Ao sul da cidade de Barcarena, está localizada a planta industrial da Alunorte, a maior produtora de alumina do mundo. Quando a companhia se instalou neste município paraense, nos anos 1990, os habitantes imaginavam que o futuro tinha chegado. Só não podiam prever que esse futuro representaria sofrimentos, intoxicações em níveis mortais e um abandono das autoridades que deveriam zelar por suas vidas. O luto e a luta da população contra os crimes ambientais da mineradora são reais, mas poucos têm noção da dimensão dessa tragédia. A população contaminada pelas indústrias de mineração no nordeste do Pará pede justiça. Para as vítimas, Barcarena é uma Chernobyl na Amazônia.
A reportagem é de Cicero Pedrosa Neto, publicada por Amazônia Real, 16-12-2021.
“Meu marido morreu sem nunca ter conseguido ir num toxicologista, ele estava cheio de alumínio no corpo”, diz Maria do Socorro Costa, sem poder conter as lágrimas. Mulher forte e destemida, um dos maiores símbolos da luta contra os crimes da mineração na Amazônia, Socorro do Burajuba, como ela gosta de ser chamada, vive hoje o pesado luto pela perda do companheiro, Raimundo Amorim Barros. Ele morreu nos últimos dias de setembro deste ano. A perda de Socorro do Burajuba acontece quando movimentações nos tribunais nacionais e internacionais reacendem o debate sobre os danos e violações de direitos humanos cometidos pela mineradora Hydro Alunorte e apontam para a reparação dos crimes cometidos pela empresa na cidade de Barcarena.
Localização da cidade de Barcarena, Pará. (Imagem: Google Maps)
Fazia seis meses que a reportagem da Amazônia Real não tinha notícias de Raimundo ou Socorro do Burajuba. Há 4 anos, a agência acompanha o drama das famílias impactadas pela mineração em Barcarena, observando de perto os desdobramentos do último desastre socioambiental envolvendo a mineradora norueguesa Hydro Alunorte.
Barcarena esteve no noticiário dos últimos dias por causa de outra gigante da mineração, a transnacional francesa Imerys Capim Caulim. No mesmo polo industrial, a menos de três quilômetros de distância, a maior fabricante de caulim do mundo viu um de seus galpões pegar fogo, no último 6 de dezembro. Nas horas seguintes, uma fumaça tóxica carregada de enxofre varreu o município. Até o dia 15, cerca de 160 pessoas já haviam sido atendidas nos serviços de saúde, apresentando sintomas como náuseas, vômito, dor de cabeça ou falta de ar.
Mas o drama de Raimundo nada tem a ver com a fumaça tóxica. Seu problema era o alumínio. Entre 2015 e 2017, ele participou de uma pesquisa promovida pelo Laboratório de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará (Laquanam/UFPA), que comparou amostras de cabelos de habitantes de Barcarena e Altamira, no sudoeste paraense. O estudo, coordenado pela pesquisadora Simone Pereira, que dirige o laboratório e é professora titular da Faculdade de Química da UFPA, investigou os níveis e a presença de 21 metais pesados no corpo de pessoas que vivem próximas ao Polo Industrial de Barcarena, entre eles o alumínio, o chumbo, o cromo e o níquel – considerados prejudiciais à saúde mesmo em baixas concentrações.
No cabelo de Raimundo Barros, laudo ao qual a Amazônia Real teve acesso, havia 110 vezes mais alumínio do que o de um morador de Altamira, tratado no estudo como “população de controle”. A média encontrada entre os altamirenses foi de 33,9 microgramas por grama para o mesmo metal. Nos fios de cabelo de Raimundo, havia rastros de alumínio muito acima do normal. O cromo e o níquel também estavam com valores acima dos encontrados em Altamira.
