04 Janeiro 2022
Algumas novas publicações sobre o horizonte artístico antigo e contemporâneo demonstram mais uma vez como o arquétipo bíblico é fecundo, confirmando a famosa frase atribuída a Marc Chagall, segundo a qual as páginas sagradas são como um alfabeto colorido ou uma paleta à qual os pintores recorreram durante séculos.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, publicado em Il Sole 24 Ore, 02-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O fato de ter vivido por quase 20 anos entre paredes decoradas com estantes repletas de manuscritos iluminados e de códices preciosos ou incunábulos, como era a Biblioteca Ambrosiana de Milão, às vezes me leva a também envolver nessa emoção os leitores do nosso suplemento.
Como exemplo dessas pesquisas codicológicas, proponho agora a admirável edição crítica de um manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris com a assinatura it.115. Uma patrulha de estudiosos multidisciplinares se dedicou tanto a conduzir uma imponente investigação pluriforme sobre o códice, quanto a oferecer o seu texto rico de aparatos, análises filológicas e históricas, e glossários, e a reproduzir, comentando-a, a extraordinária sequência iconográfica de nada menos do que 193 imagens executadas com uma surpreendente técnica de lavagem a têmpera.
Neste ponto, é necessário revelar o sujeito. Trata-se da versão italiana das “Meditationes Vitae Christi”, uma obra de grande sucesso no fim da Idade Média. É uma paráfrase dos Evangelhos, hibridizada por interpolações apócrifas e parenético-didáticas, com uma expansão também sobre a vida de Maria.
O relato, muitas vezes de estrutura dialógica na segunda pessoa, provoca o leitor por meio de “uma fortíssima afetividade emocional”, como observa um dos editores, para que floresçam sentimentos de adesão e participação, especialmente quando a Paixão de Cristo está em cena.
A popularidade dessas meditações é atestada por mais de 200 manuscritos medievais, pelos incunábulos e pelas gravuras que as conservaram em latim, em italiano e em outras línguas vulgares.
A parisiense, datada por volta de 1330-1350, provavelmente foi idealizada por um frade, diretor espiritual de um mosteiro de clarissas de Pisa, que acompanhou o texto com um fascinante “comentário” iconográfico. As “Meditationes”, nascidas em latim, são traduzidas para o italiano pela primeira vez nesse códice, atestando a popularidade de uma obra que ainda pode conquistar o leitor atual também pela linguagem crepitante na sua arcaicidade e por aquela espécie de “filmagem” que são as ilustrações, capazes não só de comentar, mas também de integrar e até de substituir o ditado verbal, em uma “fortíssima simbiose entre texto e imagem”.
Continuando a metáfora autobiográfica inicial, a Ambrosiana – segundo a própria vontade do seu fundador, o cardeal Federico Borromeo (leia-se o capítulo XXII de “Os noivos”) – conta também com uma importante Pinacoteca, conhecida sobretudo pelo “Músico” de Leonardo, o painel da “Escola de Atenas” de Rafael, a “Cesta de frutas” de Caravaggio, a “Madonna do pavilhão” de Botticelli.
Há, no entanto, também uma rica seção do século XVIII-XIX: nela, é possível distinguir algumas pinturas de Gaetano Previati, incluindo um óleo sobre tela com três ciprestes com um curioso enquadramento recortado, outros dois com flores e rosas, e um surpreendente, tenebroso e vibrante “Funeral de uma virgem”.
Esse artista de Ferrara (1852), falecido em Lavagna em 1920, também era atravessado por uma veia místico-contemplativa. Testemunho disso é uma poderosa e dramática Via Crucis em 14 telas, executadas em poucos meses entre 1901 e 1902, e conservada agora na Pinacoteca Vaticana.
Micol Forti, uma refinada estudiosa de arte contemporânea, diretora dessa seção dos Museus Vaticanos, oferece agora a sua série, mas reconstruindo o amplo itinerário artístico e espiritual de Previati que, em várias ocasiões, havia se defrontado com as histórias da Paixão de Cristo.
Entre parênteses, seria uma experiência sugestiva criar uma sinopse livre com as cenas paralelas do códice medieval parisiense.
Grande mestre do divisionismo italiano, visionário, solidamente ancorado na sua fé católica, “o mais místico dos nossos pintores vivos”, como então o definia Ugo Ojetti, Previati, nessa Via Crucis, em comparação com as outras por ele executadas, agrupa a sua linguagem pictórica na essencialidade emocionante dos atores, dos signos e das cores.
Como observa a editora do volume a ele dedicado (que inclui estudos sobre outras obras do artista, acompanhados de um aparato sobre as restaurações, a diagnóstica, as fontes de arquivo), “ele reduz o enquadramento, elimina todos os detalhes, faz dos rostos e das expressões os verdadeiros protagonistas do relato sagrado, faz explodir a paleta de vermelhos escarlates e amarelos-dourados trágicos, impondo ao espectador uma crescente participação emocional e espiritual”.
Esta nossa livre incursão no horizonte artístico antigo e contemporâneo demonstra mais uma vez como o arquétipo bíblico é fecundo, confirmando a famosa frase atribuída a Marc Chagall, segundo a qual as páginas sagradas são como um alfabeto colorido ou uma paleta à qual os pintores recorreram durante séculos.
Tanto o autor anônimo das ilustrações do códice it.115 quanto o Previati da Paixão de Cristo, porém, acrescentaram mais um componente: as suas “exegeses” bíblicas certamente recriavam a matriz simbólica, narrativa e espiritual do texto primigênio, mas também aferravam a alma e o coração da comunidade que contemplava aqueles fólios ou aquelas telas. As obras se transformam, então, quase que em homilias puras e luminosas.
Diego Dotto, Dávid Falvay, Antonio Montefusco (orgs.). Le Meditationes Vitae Christi in volgare secondo il codice Paris, BnF, it.115, Edizioni Ca’ Foscari, 509 páginas.
Micol Forti (org.). Dalla mistica della “Via Crucis” alla sinfonia dei “Notturni” Gaetano Previati. Edizioni Musei Vaticani, 287 páginas.
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Perfis de Jesus, em miniaturas e em telas. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU