilizar reformas econômicas neoliberais.
Quando pensamos no fim do Bolsa Família e em toda a corrosão da rede de proteção social que tem ocorrido sob o atual governo, é preciso voltar alguns anos e observar que isto começa a ocorrer após um período de avanços sociais; a partir de fins de 2015 e mais intensamente a partir de 2016, com a retirada de Dilma Rousseff da presidência. O desmanche dos programas sociais pode ser localizado na esteira da proposta e aprovação do Teto de Gastos – corretamente apelidado pelos movimentos sociais de “PEC da morte” - e das (contra) reformas sociais que correram, retirando direitos dos trabalhadores e esfacelando a rede de proteção social.
Para que reformas que retiram direitos sejam aprovadas é preciso deslegitimar pública e socialmente o que existia antes, então a ideia de “enxugamento do custo social” aparece balizada por um verniz de responsabilidade fiscal que em realidade não se relaciona a nenhum tipo de solidariedade com a condição de pobreza dos trabalhadores, ou mesmo ao redirecionamento de gastos públicos para a melhoria das condições de vida da população.
IHU – Ainda da criação do Bolsa Família, havia a perspectiva de que o programa “prepararia” o terreno para a instituição de uma renda básica universal. Por que isso, de fato, nunca se confirmou? E, ainda, por que as discussões sobre uma renda básica universal não avançaram, sendo que chegou a ser promulgada uma lei (nº 10.835/2004), ainda em vigor, que instituiu a renda básica de cidadania no país a partir de 2005?
Denise De Sordi – A não implementação de uma renda básica ocorre por diversos motivos, porém, podemos citar a necessidade de rompimento de certo pacto social conciliatório promovido entre trabalhadores e elite por meio do Estado com os programas sociais, dentre os quais o Bolsa Família. A moralização conservadora da condição de pobreza como elemento que forja a aceitação da existência de programas sociais no Brasil não pode ser desconsiderada.
A perspectiva de distribuir renda efetivamente e de assim promover a possibilidade de certa autonomia material aos trabalhadores é rejeitada pelas elites brasileiras, pois supõe-se que geraria efeitos como o desincentivo ao trabalho – ainda que não existam empregos suficientes. Este é um debate já consolidado ao longo do século XX no campo das políticas sociais, e no Brasil assume os contornos de nossa formação social correspondendo às particularidades assumidas pelo projeto neoliberal no país, sendo alinhada com condições precárias de emprego – muitas vezes análogas à escravidão -, salários insuficientes e cortes nos direitos trabalhistas, por exemplo.
Sobre o Bolsa Família ter sido posto como o primeiro passo para a instituição de uma Renda Básica no Brasil, é preciso ponderar que este é um registro derivado das rupturas que a implementação do programa gerou no governo e uma forma de demarcar politicamente a pauta da campanha de 2002 que mencionava a realização de um contrato social pela via da distribuição de renda. Porém, os mecanismos e os limites para que isso ocorresse já estavam, de certa forma, dados tanto pela necessidade de conciliação com as elites quanto pelos instrumentos técnicos de gestão dos programas sociais, a exemplo do próprio CadÚnico, que foi criado em 2001 de forma atrelada a todos os programas sociais do governo federal, do cartão magnético para a monetização das transferências de dinheiro e do próprio entendimento em torno da necessidade da existência das condicionalidades em educação e saúde. Este cenário configurava a opção já feita em meados dos anos de 1990 por uma Renda Mínima que é focalizada e baseada no atendimento das basic needs, atendendo, mediante a não universalização de Direitos Sociais, parcelas específicas da população que são definidas por critérios bastante específicos, exemplificados nas linhas de corte de renda.
Assim, como a previsão de instituição de uma Renda Básica, a existência da lei 10.835/2004 demarca a possibilidade de sua implementação, mas não a sua efetivação e corrobora a ideia de implementação por etapas “priorizando-se as camadas mais necessitadas da população”. Instituir uma renda básica passa necessariamente pela criação de um novo consenso social em torno dos motivos da produção e reprodução da pobreza e da construção de um projeto de sociedade que, de fato, demonstre comprometimento com a transformação de condições que são estruturantes da sociedade brasileira.
IHU – Durante a pandemia, o atual governo diz haver uma “massa de invisíveis”, mas a senhora sempre alerta para os desmontes na assistência social e nos seus bancos de dados. Qual a importância dessas informações, como elas foram desarticuladas nesse governo e quais os desafios para a recompor?
Denise De Sordi – Políticas e programas sociais são marcadores para pensarmos as condições de vida no país. Não irão resolver tudo, mas se não há dados que informam estes marcadores dificilmente saberemos o que está a ocorrer e, portanto, o que fazer. Chamo a atenção para o desmanche das políticas e programas sociais porque este retrocesso não pode ser naturalizado ao ser associado tão somente a medidas de corte de gastos sociais, à crise gerada pela pandemia ou – como se tem feito com o Auxílio Brasil – à esfera das ações individuais. O retorno do país ao Mapa da Fome é uma escolha política, feita ativamente pelo governo brasileiro nos últimos anos. Essa escolha política não é despropositada e atende ao objetivo de aprofundamento das políticas neoliberais no Brasil.
Não há como recuperar esses dados completamente, a importância deles é que permitem captar retratos do país. Estes retratos precisam ser lidos e interpretados, os dados por si só pouco nos dizem. Nesse sentido, também não é despropositado o desinvestimento massivo nas pesquisas em ciências humanas e sociais nos últimos anos e a desvalorização e desmoralização progressiva destas áreas frente à sociedade.
A desmobilização da coleta de dados sobre as condições de vida da população também nos diz que esta é uma questão que deixou de ser importante para o Estado. O que vemos é uma profusão de propostas e projetos para as políticas sociais que não possuem lastro na realidade porque não há a intenção de que elas solucionem nossas questões sociais no médio e longo prazo. São tampões emergenciais.
A desativação do Conselho Nacional de Soberania Alimentar e Nutricional – Consea, em 2019, e o desmanche do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal - CadÚnico a partir de 2020 já indicavam não só o apagão das informações que subsidiavam programas ligados ao combate à fome e à pobreza, mas principalmente a desmobilização destes próprios programas sociais que eram informados por toda a rede de gestão que se articulava em torno tanto do Consea quanto do CadÚnico.
IHU – Que cenário a senhora projeta para o Brasil em 2022 e 2023? Como observa a forma que as pautas sociais aparecem nos discursos dos principais pré-candidatos ao Planalto?
Denise De Sordi – Ainda precisamos ver as propostas consolidadas e como a própria disputa eleitoral se encaminhará para responder melhor a estas questões que ainda estão em aberto. Pensando a partir de um processo histórico que permite analisar cenários semelhantes, é possível dizer que nenhum programa de governo sério deixará o combate à fome em segundo plano. Entretanto, claramente a forma que as propostas terão dependerá da orientação política de cada candidato.
Porém, aqui estamos em um engodo gerado pela conjuntura. O problema mais urgente é a fome, não há dúvidas quanto a isso, mas pensando inclusive na experiência dos anos de existência do Bolsa Família e no seu fim, por exemplo, está claro que somente transferir renda não é suficiente. O Estado deve assumir a função de promover o acesso e a garantia aos Direitos Sociais, aos Direitos Humanos e a condições dignas de vida e isto precisa se consolidar por meio de mudanças estruturais.
Isso inclui encaminhar o fim do Teto de Gastos, rever as reformas trabalhista e previdenciária, pensar nos mecanismos para a taxação de fortunas, dentre outras medidas que têm sido pautadas pelos movimentos sociais e partidos de esquerda. Será um longo caminho de reconstrução, mas se a saída for coletiva talvez consigamos sair dessa conjuntura mais rapidamente.