Raimundo, conhecido como “Seu Dico”, era diabético e havia anos sofria com várias enfermidades. Debilitado, ele viveu a maioria dos seus últimos dias entre uma rede e a cadeira de rodas – onde também tomava banho –, sempre sob os cuidados de Socorro. “Ele começou com uma dor abdominal, depois o médico disse que ele tinha diabetes. E ele aqui, bebendo água contaminada, tomando banho, comendo as coisas aqui do quintal, fazendo farinha […] depois foi o rim, uma gangrena e ele não aguentou mais”, lembra a viúva.
Imagem: Maria do Socorro Costa da Silva chora ao lembrar do marido falecido em setembro, sem nunca ter conseguido uma consulta com um toxicologista | Foto: Cícero Pedrosa Neto/ Amazônia Real
A companheira Socorro do Burajuba também estava com valores superiores aos esperados pelo estudo do Laquanam, especialmente o alumínio e o cromo. Só um laudo toxicológico poderia precisar a quantidade de metais em excesso presente nos habitantes de Barcarena, incluindo a líder comunitária e seu companheiro.
“No estudo feito a partir do cabelo, a gente consegue determinar que existe exposição aos metais. Só a análise do sangue pode mostrar com mais precisão os níveis de contaminantes no corpo dos indivíduos”, afirma a professora da UFPA, Simone Pereira. O cabelo seria, assim, uma espécie de termômetro de uma realidade que pode ser ainda mais grave. A pesquisadora explicou que não há na literatura científica valores determinados como seguros para metais pesados em cabelo.
Por conta do desastre socioambiental da Hydro em fevereiro de 2018, que consistiu no transbordamento de uma das barragens de rejeitos da empresa, o DRS1, que acabou contaminando com “lama vermelha” rios e igarapés da região, a prefeitura de Barcarena solicitou ao Laboratório Central do Pará (Lacen-PA), a realização de exames de sangue e cabelo na população residente nos bairros e comunidades próximas ao polo industrial. Os resultados foram entregues no fim do mesmo ano e a prefeitura começou a distribuí-los, mas sem a supervisão de um médico toxicologista, o que seria ideal em casos como esses. Os números de contaminação em níveis estratosféricos poderiam assustar a população.
“As pessoas começaram a me enviar os exames desesperadas com os resultados. Eu não sabia o que fazer, a não ser orientá-las a irem aos postos de saúde buscar por tratamento médico especializado, que nesses casos tem que ser um toxicologista. Eu fiquei apavorada com os resultados que vi”, comentou a química Simone Pereira.
A prefeitura optou, então, por suspender a entrega dos exames. Na ocasião, uma médica ginecologista estava encarregada dessa tarefa, segundo pessoas ouvidas pela Amazônia Real.
“Meu marido morreu sem saber o que tinha no sangue dele. Eu fico me perguntando para que eles fizeram esses exames se não entregaram os resultados para todas as pessoas, se não deram tratamento de saúde para nós?”, queixou-se Socorro do Burajuba.
Questionado pela reportagem, o Lacen não informou a quantidade de pessoas que fizeram os exames e nem quais metais foram analisados nas amostras. A nota se limitou a dizer que repassou todos os exames para a prefeitura e que os dados são confidenciais. A Amazônia Real recorreu à Lei de Acesso à Informação para obter um relatório geral com os dados, mas até a publicação desta reportagem não recebeu a resposta no devido prazo legal.
A prefeitura de Barcarena disse à Amazônia Real que recebeu 244 exames toxicológicos do Lacen, dos quais 196 foram entregues à população e 48 aguardam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) da cidade por seus donos, pois, de acordo com a prefeitura, elas não foram encontradas em seus domicílios.
O poder municipal reconheceu que os exames foram entregues por uma profissional com outra especialidade, “após a identificação de que, no estado do Pará, não há médicos toxologistas em atividade”, fato desmentido pela reportagem. Há vários médicos toxicologistas atuando no estado do Pará, como na UFPA, no Instituto Evandro Chagas (IEC) e no próprio Lacen.
Estado do Pará, Brasil. (Imagem: Google Maps)
Ainda de acordo com a prefeitura, há uma parceria entre ela, o governo estadual e a Hydro que prevê, “nas UBSs Jardim Cabano e Vila Nova, atendimentos médicos com especialidades de pediatria, gastrologia, dermatologista e infectologista para acompanhamento desses pacientes”.
Nenhuma das mais de 50 pessoas ouvidas pela Amazônia Real, ao longo dos últimos quatro anos, confirmaram que tenham recebido qualquer tratamento médico voltado à descontaminação e/ou neutralização de contaminantes industriais em seus organismos.
A viúva Socorro nega que tenha sido procurada pela prefeitura para o recebimento dos exames e afirma já ter ido à Secretaria de Saúde e a duas UBS em busca dos exames do marido falecido, mas que até agora não os recebeu. “Aqui no Burajuba, muita gente já morreu igual o Dico, de câncer e de outras doenças que a gente nem sabe o que é, sem falar nas crianças que nascem sem órgãos […] essa contaminação está afetando até as gerações futuras”, acusa a liderança.
Imagem: Futuras instalações da Companhia de Alumina do Pará (CAP) do Grupo Norsk Hydro. Paralisada em 2012, a obra tem sido retomada nos últimos meses e assustado as comunidades em Barcarena | Foto: Cícero Pedrosa Neto / Amazônia Real
“Isso aqui é uma Chernobyl!” A frase impactante é de Gervásio Ferreira Vida, 65 anos, autônomo. Ele, que vive há 19 anos em Barcarena, foi um dos trabalhadores atraídos pelo movimento das fábricas e pela promessa de emprego com a chegada da atividade mineradora. Parece um pouco absurdo comparar a cidade ucraniana arrasada por um acidente nuclear em abril de 1986, com a realidade de Barcarena. De fato, não há exposições consideráveis a elementos radioativos comprovadas na cidade, mesmo que o urânio e o tório (elementos químicos radioativos) componham as estruturas da bauxita processada pela Hydro Alunorte e, portanto, estejam também – em níveis desconhecidos – em suas bacias de rejeitos.
Mas a comparação de Gervásio Vida, um ex-motorista que já prestou serviço para as indústrias mineradoras no passado, está pautada em outra análise. “A verdade é que isso aqui [as bacias de rejeitos] estão matando Barcarena. Barcarena daqui há alguns anos vai ser um lugar fantasma, vai se tornar inabitável. E não precisa ser nenhum estudioso para saber que isso vai acontecer… aqui vai virar uma Chernobyl”, explicou.
Em 2018, o IEC produziu um relatório técnico-científico sobre toda a cadeia produtiva da Hydro, desde a extração do minério em Paragominas até o beneficiamento, em Barcarena. O relatório, escrito pelo geoquímico Marcelo de Oliveira Lima, analisa que mesmo a bauxita beneficiada pela Hydro Alunorte, antes de passar pelo banho de soda cáustica na refinaria, já possui inúmeros contaminantes altamente prejudiciais à saúde humana e ambiental em sua composição, tais como chumbo, arsênio, cádmio, cromo, níquel, manganês, e até elementos radioativos como o urânio e o tório.
Em estado natural, esses contaminantes encontram-se em baixas dosagens no minério de bauxita, mas o relatório aponta para a concentração de milhares de toneladas de rejeitos “altamente corrosivos” do processamento industrial da bauxita, que são depositados a céu aberto nas bacias da Hydro. Marcelo Lima chegou a ser processado pela mineradora norueguesa em 2019, mas foi absolvido pela Justiça Federal no mesmo ano. Hoje, ele trata o caso como uma tentativa de censura ao trabalho do pesquisador.
Como já foi dito, o grupo Hydro não está sozinho em Barcarena. A Imerys Capim Caulim é outra mineradora que amedronta a vida dos moradores da cidade. Ela chegou em julho de 2010 – quando comprou a maioria das ações da empresa Pará Pigmentos, também pertencente à antiga estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). O caulim não é um material tóxico, mas o seu processamento industrial é.
A Imerys, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), possui 12 barragens de rejeitos em Barcarena. Apesar de serem classificadas com “risco baixo”, em 2007 a principal bacia da Imerys rompeu, espalhando cerca de 450 mil metros cúbicos de rejeitos, que atingiram os poços da população residente no bairro de Vila do Conde. A chamada “pluma de contaminantes” chegou aos igarapés e rios da região, alcançando até a bacia do Marajó.
O incêndio do último dia 6 de dezembro na planta industrial da Imerys ainda repercute em Barcarena, apesar da tentativa de manter uma aparência de normalidade. Por orientação da Secretaria Estadual de Saúde (Sespa), os casos estão sendo registrados como “intoxicação exógena”. No dia 10 de dezembro, uma das pessoas atendidas com sintomas de intoxicação acabou morrendo. Em seu atestado de óbito, consta que a causa da morte é “desconhecida”.
Os órgãos ambientais do Pará, a Polícia Civil, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Pará (MPPA) investigam o caso. O IEC, mais uma vez, foi chamado para analisar o ar atmosférico e o solo do entorno da mineradora em busca de contaminantes nocivos à saúde humana e ambiental.
Sob a alegação de que a empresa não possui as licenças ambientais para operar e que o galpão onde houve o incêndio não atende às normas de segurança para armazenamento de hidrossulfito de sódio, o MPPA pediu a suspensão das atividades da mineradora que envolvam a utilização desse produto químico – que originou o incêndio e é utilizado no branqueamento do caulim.
Imagem: Monumento da construção da Albrás na época da ditadura militar em Barcarena | Foto: Museu da Pessoa
Foi no período da ditadura militar, que o governo brasileiro deu início à exploração do alumínio em Barcarena. Foi a União que bancou a construção da Albrás e da Alunorte, a um custo estimado de 2 bilhões de dólares, que passaram a ser administradas pela extinta CVRD. Esse cálculo toma como base o incentivo energético concedido à Albras e Alunorte, entre 1984 e 2004. Isso ocorreu durante a expansão do capital financeiro e desenvolvimentista na Amazônia, entre as décadas de 1960 e 1980.
As duas empresas foram criadas para trabalharem em regime de interdependência: a Alunorte produz a alumina que é transformada em alumínio pela Albrás, sua vizinha no polo industrial de Barcarena. Dessa época do avanço das máquinas sobre as florestas da Amazônia, resultaram também a hidrelétrica de Tucuruí e o Projeto Grande Carajás (PGC).
Em 2010, após a privatização da Vale do Rio Doce, o Grupo Norsk Hydro – que já fazia parte da composição de capitais das empresas – tornou-se o dono da maior parte de suas ações e, portanto, o administrador de toda a cadeia do alumínio em Barcarena.
Imagem: Protesto em frente à sede da Hydro, em 2019, para lembrar os efeitos da lama tóxica produzida pela mineração na vida da população de Mariana, Brumadinho e Barcarena | Foto: Pedrosa Neto / Amazônia Real
A trajetória da Alunorte é marcada por desastres socioambientais. Segundo dados do MPPA e MPF, há pelo menos três episódios de despejos irregulares de rejeitos tóxicos não tratados no meio ambiente, ocorridos em 2009, 2014 e 2018. Esse material, também conhecido como lama vermelha e depositados nas bacias de rejeitos da Alunorte, é fruto do processamento industrial da bauxita para a extração de alumina, a matéria-prima utilizada na fabricação do alumínio. Para extrair a alumina da bauxita é preciso que haja um “ataque” de soda cáustica. Esse é um dos motivos para os efluentes serem tão perigosos, mas há outros.
Em fevereiro de 2018 aconteceu aquele que ficou sendo o desastre socioambiental mais conhecido de Barcarena: o transbordamento de uma das bacias da Hydro Alunorte, o DRS1, que resultou na contaminação de rios e igarapés próximos à refinaria de bauxita e no impacto direto a cinco comunidades quilombolas localizadas há poucos metros de sua planta industrial – além de dezenas de outras comunidades ribeirinhas que vivem em íntima relação com os rios que foram atingidos pela lama tóxica. Também foram encontrados dutos clandestinos de descarte de rejeitos não-tratados em direção ao Rio Pará.
