"Temos de voltar a ter uma política de investimentos públicos que dinamizem a economia, em vez de paralisar o conjunto", escreve Ladislau Dowbor, doutor em Ciências Econômicas, professor titular no Departamento de pós-graduação da PUC-SP e consultor para agências das Nações Unidas, governos e municípios, em artigo publicado por Outras Palavras, 22-12-2021. Este texto é o sétimo capítulo da obra O pão nosso de cada dia, de Ladislau Dowbor.
Temos de resgatar a capacidade de planejar, de prever problemas críticos, de restaurar equilíbrios econômicos, sociais e ambientais, de garantir a participação cidadã e o sentimento de liberdade de uma sociedade empoderada. No sentido amplo, chamamos isso de governança, a organização de um processo coerente de tomada de decisões. De uma boa compreensão das especificidades e potenciais dos diferentes setores pode resultar uma política que harmonize o conjunto. O conjunto deve ser administrado de maneira equilibrada e competente. O resultado que esperamos, é hoje, não somente claro, mas amplamente acordado no plano internacional: temos de construir uma sociedade economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Frente à fragilidade econômica planetária, à desigualdade explosiva e à catástrofe ambiental, estamos todos buscando novos rumos. Trata-se do desenvolvimento sustentável, claramente detalhado nos dezessete objetivos da Agenda 2030. Sabemos o que tem de ser feito, temos os recursos financeiros correspondentes e as tecnologias necessárias. Precisamos de processos decisórios que funcionem, e para isso precisamos de um pacto social justo, das regras do jogo correspondentes e de um Estado com autoridade para implementá-las.
Tivemos trinta anos de políticas públicas fortes, no pós-guerra, que funcionaram. O processo foi interrompido pelo poder dos gigantes corporativos, e em particular pelo sistema financeiro, levando, a partir dos anos 1980, a quatro décadas que Joseph Stiglitz qualificou de desastrosas. Foi, e continua sendo, uma era de poder total dos chamados “mercados”, com a globalização, financeirização e reforço desenfreado da exploração. O Estado foi declarado como sendo “o problema”, e o vale-tudo corporativo levou às deformações que hoje enfrentamos. Dane-se o maestro, declararam os músicos, somos livres para tocar cada um como quer, viva o neoliberalismo. A sinfonia desandou, e o resultado é o que vemos. Os Estados viraram meros espectadores do desastre, e ainda chamados a resgatar o sistema com rios de dinheiro, transferências elegantemente chamadas de Quantitative Easing. Um sólido defensor do capitalismo como Martin Wolf, economista-chefe do Financial Times, escreve que o sistema “perdeu a sua legitimidade”. Stiglitz é Nobel de Economia. Até o Papa sabe que precisamos de “uma outra economia”.
A economia deve servir ao bem-estar das famílias, e de forma sustentável, portanto sem prejudicar a gerações futuras. Os poderosos gigantes corporativos que hoje comandam o conjunto do processo, inclusive as decisões públicas, estão longe do objetivo. Suas decisões são determinadas pela lógica de maximização dos rendimentos dos acionistas no curto prazo, pouco importando o desastre. Não por perversidade dos gestores ou dos acionistas, mas pela lógica do sistema: na economia globalizada, os Estados nacionais perderam a sua capacidade de assegurar os equilíbrios. Ao mesmo tempo que hoje temos consciência da necessidade de equilibrar os objetivos econômicos, sociais e ambientais, aflora a evidência de que precisamos equilibrar as funções do Estado, das empresas e da sociedade civil para resgatar a governança do conjunto. Portanto, ao tripé de objetivos – econômicos, sociais e ambientais – precisamos acrescentar o tripé da gestão, a lógica do processo como a sociedade decide os seus rumos, de maneira razoavelmente equilibrada. Todo poder à corporação deu no que deu, hoje precisamos encontrar um novo equilíbrio entre a esfera pública, o mundo empresarial e a sociedade civil, lembrando que essa última é a quem as outras duas devem servir. Historicamente, nem todo poder ao Estado, nem todo poder às corporações têm dado resultados. E a ausência de regras do jogo internacionais, nesta era da globalização, aumenta o caos.
Precisamos reconstruir o equilíbrio, políticas setoriais são essenciais, mas não suficientes.
O ponto-chave da reconstituição do equilíbrio de como a sociedade define os seus rumos, tanto em termos dos objetivos como da gestão, está na recuperação do controle dos sistemas financeiros. Vimos nesta obra as finanças como um dos setores da economia. Aqui queremos insistir no fato de que as finanças, atividade-meio que maneja unidades de informação nos computadores, constituem também o principal instrumento de apropriação do processo decisório da sociedade. Quando, em 2010, as corporações americanas são suficientemente fortes para obter o direito de financiar as campanhas eleitorais – o que significa não só a presidência, mas poderes estaduais e locais, além do sistema jurídico em todo o país –, é o papel do Estado que muda: a primeira e mais significativa medida do governo Trump foi uma drástica redução dos impostos das corporações. No Brasil, em 1995 os lucros e dividendos distribuídos passaram a ser isentos de impostos.
A ausência de regulação financeira internacional permite que as multinacionais não só não paguem impostos como gerem um sistema extraterritorial de gestão financeira a partir dos paraísos fiscais. Que poder tem um governo que não governa as finanças? Ou seja, além das políticas setoriais que vimos no corpo do presente estudo, o país precisa de políticas macroeconômicas, área em geral muito pouco compreendida, por ser alvo permanente de desinformação. Mas, no conjunto e na sua dimensão principal, que é a de orientar os recursos para onde sejam mais úteis, não há complexidade técnica, e sim complexidade política, pela intervenção de interesses privados na esfera pública, tanto nacionais como internacionais. O desafio não é falta de recursos, nem de saber onde devem ser alocados, e sim de enfrentar os interesses corporativos.
A política econômica que funciona é conhecida. Os recursos financeiros direcionados para a base da sociedade se transformam em consumo, o que melhora diretamente o bem-estar das famílias. O reforço das políticas sociais, como saúde, educação e segurança, melhora também, sob forma de salário indireto, a vida da população. Ambos melhoraram as condições de vida, que é o objetivo principal. Mas a melhoria da base econômica da sociedade também abre mercado para as empresas, que passam a produzir e empregar mais. Tanto as famílias geram impostos, receita para o Estado, em cada ato de consumo como as atividades empresariais reforçadas também aumentam as receitas do Estado, fechando o ciclo, o que chamamos de círculo virtuoso da economia.
Essa visão da construção de um processo dinâmico de melhoria do conjunto da economia tem hoje sólidas bases científicas e, em particular, comprovação prática: foi o que permitiu aos Estados Unidos saírem da crise dos anos 1930, através do chamado New Deal, e também a prosperidade do pós-guerra em numerosos países, no quadro do Estado de bem-estar, o Welfare State. É também o que hoje funciona nos países nórdicos, na China, na Coreia do Sul e outros países, que souberam resistir à apropriação dos recursos financeiros pelos grupos privados especulativos. E funcionou evidentemente no Brasil, no período de 2003 a 2013, no que o Banco Mundial chamou de “the Golden Decade of Brazil” [1].
A redução das políticas macroeconômicas a um ridículo tripé de equilíbrios de preços, câmbio e orçamento não faz nenhum sentido. A narrativa permite ao governo e aos grupos financeiros justificarem políticas de austeridade, em nome de assegurar o equilíbrio fiscal, mas na realidade reduzem o bem-estar das famílias – lei do teto de gastos – enquanto repassam os recursos financeiros para bancos, seguradoras, especuladores imobiliários e outros intermediários. Os principais equilíbrios econômicos são conseguidos dinamizando a base produtiva do país, o que aumenta as receitas públicas, em vez de reduzir os “gastos”.
Temos de voltar a ter uma política de investimentos públicos que dinamizem a economia, em vez de paralisar o conjunto. Em 2021, é o oitavo ano que estamos com a economia parada, independentemente, inclusive, da pandemia. É essencial entender que o capitalismo financeirizado obedece a uma outra lógica: a apropriação do excedente social por meio de juros elevados, de dividendos e outros mecanismos de exploração financeira, não exige atividade produtiva dos que enriquecem. Trata-se de aplicações financeiras, ainda que sejam chamadas de “investimentos”. A pandemia tornou esse processo mais claro, na medida em que a economia real sofreu forte queda, ao mesmo tempo em que os lucros financeiros aumentaram radicalmente. A privatização do Banco Central, em nome da “autonomia”, faz parte do processo. O sistema financeiro tem de voltar a ser útil para a sociedade, especialmente porque os recursos que maneja são da sociedade.
Um vetor-chave do resgate do equilíbrio dinâmico da economia é a política tributária. O Estado representa, como ordem de grandeza, um terço da economia. A política que funciona é a cobrança de impostos sobre as grandes fortunas, a terra parada, os capitais especulativos, ou seja, o conjunto do capital improdutivo, e o repasse desses recursos para os setores que dinamizam a produção, envolvendo a demanda das famílias, o financiamento do investimento empresarial produtivo, as políticas sociais e as infraestruturas. No Brasil o principal motor da economia, que é a demanda das famílias, é travado pelos juros absurdos cobrados pelos intermediários financeiros e pelos elevados impostos sobre o consumo. E os lucros e dividendos dos afortunados são simplesmente isentos. Não há imposto sobre a fortuna, e o Imposto Territorial Rural é uma ficção. Nenhuma economia pode funcionar com essa política econômica absurda.
Se é preciso inverter a política de captação de recursos pelo Estado, é também preciso inverter a sua alocação. A transferência de recursos para a base da sociedade, em particular para o cerca de um terço da população mais fragilizada do país, sob forma de dinheiro e de políticas sociais, dinamiza o conjunto das atividades produtivas, como se viu na década de 2003 a 2013, quando tivemos um crescimento do PIB da ordem de 3,8% ao ano, a geração de 18 milhões de empregos formais privados e uma melhoria da qualidade de vida das pessoas. Um segundo eixo fundamental consiste na política de investimentos em infraestruturas, que tornam o conjunto das atividades econômicas do país mais produtivas. E um terceiro eixo consiste em assegurar, por meio de regulação por parte do Banco Central, que as instituições financeiras privadas usem os recursos que manejam para fomentar investimentos produtivos, e não especulação, evasão fiscal e canalização para paraísos fiscais. O capital tem de voltar a ser produtivo.
O breve estudo que aqui apresentamos se concentrou nas políticas setoriais, visando ultrapassar as simplificações ideológicas e mostrar que, numa sociedade complexa, temos de passar a adotar o que melhor funciona, de acordo com as diferentes áreas, mas também que funcione para todos, e de maneira sustentável. Podemos chamar isso de economia aplicada. Envolve tanto os valores que devem presidir às nossas escolhas quanto as formas de gestão correspondentes. De forma geral, chamamos isso de processo decisório, ou de “governança”. Volto aqui a lembrar que não temos falta de recursos nem de tecnologias, nem de conhecimento dos problemas: o que falta, é a capacidade de organização política e social.
Os desafios são prementes, tanto no plano do desastre ambiental como na desigualdade explosiva, no caos financeiro, na desagregação da democracia e das liberdades individuais. Mais do que nunca, precisamos de mais pessoas entendendo os mecanismos básicos, de forma a que possamos afastar as narrativas que nos empurram e apoiar políticas que funcionem.
[1] A dinâmica do Brasil, nesse campo, foi apresentada em outro livro, A era do capital improdutivo, e aqui retomamos o raciocínio porque as políticas setoriais, que são o nosso tema principal, dependem também de políticas macroeconômicas capazes de gerar um contexto propício.