Isso acabou obrigando o grupo norueguês a firmar um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) com o MPF, no qual se comprometeu em: ampliar suas estações de tratamento de rejeitos; criar um plano de contingência em caso de novos desastres; criar uma alternativa viável de acesso à água potável e distribuir tickets de alimentação no valor de 600 reais para as famílias afetadas com o transbordamento. O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e os Recursos Naturais Renováveis (Ibama) multou a Hydro em 20 milhões de reais e embargou as operações das suas bacias de rejeitos (DRS1 e DRS2) – liberadas poucos meses depois.
No entanto, o TAC firmado entre a empresa e o MPF, do qual também participa o governo do Pará, não mudou o rumo das coisas na cidade.
Imagem: Dona Maria Salistiano, moradora do bairro Bom Futuro, uma das pessoas mais atingidas pelo desastre socioambiental da Hydro, em 2018 | Foto: Cícero Pedrosa Neto / Amazônia Real
O igarapé localizado ao fundo da casa de Maria Salistiano foi um dos locais onde o IEC, vinculado ao Ministério da Saúde, e com sede na capital paraense, coletou amostras de água que atestaram a presença de metais pesados como alumínio, chumbo, cromo, níquel, manganês e bário, após o transbordamento de efluentes do DRS1. Um dos maiores medos de Maria, que ganha a vida fazendo carvão, é ser soterrada pela bacia, já que ela vive – em uma casa do Programa Minha Casa Minha Vida, – a menos de 500 metros da estrutura.
O TAC em vigor não obriga a empresa a descontaminar os rios e igarapés atingidos pela lama vermelha do DRS1 e nem questiona a toxicidade do conteúdo das bacias de rejeitos da empresa. A Hydro Alunorte propôs como medida de acesso à água a ampliação do sistema de abastecimento da concessionária de água da cidade, levando a população a questionar o fato de ter que pagar, e caro, pelo serviço.
O ticket de alimentação de 600 reais foi suspenso poucos meses antes da pandemia, depois da Hydro alegar a necessidade de um novo cadastramento de famílias. Sobre isso, a Hydro e o MPF alegam que a paralisação do processo se deu pelos riscos sanitários causados pela Covid-19, agravando a situação econômica de centenas de atingidos pela tragédia ambiental da Chernobyl brasileira.
Imagem: Mineração em Barcarena no Pará | Foto: Leo Plunkett / Global Witness
Outro dado preocupante contido no relatório do IEC está relacionado ao descarte das cinzas dos fornos e das caldeiras da Hydro no DRS1 e no DRS2. “Um agravante da situação é a recente constatação da mistura de resíduos de cinzas de fornos e/ou caldeiras aos resíduos de lama vermelha, pois esses materiais de cinzas são conhecidos por conter também elementos tóxicos, ou seja, juntamente com os materiais da lama vermelha os níveis de vários desses contaminantes são aumentados […] as cinzas também possuem agregadas como contaminantes, os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), substâncias altamente cancerígenas produzidas a partir da combustão da matéria orgânica e/ou combustíveis fósseis […] e outros elementos tóxicos, como o mercúrio”, diz o relatório.
Em outras palavras, a nuvem de poluição por sobre Barcarena é tóxica. E ela chega até a capital Belém, a 40 quilômetros em linha reta do município no nordeste paraense.
O mercúrio é um dos dez elementos classificados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como extremamente perigosos à saúde humana, ao lado do chumbo, do cádmio, do arsênio e outros. Segundo dados do Sistema de Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (Snisb), ligado à Agência Nacional de Águas (ANA), o DRS1 não possui “plano de segurança” contra desastres e nem possui “revisões periódicas”.
Segundo a professora Simone Pereira, da UFPA, há dois problemas principais em Barcarena, quando o assunto são as bacias de rejeitos: “O primeiro é quando chove e sobrecarrega as bacias, que leva ao transbordamento ou a descarga de rejeitos não-tratados no meio ambiente; a outra é no verão, pois o mesmo material das bacias seca e é levado pelo vento até chegar nos pulmões da população […] são nuvens de lama em pó”.
Não precisa ser um perito para atestar, a olho nu, o que disse a professora. No entorno das fábricas, é fácil de observar a presença da lama vermelha nas folhas das árvores, nas estradas, na pelagem dos animais e nos caminhões que trafegam livremente pelas vias da cidade – os mesmos que levam rejeitos das fábricas para as bacias. Barcarena é uma cidade pintada de lama vermelha.
Em entrevista à Amazônia Real em 2019, a pesquisadora Simone Pereira afirmou que o rejeito em sua forma particulada (em pó), se aspirado, pode se misturar ao muco produzido nas vias respiratórias e causar graves “queimaduras”. Em Barcarena, é comum a população se queixar de problemas respiratórios.
“Barcarena é um lugar extremamente perigoso para bichos, para plantas e para pessoas. Você pode tomar a água mineral, comprar comida produzida em outros locais, mas não pode deixar de respirar o ar contaminado dali. E todo mundo compartilha daquele ar. Todas as pessoas que vivem em Barcarena estão sujeitas às contaminações da água, do solo e da atmosfera”, explicou Simone, que tem sido ouvida pela Amazônia Real ao longo dos últimos quatro anos.
Imagem: Professora Dra. Simone Pereira no Laquanam/Ufpa, registro feito antes da pandemia de Covid-19 | Foto: Cícero Pedrosa Neto Amazônia Real / 2019
Procurada pela reportagem, a Hydro Alunorte afirmou em nota que “monitora e analisa de forma abrangente e constantemente seus efluentes e a qualidade da água que é devolvida ao meio ambiente” e que os “resultados estão em conformidade com todos os parâmetros aplicáveis ao seu processo”. A nota também nega haver “evidências que relacionem qualquer tipo de dano ambiental com a operação da Hydro Alunorte” e que suas operações estão de acordo com as legislações brasileiras, além de serem certificadas pelos órgãos ambientais competentes.
A filial brasileira do grupo Norsk Hydro Asa, que controla a mineradora de alumina, só respondeu à Amazônia Real após a reportagem ter acionado a sede da empresa na Noruega. País que defende a preservação florestal, a Noruega já doou ao Brasil o equivalente a 3,2 bilhões de dólares para o Fundo Amazônia.
Imagem: Dona Socorro do Burajuba em frente à sede da refinaria norueguesa Hydro Alunorte, em Barcarena-Pará | Foto: Cícero Pedrosa Neto / Amazônia Real
Presidente da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), Socorro do Burajuba tem travado uma longa luta judicial contra o grupo Norsk Hydro Asa. Dono das empresas Alunorte e Albrás, que produzem, respectivamente, alumínio e alumina, a partir do refinamento do minério de bauxita, o grupo tem por maior acionista o próprio governo da Noruega, com 34,3% de suas ações.
A Cainquiama, que representa cerca de 40 mil pessoas em Barcarena, move atualmente cinco ações contra a Hydro no Brasil e uma na corte holandesa, pedindo por reparações socioambientais, exames toxicológicos e indenizações por danos morais e materiais à população. Na ação movida na Holanda, a associação é representada pelo escritório inglês PGMBM, o mesmo que representa internacionalmente as famílias atingidas pelo desastre de Mariana, em Minas Gerais, no ano de 2015, contra a mineradora anglo-australiana BHP.
A maior e principal das ações questiona todo o processo produtivo da Hydro Alunorte, desde a lavra da bauxita em Paragominas – a cerca de 380 quilômetros de Barcarena, também operada por uma empresa do grupo – até os impactos socioambientais das bacias de rejeitos DRS1 e DRS2. A mesma ação, questiona o fato de as bacias terem sido construídas sobre uma área de proteção ambiental ou zona de amortecimento ambiental, previstas no projeto original das empresas desde a década de 1980, e pede o cancelamento das licenças ambientais concedidas pelo estado do Pará para as bacias de rejeito. Além disso, a Cainquiama reclama na Justiça que a certificadora Bureau Veritas QI do Brasil concedeu à Hydro o selo ISO 14.001 – dado a empresas que adotam práticas sustentáveis – de forma irregular, pedindo também seu cancelamento.
A Hydro afirma que agiu de acordo com o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Barcarena (PDDU), que transformou as áreas de proteção ambiental em zonas industriais. Porém, uma recomendação de 25 de maio de 2021 do MPPA, expedida pela procuradora Rosangela de Nazaré, da 5ª Promotoria de Justiça de Ações Constitucionais e Fazenda Pública, reconheceu a legitimidade dos pedidos da Cainquiama.
“[…] tenho por necessária a condenação das empresas Hydro, Albrás e Alunorte em obrigação de fazer consistente em reflorestar, recuperar nascentes, recursos hídricos e geológicos e remediar passivos socioambientais, na área descrita em escritura pública como de preservação ambiental. Além disso, deve ser determinado ao estado do Pará que promova o cancelamento das licenças concedidas às rés na área descrita na escritura pública como de preservação ambiental, e fiscalizar a recomposição do meio ambiente natural”, diz a recomendação, referindo-se às áreas onde estão instaladas as bacias de rejeitos da Hydro.
“Parece que finalmente eles estão enxergando o que já era pra ter sido feito anos atrás, desde 2009, porque compete a eles cuidar do bem público. Quando se fala em meio ambiente o assunto é Estado”, questiona Socorro do Burajuba.
Uma ação importante, de 2019, movida pela Cainquiama nos tribunais, pede que a Hydro realize exames toxicológicos para rastrear possíveis contaminações por metais pesados na população de Barcarena. A Justiça acolheu o pedido e determinou que os exames fossem feitos em uma amostragem inicial de 343 pessoas pelo IEC, e custeados pela mineradora. A Hydro, no entanto, conseguiu uma liminar suspendendo a realização dos exames naquele mesmo ano. Agora, após manifestação favorável da Justiça, a associação aguarda o juiz responsável determinar, finalmente, que os exames sejam feitos.
Para o advogado da Cainquiama, Ismael Coelho de Moraes, os exames vão poder provar em juízo a exposição da população barcarenense aos contaminantes produzidos pela Hydro Alunorte, dado que a empresa sempre tentou não tornar público.
“Nós entendemos que o sangue das pessoas é como uma espécie de ‘caixa-preta’, que pode ser determinante para a condenação da Hydro nos processos, já que não há outra fonte de emissão desses contaminantes, senão as fábricas naquela região”, comenta o advogado, que representa a associação em todos os processos movidos contra a mineradora no Brasil.
Em uma outra ação, a Cainquiama questiona o incentivo fiscal concedido pelo governo do Pará em 2015, tendo como condicionante a mudança da matriz energética da planta produtiva da Hydro para uma alternativa renovável, neste caso o gás natural, já que a emissão de poluentes atmosféricos é um dos grandes problemas enfrentados pelos barcarenenses. Mas até hoje, tanto a Albrás quanto a Hydro Alunorte, continuam utilizando combustíveis fósseis em suas plantas produtivas.
A Amazônia Real questionou a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme) sobre a concessão e o monitoramento das condicionantes do incentivo fiscal concedido pelo governo estadual do Pará, mas até a publicação desta reportagem especial não obteve resposta.
Por conta dos enfrentamentos constantes, que se acentuaram após 2018, Socorro do Burajuba já recebeu ameaças de morte e chegou a ter sua casa invadida por homens encapuzados, que roubaram documentos importantes da associação. O fato, segundo o advogado da Canquiama, atrapalhou o andamento de algumas ações que a associação movia contra a Hydro.
No começo de 2020, antes do início da pandemia no Pará, a Amazônia Real esteve com a líder Socorro para gravar um mini-documentário sobre as ameaças que ela vem enfrentando ao longo dos anos em Barcarena. O vídeo, que faz parte da série “Vozes que Resistem”, pode ser assistido aqui.